Nos últimos meses, o tema da exaustão associada ao ideal de excelência tem vindo a ganhar destaque em publicações internacionais, estudos académicos e palestras — não apenas no contexto do burnout, mas como fenómeno cultural mais profundo. Já não se trata apenas de estarmos cansados de trabalhar, mas de termos de ser sempre “a melhor versão de nós mesmos”. E se, pelo contrário, bastasse às vezes ser “bom o suficiente”?
POR HELENA OLIVEIRA
“Perseguir a perfeição é negar a condição humana; perseguir o progresso possível é honrá-la”
Alain de Botton, filósofo
A cultura da auto-optimização constante, alimentada pelas redes sociais, pelo discurso empresarial e pela pressão interiorizada, tem efeitos reais sobre a saúde mental, a criatividade, a autenticidade e sobre a forma como nos relacionamos com os outros e connosco próprios.
Este tema está longe de ser novo, mas há sinais de que se está a tornar mais urgente — e mais transversal. O crescimento dos índices de ansiedade ligados ao perfeccionismo, a normalização da auto-exigência extrema no mundo profissional e, por outro lado, a ascensão de movimentos que valorizam o descanso, a auto-compaixão ou o “suficientismo” mostram que algo está a mudar. Talvez estejamos, colectivamente, a questionar um modelo de vida onde tudo tem de ser extraordinário.
No VER, quisemos olhar com atenção para este cansaço menos visível: o que nasce da exigência de ser extraordinário em tudo — no desempenho, nas emoções, nas escolhas. Este artigo não propõe uma apologia da mediocridade. Propõe uma reflexão: e se bastasse, às vezes, ser suficiente?
No mundo actual, não basta ser bom. É preciso ser o melhor. Mas com que custos?
A cultura da excelência transformou-se numa norma silenciosa — presente nas escolas, nas empresas, nas redes sociais, nos discursos de superação. O elogio ao mérito deu lugar a uma exigência contínua de alta performance — e à necessidade permanente de provar valor, esconder fragilidades e manter uma imagem de sucesso.
Reconhecido como uma das principais referências mundiais no estudo do perfeccionismo, autor do bestseller «The Perfection Trap» (2023) e da TED Talk Our dangerous obsession with perfectionism is getting worse , o psicólogo Thomas Curran afirma que “vivemos sob uma epidemia silenciosa de perfeccionismo”, alimentada pela ideia de que o nosso valor depende do quanto conseguimos produzir, melhorar ou impressionar.
Este ideal atinge particularmente o mundo profissional e com maus resultados. A título de exemplo, um estudo europeu publicado no Journal of Organizational Psychology (2025) mostra que ambientes corporativos que promovem padrões de excelência irrealistas acabam por gerar mais stress, menos inovação e queda no envolvimento das equipas. E uma conclusão similar é demonstrada no estudo da psicóloga Alena Sharapova, também publicado em 2025, que identifica o perfeccionismo no local de trabalho como factor de aumento de stress ocupacional, “presenteeism” e redução do bem-estar emocional.
Todavia, esta pressão não nasce apenas nas empresas. A cultura de auto-aperfeiçoamento está presente em todo o lado e, muito em particular, nas redes sociais e não apenas para os mais jovens. A investigação norueguesa Mirror, Mirror on My Screen (2024) mostra como adultos expostos a conteúdos idealizados em plataformas como o Instagram ou o LinkedIn desenvolvem formas de perfeccionismo comparativo, onde o valor pessoal é medido pela imagem, pelo impacto ou pela aprovação externa. Também a análise qualitativa realizada em The Effortless Perfection Myth aponta que adultos jovens, sobretudo as mulheres, internalizam padrões de perfeição estética e de vida pessoal por causa das redes sociais que resultam em ansiedade emocional e autocensura constante.
Como observa o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, vivemos numa “sociedade do desempenho” onde cada um se explora a si mesmo como se fosse uma start-up emocional. “A violência é interna — disfarçada de auto-exigência”, escreve no aclamado livro A Sociedade do Cansaço.
Mais do que uma busca saudável por excelência, o que muitas vezes está em causa é um modo de vida fundado no medo do fracasso, na ansiedade da comparação e na recusa do limite. Uma corrida sem linha de chegada, onde a pergunta nunca é: “sou suficiente?”, mas sempre: “o que me falta ainda fazer?”
O resultado? Um cansaço difuso, que é mais do que físico ou profissional, mais sim existencial. Um cansaço de nunca bastar.
Nunca basta: onde se aprende a não ser suficiente?
A pressão para sermos “os melhores” não começa no trabalho, mas muito antes. A escola recompensa “os primeiros”, a família aplaude os que se superam e as redes sociais amplificam permanentemente o ideal de uma vida sem falhas. A excelência, mais do que um objectivo, torna-se identidade: não é só o que fazemos, é quem deveríamos ser.
O psicólogo Thomas Curran tem-se debruçado sobre o crescimento acelerado de uma forma particular de perfeccionismo: o chamado “perfeccionismo socialmente prescrito” — ou seja, aquele que nasce da convicção de que os outros esperam de nós um desempenho irrepreensível. Em colaboração com Andrew Hill, também psicólogo e professor na York St John University, analisou quatro décadas de dados envolvendo mais de 40 mil estudantes. A conclusão é clara: desde os anos 1980, tem vindo a crescer de forma consistente a percepção de que o valor pessoal depende, acima de tudo, da performance e da aparência.
Como escreve Curran: “O perfeccionismo deixou de ser uma característica individual e tornou-se uma epidemia social — impulsionada pela comparação constante, pela cultura do desempenho e pela ilusão de que sucesso e validação são sinónimos.”
À medida que esta lógica se instala, torna-se quase impossível viver sem nos “medirmos” e igualmente quase impossível avaliarmo-nos sem nos desvalorizarmos. O resultado é uma espécie de ansiedade de desempenho existencial: nunca se faz o suficiente, nunca se é o suficiente. Na verdade, esta pressão pela excelência substitui muitas vezes vínculos por validação. O elogio vale mais que a presença. A aprovação, mais que a escuta. O resultado, mais que o processo. E essa substituição — muitas vezes invisível — mina as relações, a auto-estima e a criatividade. Como se o tempo e o corpo tivessem de estar sempre a provar mérito, utilidade ou progresso.
Estas dinâmicas são visíveis desde a infância, aprofundam-se na adolescência e consolidam-se no ambiente universitário e profissional. Um estudo suíço-alemão publicado no Frontiers in Psychology (2023) com mais de 900 adolescentes concluiu que altos níveis de perfeccionismo estavam associados à diminuição da auto-estima, maior ansiedade e evitamento social, alimentados por mensagens centradas exclusivamente na performance.
Em contexto laboral, o perfeccionismo está associado à procrastinação, ao medo de críticas e à perda de produtividade por autocensura crónica. E não por preguiça, mas por paralisia. A exigência de fazer tudo de forma irrepreensível gera medo de errar, receio do julgamento alheio e autocensura crónica. O resultado é muitas vezes o adiamento de tarefas importantes, sobretudo quando estão ligadas à exposição ou ao desempenho. O perfeccionista tende a evitar começar o que não sabe se conseguirá terminar “perfeitamente”, o que compromete a produtividade e alimenta um ciclo de ansiedade e frustração. Adiar torna-se, paradoxalmente, um mecanismo de defesa contra o medo de falhar.
Estas tendências constroem uma trajectória psicológica marcada pela insegurança e pela constante sensação de insuficiência. Como observa a investigadora e autora Brené Brown, “o perfeccionismo não é o mesmo que querer melhorar — é a crença de que, se formos perfeitos, evitaremos críticas, vergonha e rejeição”.
Mais do que um traço de personalidade, o perfeccionismo tornou-se uma expectativa cultural. E a sua aprendizagem precoce — nas casas, nas escolas, nas empresas — é hoje um dos motores invisíveis da ansiedade moderna.
Produtivos, polidos e perfeitos: o corpo como currículo
À medida que a exigência da excelência se entranha, transforma-se em autocontrolo disciplinado — não apenas da mente, mas também do corpo, do humor, da aparência e da expressão emocional. A cultura da alta performance não se limita ao que fazemos; inclui também como parecemos e como nos apresentamos.
No mundo profissional, espera-se não apenas competência, mas também compostura, eficiência, disponibilidade emocional moderada, linguagem polida, imagem controlada. Em muitos sectores, a naturalidade desaparece: o corpo transforma-se numa vitrine de autocontrolo e o rosto numa extensão do branding pessoal.
Embora nem sempre documentado em estudos formais, este fenómeno é amplamente descrito em investigações qualitativas sobre o trabalho emocional e a pressão para “encenar” atitudes e comportamentos no local de trabalho. Há cada vez mais relatos — em empresas de consultoria, publicidade, tecnologia — de profissionais que sentem a necessidade de parecer incansáveis, positivos e alinhados, mesmo quando estão exaustos ou emocionalmente desligados.
Esta vigilância sobre o corpo — e sobre as emoções — é reforçada por práticas organizacionais que normalizam a presença constante, a disponibilidade ilimitada e a positividade obrigatória. Em ambientes de alta pressão, parecer resiliente pode ser tão importante quanto sê-lo — ou até mais.
Esta cultura da “apresentação total” assenta numa lógica de auto-exigência permanente, em que o profissional não é apenas avaliado pelos resultados que entrega, mas também pela forma como se apresenta — motivado, entusiasta, sempre disponível e em sintonia com os valores da empresa. Mais do que cumprir objectivos, espera-se que personifique um ideal de excelência, como se ele próprio fosse parte do produto final. Como resume a socióloga Eva Illouz no livro The Emotional Life of Populism, “também as emoções tornaram-se um activo a gerir — não por capricho pessoal, mas por exigência estrutural”.
A cultura da excelência tem um lado luminoso — esforço, rigor, superação — mas tem também um lado mais oculto: muitas vezes, o apelo à excelência serve para mascarar ansiedade, disfarçar fragilidades ou garantir controlo num mundo incerto.
Num plano mais relacional, a obsessão por ser excelente tende a criar distância: quem está sempre a tentar provar o seu valor tem dificuldade em relaxar, em escutar, em errar com naturalidade. A vulnerabilidade, condição essencial da confiança e da criatividade, é vista como falha.
Não surpreende, por isso, que o esgotamento contemporâneo seja tanto físico como simbólico. Muitos trabalhadores não estão apenas cansados de trabalhar — estão exaustos de terem de representar continuamente. Cansados de gerir a imagem que projectam, de manter uma cordialidade mecânica, de ajustar expressões, palavras e estados de espírito para se manterem à altura das expectativas. A perfeição, neste contexto, é vigilância constante. Não apenas sobre o que se faz, mas sobre quem se aparenta ser. E esse controlo silencioso, repetido todos os dias, é uma das formas mais insidiosas de exaustão moderna.
E se bastasse ser bom o suficiente?
Em contraponto à lógica da excelência absoluta, emerge hoje uma outra possibilidade: a de simplesmente ser-se suficiente. Não por comodismo ou desleixo, mas por uma decisão consciente de escapar à armadilha do ideal inalcançável — e de reabilitar a dignidade da normalidade.
Ser suficiente não é desistir de crescer — é recusar que o crescimento se torne um imperativo opressor. É assumir que o valor de uma pessoa não está apenas no que entrega, mas também na sua capacidade de estar, de partilhar, de viver plenamente, mesmo nas imperfeições. É confiar que o que somos, tal como somos, pode ser ponto de partida legítimo — e não um rascunho a corrigir diariamente.
Esta ideia, embora ainda pouco disseminada, tem ganhado espaço em movimentos ligados à saúde mental, ao trabalho sustentável e à auto-compaixão. A psicóloga educacional norte-americana Kristin Neff tem defendido que o autoconhecimento e o autocuidado geram mais motivação duradoura do que a autocrítica constante. A sua investigação mostra que profissionais com altos níveis de auto-compaixão não só têm melhor desempenho, como são menos propensos ao burnout.
“Em paralelo, psicólogos como Barry Schwartz, autor do bestseller The Paradoxo of Choice: When More is Less, questionam a obsessão moderna com a ideia de que é preciso escolher sempre a melhor opção — em tudo: carreira, decisões, rendimento, relações. Essa busca incessante pela maximização, longe de trazer satisfação, conduz muitas vezes à exaustão e à paralisia.”
No plano laboral, a ideia de “ser suficiente” desafia a cultura das métricas infindáveis e da auto-exposição. Convida à criação de ambientes de trabalho onde não seja preciso representar um papel a cada instante, onde o erro não seja visto como uma falha inaceitável e onde a pausa não signifique fraqueza. É um apelo por espaços onde as pessoas possam ser reconhecidas como mais do que meros instrumentos de produtividade.
O “suficientismo” — termo ainda pouco comum, mas que começa a ganhar visibilidade — não propõe mediocridade, mas sim margem. Margem para respirar, para experimentar, para errar. Para viver sem que cada escolha tenha de ser optimizada, justificada, validada externamente.
Não se trata de negar o valor da excelência. Trata-se de reconhecer que o excesso de exigência crónica — interior e exterior — não é sinónimo de ambição, mas muitas vezes de medo. Medo de falhar, de desiludir, de não ser suficiente.
Talvez o verdadeiro descanso não venha apenas de parar. Mas sim de deixar de tentar provar que valemos algo — e começar, enfim, a viver como se já valêssemos.
Como resume o filósofo Alain de Botton: “Perseguir a perfeição é negar a condição humana; perseguir o progresso possível é honrá-la”. O “bom o suficiente” não é desistência — é lugar de encontro entre ambição e limite, onde a excelência deixa de ser um fardo e passa a ser consequência natural de um processo vivido com atenção, pausa e sentido.
Imagem: Rishabh Dharmani/Unsplash
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