POR MÁRIA POMBO
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. E se vivemos precisamente em tempos de mudanças, este reconhecido verso de Luís de Camões não poderia fazer mais sentido. É que longe vão os dias em que os homens viviam para trabalhar e as mulheres eram as cuidadoras do lar, sendo enorme a discrepância entre ambos os géneros. De facto, os padrões de vida têm vindo a alterar-se, nomeadamente através do fortalecimento das políticas de igualdade, do aumento da participação feminina no mercado de trabalho e do surgimento de modelos de parentalidade que pressupõem que ambos os progenitores devam participar de igual forma no crescimento e na educação das crianças.
A paridade de género tem, aliás, merecido um destaque crescente na agenda política internacional, constituindo, inclusivamente, a quinta meta dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. Para a alcançar, é necessário, por exemplo, reconhecer e valorizar “o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infra-estruturas e políticas de protecção social”. E isto requer um maior equilíbrio entre o trabalho e a família, obrigando à partilha de responsabilidades (em termos de assistência a familiares menores ou dependentes) por ambos os elementos do casal, e à existência, por exemplo, de uma maior flexibilidade de horários.
Foi com o intuito de perceber de que modo é que os portugueses vivem este equilíbrio entre o trabalho e a família que o Instituto Nacional de Estatística (INE) apresentou recentemente o estudo “Conciliação da vida profissional com a vida familiar – Módulo ad hoc 2018 do Inquérito ao Emprego”, concluindo que a larga maioria (84,3%) dos entrevistados considera que as responsabilidades parentais não interferem na sua actividade profissional actual.
O estudo foi dirigido a 1,6 milhões de cidadãos portugueses com idades compreendidas entre os 18 e os 64 anos, trabalhadores e com filhos ou outros dependentes. As responsabilidades de prestação de cuidados, a flexibilidade no trabalho e as interrupções de carreira (nas quais se inclui a licença parental) foram as três grandes áreas abordadas.
Flexibilidade de horários ainda é uma miragem para muitos
De acordo com a análise, 34% dos inquiridos revelam ter responsabilidade de prestação de cuidados a familiares (independentemente de se tratar de filhos maiores ou menores de 15 anos, ou de “outras situações”, como idosos dependentes), sendo que a maioria é constituída por mulheres (54,7%) e que a quase totalidade trabalha a tempo inteiro (94%) e por conta de outrem (87,3%).
Ainda dentro do módulo de responsabilidade de prestação de cuidados, os autores do estudo concluem que metade dos inquiridos (50,8%) recorre a serviços de acolhimento (como creches, amas, infantários e centros de tempos livres, independentemente de serem públicos ou privados), sendo que a larga maioria os utiliza para todos os filhos.
Entre aqueles que recorrem (ou recorreram) a estes serviços apenas para alguns filhos (que são apenas 7,7%), o facto de os cuidados serem “assegurados pelo próprio ou pelo cônjuge” é o principal motivo apresentado. O “apoio informal” prestado aos menores é a segunda justificação apresentada, seguindo-se do facto de os “menores já saberem tratar de si próprios”. Apenas 8,5% dos inquiridos apontaram os preços elevados deste tipo de serviços.
Como já foi referido, 84,3% dos respondentes revelam que as responsabilidades parentais não têm impacto na sua actividade profissional, e apenas 5,9% assumem ter mudado de emprego ou ter reduzido o horário de trabalho para poder dar um maior acompanhamento à família.
A flexibilidade no local de trabalho foi a segunda área abordada na análise, e os autores concluem que uma maioria ligeira (55,9%) consegue alterar o seu horário de entrada e/ou saída do trabalho, em pelo menos uma hora, em prol da família. Porém, para 18,3% estas alterações são muito difíceis e para 23,9% é mesmo impossível consegui-las. Isto significa que 42,2% dos inquiridos ainda têm que adaptar os horários familiares às exigências do trabalho, revelando assim que as políticas de flexibilidade não são praticadas em muitas empresas.
Adicionalmente, apenas 38,7% dos entrevistados revelam ter a possibilidade de se ausentarem do local de trabalho durante um dia inteiro, por motivos familiares, sem utilizarem dias de férias ou recorrerem a outras formas legais. De acordo com a análise, 20,4% raramente têm essa possibilidade e 38,1% não podem mesmo fazê-lo, o que permite concluir que existem diversas estratégias (como o sistema de teletrabalho) que ainda são uma realidade acessível a poucos.
Estranho é o facto de que apesar das conclusões acima referidas, mais de três quartos dos inquiridos (76,6%) considerarem não ter obstáculos à conciliação entre o trabalho e a família. Entre aqueles (22,4%) que indicaram ter algum constrangimento, a imprevisibilidade do horário ou o horário atípico foi o principal impedimento, seguindo-se o longo horário de trabalho e, por fim, a exigência da função desempenhada.
Portugueses usufruem pouco da licença parental alargada
Tendo em conta que caminhamos para uma sociedade cada vez mais igualitária e que permite que tanto os homens como as mulheres participem activamente na educação dos filhos, o último capítulo da análise do INE dedica-se às interrupções na carreira causadas, nomeadamente, por licença parental, incluindo-se neste ponto tanto a licença inicial (que tem uma duração entre quatro a cinco meses) como a alargada (que poderá acrescentar mais três meses à inicial). Esta última é, aliás, mais uma estratégia de conciliação entre o trabalho e a família.
De acordo com a análise e no âmbito das licenças parentas e de outras situações que requerem o acompanhamento dos pais, cerca de um quarto da população auscultada (24,5%) já interrompeu a sua carreira durante pelo menos um mês para cuidar de filhos ou enteados menores de 15 anos. Neste aspecto, e apesar de os homens já terem o direito a um período de licença parental igual ao das mulheres, ainda é evidente a discrepância entre ambos os géneros, já que, entre aqueles que referiram ter deixado de trabalhar, 39,8% eram mulheres e apenas 8,1% eram homens.
No seguimento das conclusões anteriores, 39,9% dos inquiridos nunca deixaram de trabalhar durante quatro semanas consecutivas para dar apoio aos filhos, sendo que, uma vez mais, existe uma diferença notória entre homens (53,3%) e mulheres (27,5%).
Adicionalmente, 70,6% dos inquiridos afirmam que já se ausentaram do trabalho por um período máximo de seis meses para cuidar de menores de 15 anos, sendo este o maior intervalo de tempo referido essencialmente por homens, na medida em que as mulheres e quando realmente necessários, se ausentam por períodos ainda maiores.
Entre aqueles que já usufruíram de períodos de ausência iguais ou superiores a um mês e por motivos de apoio à família, 30,4% fizeram-no com recurso à licença parental inicial (de quatro a cinco meses) ou alargada, não se registando grandes diferenças entre homens e mulheres.
Tendo em conta que a licença parental alargada – que se traduz na ausência de funções por um período que pode ir até três meses, podendo ser gozada imediatamente após a licença inicial ou após a licença alargada do outro progenitor – é uma estratégia de conciliação, a mesma tinha que figurar na análise do INE. Os resultados revelam que mais de metade (55,8%) dos inquiridos não a utiliza, usufruindo apenas da licença parental inicial. Apenas 10,3% dos respondentes afirmam que usufruíram da combinação de ambas as licenças – homens e mulheres.
Para além das licenças de parentalidade (que se utilizam apenas nos primeiros meses após o nascimento dos filhos), os autores do documento também analisaram em que medida os portugueses interrompem as suas carreiras para dar assistência a familiares incapacitados. Neste sentido, conclui-se que a maioria (58,3%) nunca se ausentou ou reduziu o horário de trabalho durante mais de um mês para este fim, sendo apenas 4,3% aqueles que revelam já o ter feito. Complementarmente, cerca de um terço da população auscultada (33,2%) nunca cuidou de familiares incapacitados.
Em suma, os resultados apresentados recentemente pelo INE revelam que, embora muitos portugueses não sintam que a educação e o acompanhamento dos filhos tem impacto negativo na sua actividade profissional, a verdade é que continuam a existir inúmeras barreiras à conciliação entre o trabalho e a família. E se é verdade que têm sido adoptadas variadas medidas de promoção da igualdade de género, tanto em termos de presença feminina no mercado de trabalho como a nível da participação masculina na educação dos filhos, também se conclui que o fosso continua a existir.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Mas, se longe vão os dias em que os homens viviam para trabalhar e as mulheres eram as cuidadoras do lar, longe também parecem estar os tempos em que os cidadãos podem usufruir de um verdadeiro equilíbrio entre aquela que é a fonte de rendimentos (o trabalho) e aquela que é a fonte de tudo o resto (a família).
Jornalista
Senti-me confortado ao ler o artigo que sugere que não chegámos ainda ao final da estrada da paridade laboral mas estamos no caminho e já muito foi andado. Porém, sinto que o afirmação final em que se isola a fonte de rendimento da fonte de tudo o resto é pouco fundamentada. Se o INE perguntasse a todos os inquiridos se eles preferiam ficar em casa a dar apoio à família auferindo exactamente o mesmo rendimento como se estivessem a trabalhar (e ainda se poupassem às despesas e incómodos das viagens pendulares quotidianas), a maioria preferiria continuar a sair para o trabalho. O trabalho é muito mais do que fonte de rendimento, sem prejuízo nem exclusão de outras fontes.
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