Em muitas culturas empresariais, as longas horas de trabalho ainda são usadas como um distintivo de honra, com os empregados a sacrificarem o descanso em busca do sucesso profissional. No entanto, este esforço incessante tem muitas vezes um custo elevado. A privação crónica do sono, alimentada por exigências de trabalho excessivas e por uma mentalidade de “estar sempre ligado”, não só diminui a produtividade, como também apresenta sérios riscos para a saúde. À medida que as empresas procuram a eficiência, podem, sem saber, estar a sabotar a sua própria força de trabalho ao negligenciarem uma das necessidades humanas mais fundamentais: o sono
POR HELENA OLIVEIRA
“É comum os gestores e os colegas considerarem que a falta de concentração ou de motivação, a irritabilidade e a má tomada de decisões são causadas por uma má formação, por políticas organizacionais ou pelo ambiente de trabalho. A resposta pode ser muito mais simples – falta de sono.”
The Wake-up Call: The importance of sleep in organizational life
No mundo actual de ritmo acelerado, o sono é frequentemente sacrificado em nome da produtividade. Seja devido a exigências do trabalho, compromissos sociais ou distracções digitais, milhões de pessoas encontram-se cronicamente privadas de sono, sendo vários os países que já consideram esta condição como uma crise de saúde pública. Todavia, a cultura de longas horas de trabalho continua ainda a imperar em muitas organizações, o que traz consequências negativas e preocupantes tanto para a própria produtividade, como para a saúde dos que “trabalham em excesso”.
O Dia Mundial do Sono – sob o tema, este ano, “Faça do sono uma prioridade da saúde” – assinalado na passada sexta-feira, dia 14, sublinha o papel inegociável que o sono desempenha no nosso bem-estar geral. As estatísticas apontam para que, a nível mundial, mais de um terço dos adultos sofram de insónias, com dois terços a queixarem-se de perturbações do sono pelo menos uma vez por noite e 80% a desejarem melhorar a qualidade do seu sono.
Em Portugal, os resultados de um inquérito realizado pela Comissão de Trabalho de Patologia Respiratória do Sono da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e desenvolvido em parceria com a Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, concluem que “46% dos portugueses com idade igual ou superior a 25 anos dormem menos de 6 horas por dia, 21% dizem que demoram mais de 30 minutos para adormecer, 32% consideram ter um mau sono e 40% reportam dificuldade em manter-se acordados durante a condução e outras actividades diárias.
A privação do sono refere-se à condição em que os indivíduos não obtêm um sono de qualidade suficiente, e consiste numa preocupação crescente devido aos seus efeitos profundos na saúde, nas funções cognitivas e na produtividade. À medida que a sociedade se torna cada vez mais acelerada, a prevalência da privação do sono tem aumentado, afectando milhões de pessoas em todo o mundo. Estudos revelam que um sono inadequado está associado a problemas de saúde graves, incluindo obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e perturbações da saúde mental, como a ansiedade, a depressão e a demência, o que realça a necessidade crítica de uma maior sensibilização e intervenção.
Privação do sono em contexto laboral
A somar aos exigentes horários de trabalho, as tecnologias cada vez mais omnipresentes na vida dos humanos estão igualmente a contribuir para que se durma cada vez menos e pior, e apesar de os estudos sobre o sono não serem uma área de todo nova, os avanços na biologia e na neurociência dos últimos anos têm vindo a demonstrar o verdadeiro pesadelo em que a questão se está, crescentemente, a tornar. Não só para a produtividade das empresas, mas e mais importante que tudo o resto, para a própria saúde dos trabalhadores.
Existem provas de que a perda de sono pode prejudicar os processos cognitivos activos, tais como o planeamento, a capacidade de lidar com as situações e a resolução de problemas. Em indivíduos com perturbações do sono, estes défices podem manifestar-se particularmente em comportamentos que exigem soluções criativas para problemas complexos ou com falta de informação suficiente. A energia necessária para analisar desafios ambientais desconhecidos ou para manter uma cadeia alargada de pensamentos lógicos é especialmente reduzida em indivíduos com privação de sono. Esta deficiência cognitiva interna pode assim afectar a sua capacidade de iniciar comportamentos relacionados com objectivos abstractos ou a longo prazo e, consequentemente, pode diminuir a sua motivação para trabalhar para esses objectivos.
Como já enunciado, as consequências da privação de sono vão para além do bem-estar individual, influenciando a produtividade e a segurança no local de trabalho.
No que respeita à segurança, e a título de exemplo, é de recordar que a explosão nuclear de Chernobyl, o derrame de petróleo do Exxon Valdez e o desastre do vaivém espacial Challenger foram resultado de erros humanos provocados pela sonolência.
Os trabalhadores que sofrem de sono inadequado têm frequentemente capacidades cognitivas afectadas, menor concentração e mais erros, o que leva a uma diminuição do desempenho profissional e a um aumento do absentismo.
Existem, contudo, algumas controvérsias em torno da privação do sono, as quais se centram frequentemente nas atitudes da sociedade em relação à cultura laboral, em que as longas horas de trabalho e a necessidade de elevada produtividade têm prioridade sobre a saúde. E são vários os estudos que indicam que esta realidade pode criar um paradoxo, uma vez que alguns indivíduos apresentam taxas de produtividade mais elevadas apesar de dormirem menos do que o recomendado. Todavia, este comportamento tem, normalmente, custos muito elevados, na medida em que a perpetuação de um ciclo de descanso inadequado tem um impacto futuro significativo na saúde e, consequentemente, na produtividade.
Assim, e no contexto laboral, o impacto de um sono deficiente pode manifestar-se através da redução dos níveis de energia, do aumento do esquecimento e de uma diminuição geral da qualidade do trabalho. Os indivíduos que sofrem de restrições crónicas de sono podem apresentar um comportamento de risco acrescido ou apresentar deficiências de raciocínio que resultam da procura de conclusões prematuras sem considerar todos os aspectos de um problema.
Por outro lado, há também provas de que a perda de sono pode prejudicar os processos cognitivos activos, como o planeamento, o confronto e a resolução de problemas. Em indivíduos com perturbações do sono, estes défices podem manifestar-se particularmente em comportamentos que exigem soluções criativas para problemas complexos ou com falta de informação suficiente. A energia necessária para analisar desafios ambientais desconhecidos ou para manter uma cadeia alargada de pensamentos lógicos é especialmente reduzida em indivíduos com privação de sono. Esta deficiência cognitiva interna pode assim afectar a sua capacidade de iniciar comportamentos relacionados com objectivos abstractos ou a longo prazo e, consequentemente, pode diminuir a sua motivação para trabalhar para esses objectivos.
Adicionalmente, vários estudos comprovaram que tanto a deficiência parcial como a total do sono afectam imediatamente o humor e causam irritabilidade e stress. E, no local de trabalho, estes comportamentos tornam-se visíveis e têm consequências óbvias. O aumento da irritabilidade pode afectar a forma como se fala e se responde aos outros, criando assim uma impressão negativa perante a equipa e a organização. O défice de sono também afecta emocionalmente os indivíduos, deixando-os perturbados e mentalmente exaustos. Esta instabilidade emocional pode resultar em interacções interpessoais negativas no trabalho, diminuindo o trabalho em equipa e a colaboração.
A biologia do sono
Talvez ajude levantar um pouco o véu da denominada “biologia do sono” pela mão de um dos mais reconhecidos especialistas da área, Charles Czeisler, professor de Medicina do Sono na Harvard Medical School, e que defende que as culturas empresariais que continuam a encorajar as longas jornadas de trabalho estão, simplesmente, a praticar a “antítese da boa gestão”.
De acordo com Czeisler, existem quatro factores por excelência relacionados com o sono que afectam a nossa performance cognitiva.
O número de horas consecutivas em que se está acordado
O primeiro factor está relacionado com o mecanismo homeostático que conduz ao sono durante a noite, determinado em larga escala pelo número de horas consecutivas durante as quais nos mantemos acordados durante o dia. A maioria das pessoas está convencida que controla a altura em que vai adormecer e aquela em que tem de acordar, mas a verdade é que quando nos sentimos sonolentos, é o cérebro que, involuntariamente, assume o controlo. Quando a pressão homeostática para dormir fica “elevada o suficiente”, alguns milhares de neurónios existentes no cérebro “ligam” a ignição do sono, como descobriu Charles Czeisler. Assim que tal acontece, o sono apodera-se do cérebro como se de um piloto ao volante de um automóvel se tratasse. E se, por acaso, estivermos mesmo atrás de um volante nessa altura, bastam três ou quatro segundos para sairmos da estrada.
Quantidade de sono total ao longo de vários dias
O segundo grande factor que determina a nossa capacidade para manter a atenção e uma performance cognitiva elevada dependa da quantidade de sono de que gozamos ao longo de vários dias seguidos. Se se dormir, por exemplo, cerca de oito horas por noite, os níveis de alerta mantêm-se estáveis ao longo do dia; todavia, no caso de uma qualquer desordem do sono ou de algo que diminua esse período de tempo de sono ao longo de vários dias consecutivos, começa-se a “construir” um défice de sono que contribuirá para o mau funcionamento do cérebro. Dando o exemplo dos executivos que “conseguem queimar a vela dos dois lados”, Czeisler assegura que nos casos em que, por exemplo, se dorme apenas quatro horas por noite ao longo de cinco dias seguidos, os níveis de danos cognitivos que se desenvolvem são muito similares aos que acontecem quando se fica mais de 24 horas sem dormir. Num espaço de 10 dias, esses níveis de perturbação equivalem a 48 horas sem dormir. Ou seja, o tempo de reacção é muito mais lento, a capacidade de julgamento sofre sérias obstruções, sendo que a capacidade de se solucionar problemas é gravemente afectada. Czeisler acrescenta ainda que nesse estado de privação do sono, beber uma única cerveja pode ter um impacto equivalente, na nossa capacidade de manter a performance, ao de beber um pack de seis quando estamos “normalmente” descansados.
A importância dos ciclos circadianos
A fase circadiana – a altura do dia em que o corpo humano diz que é “meia-noite” ou “amanhecer” – consiste num “dispositivo de temporização” neurológico, o qual trabalho em conjunto, mas paradoxalmente, em oposição ao estímulo homeostático para se dormir. Este “pacemaker circadiano” envia os sinais mais fortes para se dormir poucos minutos antes da hora a que normalmente acordamos e, faz o mesmo – em termos de envio de estímulos fortes para ficarmos acordados – entre uma a três horas antes de irmos para a cama. Czeisler admite que este é ainda um mistério não resolvido pela biologia, apesar de se especular que o mesmo está relacionado com o facto de, ao contrário dos outros animais, o ser humano não estar habituado às pequenas sestas ou sonecas que permitem manter este dispositivo mais equilibrado, tal como podemos ver nos cães ou nos gatos. Por seu turno, o “pacemaker circadiano” pode ajudar-nos a concentrar num determinado projecto, permitindo que nos mantenhamos acordados ao longo de um dia sem intervalos e, em simultâneo, ajuda igualmente a consolidar o sono numa noite sem interrupções. A seguir ao almoço ou a meio da tarde, quando já temos uma “reserva suficiente” do mecanismo homeostático que estimula o sono, o sistema circadiano ainda não foi activado para nos prestar essa ajuda. E é exactamente nesse período que as pessoas mais tentadas são para fazer uma sesta ou, em contrapartida, a engolir doses elevadas de cafeína, a qual bloqueia, temporariamente, os receptores do cérebro que regulam o estímulo para se dormir. Depois disso, o pacemaker circadiano começa a enviar impulsos cada vez mais fortes para o “estado de alerta” à medida que o dia vai progredindo. Depois da nossa hora habitual para acordar, os níveis de melatonina – hormona produzida pela glândula pineal que participa na regulação dos ritmos biológicos – começam a declinar. Normalmente, estes dois processos mutuamente opostos funcionam bem em conjunto, contribuindo para manter o estado de alerta durante o dia e promovendo uma noite sólida de sono.
A inércia do sono
O quarto factor que, de acordo com Czeisler, afecta a performance, está relacionado com a denominada “inércia do sono”, aquele estado “cambaleante” ou “grogue” que a maioria das pessoas sente na altura de acordar. Tal como um motor de um carro, o cérebro precisa de “aquecer” primeiro antes de arrancar. A parte do cérebro responsável pela consolidação da memória não funciona adequadamente durante os primeiros cinco a 20 minutos depois de se acordar e só atinge o pico da sua eficiência algumas horas depois. Ou seja, existe um período de transição entre o momento em que se acorda e aquele em que o cérebro se torna completamente funcional. E é por isso que nunca se deve tomar qualquer decisão importante nos minutos que se seguem ao toque do despertador.
Outras fontes consultadas:
The Global Problem of Insufficient Sleep and Its Serious Public Health Implications
Sleep Deprivation: What It Is, Symptoms, Treatment & Stages
How sleep deprivation affects work and performance?
Why Sleep Matters—The Economic Costs of Insufficient Sleep
Imagem: ©pixabay.com
Editora Executiva