É um filme que teve origem na ideia para um estudo e que prova como é possível combater comportamentos complexos enraizados, como a corrupção, e mudar normas sociais a partir da grande tela. E teve mais sucesso do que duas campanhas nacionais anticorrupção no que respeita ao número de denúncias realizadas
POR HELENA OLIVEIRA
Chama-se “Water of Gold”, vem não de Hollywood, mas de Nollywood ou da Nigéria, a terceira maioria indústria cinematográfica do mundo e uma de duas das suas versões serviu como experiência e material para a produção de um paper realizado em co-autoria por investigadores de três universidades, o qual concluiu que os seus espectadores tiveram (e têm) maiores incentivos para reportarem acções de corrupção local.
Este é o principal resultado de uma experiência inovadora concebida para investigar se os meios de comunicação, neste caso um filme, conseguem alterar comportamentos sociais e foi esse o caso de “Water of Gold”, ou pelo menos de uma das suas versões.
O filme passa-se no delta do rio Niger e conta a história de dois irmãos: de Natufe, um pescador pobre e de Priye, o personagem típico de “quem é patinho e quer ser cisne”. Os dois irmãos têm uma relação bastante próxima até ao dia em que Priye deixa a aldeia, a ela regressando vários anos depois como um rico homem de negócios. Contra os protestos do irmão, Priye entra na política e começa a trabalhar com políticos corruptos locais. O filme mostra de que forma é que a corrupção acaba por prejudicar a vida de Natufe e dos seus vizinhos, resultando em maus cuidados de saúde, em assédio por parte da polícia e no desrespeito das preocupações ambientais por parte das empresas petrolíferas. Natufe torna-se, então, numa voz activa que denuncia o sistema corrupto que, entretanto, tomou conta da aldeia.
Foram criadas duas versões do filme: uma “terapêutica” e outra com “efeito placebo”. Na versão “terapêutica”, Natufe e um activista local conseguem ter ao seu dispor um número de telefone gratuito e, em seis cenas que perfazem 17 minutos do filme, encorajam os membros da comunidade a enviarem mensagens de texto para reportarem situações de corrupção, explicando que o seu grupo activista as irá utilizar para a realização de um relatório público. Ainda nesta versão, cenas separadas retratam homens e mulheres, sozinhos ou em grupo, a denunciarem actos corruptos através das mensagens. Estas cenas não aparecem no filme “placebo”, o qual e fora esta excepção, é idêntico à outra versão. Em ambas as versões do filme, um banner de informação aparece no ecrã quatro vezes, onde se pode ler: “Conhece casos de corrupção? Nós estamos aqui para o ouvir. SMS 50400 para reportar actos de corrupção à ‘Nigéria com Integridade’. Conte-nos a sua história. A mensagem é GRATUITA. O seu número permanecerá anónimo”. Metade das comunidades foi escolhida aleatoriamente para visualizar o filme “terapêutico” e a outra metade a versão “placebo”.
Experiência com melhores resultados do que duas campanhas nacionais anticorrupção
Tal como reportam os investigadores, o filme “Water of Gold” incentivou a divulgação de casos de corrupção entre os espectadores – mas apenas nos que visionaram a versão terapêutica. Na verdade, o filme e a mensagem que surgiu no ecrã encorajou 240 pessoas em 106 pequenas comunidades a denunciarem casos concretos e específicos de corrupção ao longo de um período de sete meses, um feito marcante comparativamente a duas campanhas de âmbito nacional que geraram apenas 140 denúncias por ano num país de 174 milhões de pessoas. Como declara Rebecca Littman, uma das co-autoras do paper em causa ao jornal interno do MIT, “quando acrescentámos as cenas extra ao filme, percebemos que eram mais as pessoas a reportar [as situações de corrupção]”.Ao combinar a mensagem com o filme, tornou-se “menos oneroso e psicologicamente mais fácil testar esta nova abordagem”, acrescenta ainda Littman
O paper que sumariza os resultados e intitulado “Motivar a adopção de novos comportamentos voltados para a comunidade: Um teste empírico na Nigéria”[em tradução livre], foi entretanto publicado na revista científica Science Advances. Os autores incluem Graeme Blair, da Universidade da Califórnia, Elizabeth Levy Paluck, do departamento de psicologia da Woodrow Wilson School pertencente à Universidade de Princeton e a já citada Littman, na altura a tirar a licenciatura em Princeton, sendo actualmente investigadora no laboratório de Cooperação Humana no MIT. Para conduzir o estudo, os investigadores “encomendaram” o filme, o qual foi financiado por um privado anónimo e pelo Canadian Institute for Advanced Research.
Ambas as versões foram igualmente acompanhadas por um novo sistema para reportar actos de corrupção via mensagem de texto, o qual foi exibido no início, no meio e no seu final. E logo após a sua distribuição, os investigadores enviaram uma mensagem de texto para cada uma das comunidades envolvidas e para todos os subscritores da maior operadora de rede móvel do país, para que estes pudessem simplesmente fazer um “reply” denunciando casos de corrupção.
No paper, os investigadores denominam o filme como “intervenção nas normas”e concebido para alterar a opinião pública no que respeita a padrões cívicos, sendo o seu principal objectivo reduzir as dificuldades logísticas percepcionadas para denunciar a corrupção, bem como fazer as pessoas sentir que reportar estes casos é – ou pode ser – uma rotina que faz parte da “boa cidadania” e que serve igualmente para influenciar os “vizinhos” a fazerem o mesmo.
A Nigéria parece constituir um bom palco no qual as campanhas anticorrupção têm espaço para crescer. Num questionário público conduzido como parte do projecto de investigação, cerca de 80% dos inquiridos afirmaram considerar a polícia, os funcionários públicos e o governo como corruptos. Cerca de 83% dos respondentes afirmaram estar “zangados” por terem de pagar subornos para levar a cabo os seus negócios, com 60% a reportarem estarem “muito zangados” por o serem obrigados a fazer.
E não foi por acaso que o estudo se centra na região do delta do rio Niger, onde quantidades massivas de produção petrolífera não têm sido acompanhadas por investimentos substanciais equivalentes em serviços e infra-estruturas para os cidadãos.
E, comparativamente a duas campanhas, realizadas entre 2011 e 2015 e conduzidas por duas organizações reconhecidas, a Integrity Nigeria e a BribeNigeria.com, o número de denúncias de corrupção originado pelo filme foi superior às 385 delações conseguidas por estas duas campanhas nacionais.
E, tal como afirma a pós-doutorada Littman, “penso que as pessoas ficaram muito surpreendidas pelo facto de a nossa experiência ter funcionado tão bem”.
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