POR JOSÉ LUIS FERNÁNDEZ FERNÁNDEZ
Quando se fala de códigos de ética na empresa há que precisar com exactidão aquilo que queremos mencionar. Um código faz sempre referência – de uma forma directa e imediata – a normas, regulamentos, leis, sanções e disposições.
E não digo que isso não seja necessário: é. Como também o são os ajustamentos, as multas, as punições – mais ou menos exemplificadoras – e, em casos extremos, o despedimento daqueles que infringirem de uma forma grave aquilo que a direcção da empresa lhes exige. E que, na realidade, habitualmente eles próprios se comprometeram por escrito a cumprir, de acordo com um requisito expresso da empresa onde trabalham.
Aqui radica a razão de ser daquilo que, em contexto empresarial, se vem denominando de compliance (no termo em inglês). Ter ajustado com precisão um sistema que assegure o cumprimento normativo, tanto das leis positivas como de outro tipo de disposições – e de soft law – que possam emanar quer das entidades reguladoras quer de associações sectoriais ou da própria empresa… Trata-se de algo fundamental, sobretudo se se aspira a evitar práticas fraudulentas e actuações corruptas; se se pretende erradicar os prejuízos da má praxis e a imoralidade nos negócios. Se se procura suprimir os incontáveis escândalos financeiros que os meios de comunicação reportam de forma tão recorrente.
Em qualquer caso, permanecer neste aspecto, de certo modo, negativo da ética não deixa de ser uma simplificação do que a própria ética significa e pode supor como proposta de melhores práticas e de projectos entusiasmantes. Ao lado da dimensão deontológica da ética – deón significa dever, em grego -, está a sua versão complementar, que almeja o utópico.
[quote_center]É fundamental compliance, se se pretende erradicar os prejuízos da má praxis e a imoralidade nos negócios, e suprimir os incontáveis escândalos financeiros[/quote_center]
É certo que há deveres a cumprir, obrigações a atender… e isso sem hesitação, sem margem para alguma dúvida, e com total e rigorosa exigibilidade. De uma forma correlativa, temos sempre, e à priori, direitos a respeitar, incontestavelmente. Pensemos na necessidade – ultimamente encorajada pela Organização das Nações Unidas – de garantir que não se violem, de nenhuma forma, os direitos humanos na dinâmica empresarial – produção deslocalizada, por exemplo… -, e inclusivamente de compensar e ressarcir os que possam ver os seus direitos desrespeitados pela actuação de uma determinada empresa ou organização… Tudo isto à margem das consequências melhores ou piores – e de todo o tipo, económicas, também – que derivem daí. As exigências básicas de justiça e respeito pela dignidade das pessoas são um exemplo de requerimento deontológico que traça linhas vermelhas, para além das quais não se deve nunca passar.
Apesar disso, esta não é senão uma parte da história: pois, ao lado da circunstância deontológica, a ética oferece um aspecto propositivo complementar. Ora, este já não se apresenta com um carácter não negociável e de exigência inquestionável. Pelo contrário, adopta um tom de oferta, de proposição, de projecto que mereceria a pena empreender… porque se percebe que é bom, e que pode ser bom para múltiplos agentes ou grupos de interesse – stakeholders – dentro e fora da empresa… e ainda que pode chegar a ter um impacto positivo na resolução de alguns dos grandes desafios com que nos confrontamos neste mundo globalizado, crescentemente desigual, lábil na ecologia, fragmentado culturalmente e demasiado tenso no tabuleiro geopolítico e estratégico das relações internacionais.
Empresas humanizadas evidenciam maturidade
A empresa que entra nesta dinâmica de contribuir para a construção de um mundo mais seguro, mais estável, mais sustentável e humano, evidencia um nível de autoconsciência e de maturidade muito acima da tendência habitual. Mas é ainda minoritária esta maneira de entender a relação que os tempos em que vivemos pedem que se estabeleça entre a empresa e a sociedade. Porém, pouco a pouco, vão-se dando passos significativos em relação ao novo papel que a empresa e os negócios podem chegar a representar, na construção de um mundo mais sustentável e, portanto, mais justo.
Neste sentido, importa referir os dezassete Objectivos de Desenvolvimento Sustentável – SDG, na sigla em inglês de Sustainable Development Goals -, que a ONU vem impulsionando há mais de dois anos e que herdaram o espírito dos antecessores Objectivos do Milénio, em vigor entre 2000 e 2015.
A ideia é simples: é necessário que as empresas se comprometam, em conjunto com a administração pública e os movimentos sociais, na resolução dos grandes desafios que o actual contexto nos coloca. A humanidade tem uma agenda notável nestes primeiros momentos do século XXI: há que assegurar a paz, há que construir um mundo menos desigual. Impõe-se a superação de enormes falhanços institucionais, a erradicação da pobreza, a gestão das alterações climáticas, a luta pela igualdade de oportunidades para todos – homens e mulheres, países ricos e países pobres -, o acesso à habitação, à energia, à educação… e por aí fora, incluindo os dezassete objectivos.
[quote_center]As exigências básicas de justiça e respeito pela dignidade das pessoas traçam linhas vermelhas para além das quais não se deve nunca passar[/quote_center]
Como é evidente, é preciso interpretar esta música num tom algo distinto ao do baixo contínuo das exigências deontológicas dos códigos de ética. Neste caso estamos a navegar pelo aspecto mais subtil e abstracto do que a empresa é e representa. Nem sequer estamos a falar de benefícios ou de resultados económicos. Neste registo, propriamente estratégico – e que deve ser primordialmente instrumentado desde o primeiro executivo, a partir da mais alta hierarquia da organização, encontramo-nos, antes, com a razão profunda de ser da empresa em concreto.
Encontramo-nos com a missão, com aquilo que dá sentido a tudo o que fazemos: com as estruturas, com o organigrama, com o design dos nossos produtos, com toda a gestão da empresa… e esta missão estratégica sustenta-se numa espécie de sonho antecipado, num tipo de projecto entusiasmante – a denominada visão. A qual necessita, por seu turno, de indicações, de algumas referências claras que vão iluminando o percurso ao longo do caminho da forte concorrência no mercado global. Esses sinais, convocados a marcar a direcção e a clarificar o modus operandi, não são mais que os valores que a empresa assume como condição indispensável para cumprir o seu objectivo estratégico. Em todos os casos, se este objectivo for alcançado, pressupondo-se que se consegue consumar a missão, a rentabilidade e os benefícios económicos virão por si mesmos.
[quote_center]Se a visão estratégica for alcançada, pressupondo-se que se consegue consumar a missão, a rentabilidade e os benefícios económicos virão por si mesmos[/quote_center]
E, juntamente com eles, crescerão também a boa reputação entre os consumidores; o respeito por parte dos concorrentes; a fidelidade dos clientes; a lealdade e o sentimento de pertença dos colaboradores; a confiança das entidades públicas, de crédito e dos accionistas; E, finalmente, a legitimidade com que a sociedade distingue a empresa.
De toda esta análise resulta que os códigos de ética empresariais cumprem um dupla função: por um lado, indicam aos trabalhadores o que é que se espera e exige deles, em matéria da conduta que devem adoptar para realizar as suas tarefas profissionais, no quadro organizacional. Por sua vez, a opinião pública pode ficar consciente de estas condições, na medida, frequente, em que – num exercício admirável de transparência – os códigos são do domínio público e se encontram disponíveis na página Web da empresa.
[quote_center]Os códigos de ética colocam à consideração de todos os grupos de interesse uma proposta que, sem deixar de ser económica, se enquadra num contexto muito mais provocador, que permite motivar as equipas e gerar uma liderança inovadora[/quote_center]
Por outro lado, colocam à consideração de todos os grupos de interesse uma proposta, um projecto que, sem deixar de ser económico, se enquadra num contexto muito mais amplo e provocador; que permite, numa situação realista, motivar as equipas e gerar uma liderança inovadora na sociedade; e que, adicionalmente, permite encontrar um sentido para o trabalho e para os esforços que, a cada dia, há que alcançar.
Este ‘a fim de’ conclusivo ilumina e complementa a partir da vertente teleológica – de telos, em grego: finalidade a que se aponta, com uma actividade – o aspecto mais inóspito – e por vezes penoso – do âmbito deontológico da ética empresarial.
Director da Cátedra de Ética Económica e Empresarial, na Universidad Pontificia Comillas, autor de vários livros sobre Ética e Responsabilidade Social Corporativa, conferencista reputado e doutorado em Filosofia