Com profunda comoção, o mundo despede-se de Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, cuja liderança humilde e visionária redefiniu o rosto da Igreja no século XXI. Durante mais de uma década, guiou-nos pela proximidade aos pobres, pelo diálogo corajoso e por uma fé traduzida em acção concreta, inspirando crentes e não crentes. O seu legado ecoa em muitos lugares e corações — da “Economia de Francisco” ao abraço aos jovens, da incansável defesa da Casa Comum ao compromisso com a fraternidade. Um convite constante a que caminhemos juntos, com simplicidade, justiça e amor
POR HELENA OLIVEIRA

Um pouco por todo o lado, o mundo despede-se do Papa Francisco, com a reverência devida aos que marcaram a história. Não porque tenha sido infalível — ele próprio rejeitou esse pedestal —, mas porque foi radicalmente humano: alguém capaz de sentir a dor do mundo e de não fugir às suas exigências. Partindo na passada “segunda-feira do Anjo”, deixa uma herança espiritual, cultural, política e ecológica que transcende as fronteiras da fé e permanece viva no coração da Igreja e da humanidade.

A 13 de março de 2013, quando apareceu à janela da Basílica de São Pedro, o novo Papa saudaria a multidão com um simples “Fratelli e sorelli, buona sera”. Esse gesto singelo foi apenas o primeiro sinal de uma viragem histórica: a eleição de Jorge Mario Bergoglio, o primeiro Papa jesuíta, o primeiro vindo da América Latina e o primeiro a escolher o nome de Francisco. Um nome carregado de simbolismo — referência directa a São Francisco de Assis, o santo da pobreza, da paz e da fraternidade com todas as criaturas. Na escolha do nome estava já contida toda uma visão do mundo e da Igreja: uma Igreja “em saída”, simples, próxima, capaz de tocar as feridas da humanidade com compaixão e verdade.

Desde então, o Papa Francisco marcou profundamente a Igreja e o mundo. Numa época de crise ecológica, desigualdades gritantes, polarização política e feridas sociais profundas, Francisco posicionou-se como uma consciência ética global. A sua liderança espiritual não se limitou ao universo católico: conquistou crentes e não crentes com a autenticidade do seu testemunho, a ousadia das suas palavras, a força silenciosa dos seus gestos e o seu humor muito próprio.

Proximidade, escuta e misericórdia

Uma das marcas mais profundas do pontificado de Francisco foi o seu estilo pastoral: humano, próximo, encarnado na realidade concreta das pessoas. No primeiro ano do seu pontificado, lançou a exortação Evangelii Gaudium, onde propôs uma “Igreja em saída”, comprometida com os pobres e com as periferias existenciais do nosso tempo.

Ao falar dessa Igreja de portas abertas, Francisco convidou todos os cristãos a saírem do comodismo, a entrarem numa dinâmica viva de escuta e de presença. Uma Igreja que acolhe os marginalizados, que dialoga com quem duvida e denuncia a indiferença. Que não impõe, mas propõe. Que não julga, mas acompanha.

Esta visão não ficou no plano das ideias. Francisco recusou os formalismos do poder e viveu de forma coerente com o que pregava: escolheu residir na Casa de Santa Marta, calçou sapatos gastos, usou o seu velho relógio, fez telefonemas inesperados, beijou doentes e deixou-se tocar por quem sofre. A força do seu pontificado nasceu da unidade entre as palavras e os gestos.

Foi também o Papa da misericórdia — não apenas como virtude espiritual, mas como atitude radical face ao outro. Em 2015, convocou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, promovendo uma espiritualidade de acolhimento, perdão e reconciliação. Promoveu sínodos onde a escuta foi real e profunda, num caminho sinodal que hoje marca o coração da renovação eclesial.

O seu pontificado não se limitou a reformas institucionais: foi, acima de tudo, um apelo constante à conversão pessoal e comunitária. A todos — fiéis, políticos, jovens, empresários, cientistas — convidou a recentrar a vida no Evangelho, na proximidade aos que sofrem, no cuidado com os excluídos, na coragem de mudar o que precisa de ser mudado.

Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é da capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha (…). Curar as feridas, curar as feridas… E é necessário começar de baixo”, afirmou em Setembro de 2013.

Com a mesma clareza, denunciou “a economia que mata”. Disse: “Não é possível que a morte por enregelamento de um idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão.” E acrescentou: “Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco.” A sua crítica às desigualdades foi sempre inseparável da sua proposta fiel ao Evangelho.

As encíclicas enquanto tradução dos grandes desafios do século XXI

Francisco não foi apenas um Papa de documentos, mas de gestos que falavam por si. Contudo, as suas encíclicas constituem marcos fundamentais do seu pensamento, cada uma abordando uma dimensão essencial da condição humana e espelhando um compromisso profundo com a transformação do mundo através do amor e da compaixão.

A primeira encíclica, Lumen Fidei (2013), foi iniciada por Bento XVI e por ele concluída. Nela, reafirma-se a centralidade da fé como luz que orienta o ser humano num tempo de incerteza. Francisco escreve que “a fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida”, lembrando-nos que acreditar é expandir horizontes, não fugir das dificuldades.

Dois anos depois, em Laudato Si’ (2015), Francisco oferece uma reflexão profunda sobre o cuidado da casa comum. Considerada a primeira encíclica ambiental da História, representa um marco no diálogo entre fé e ecologia. Pela primeira vez, um Papa articula a crise ambiental como uma crise moral e espiritual. A afirmação “tudo está interligado” percorre todo o texto, ligando a degradação da natureza à pobreza, à cultura do descarte, e fazendo um apelo urgente à conversão ecológica. A encíclica teve um impacto global, sendo estudada em universidades seculares, em think tanks e em organizações ambientais, tornando-se uma referência ética inescapável.

Em 2020, com Fratelli Tutti, Francisco propõe um apelo vigoroso à fraternidade universal e à amizade social. Num mundo marcado pela polarização e pelo medo do outro, convida ao reencontro com o valor do diálogo, da compaixão e da política como forma de caridade. Esta encíclica denuncia com coragem as consequências do neoliberalismo e do populismo, que considera forças desagregadoras do tecido social global.

Finalmente, em 2024, publica Dilexit Nos, a sua última encíclica, onde denuncia com clareza a lógica da guerra e do consumismo, e apela à paz e à solidariedade global. Esta obra reafirma a urgência de uma ética universal do cuidado, num tempo marcado pela indiferença e pelo conflito.

A Economia de Francisco e o diálogo com os jovens

Em 2019, o Papa Francisco lançou um apelo às novas gerações, convocando jovens economistas e empreendedores de todo o mundo para repensar a economia global à luz de valores éticos e humanos. “Precisamos de uma economia que não mate, mas que cure; que não exclua, mas que inclua; que não destrua, mas que construa”, afirmou, num convite à criatividade e à coragem. Deste apelo nasceu a Economia de Francisco, um movimento que teve o seu ponto alto em Assis, em 2022, mas que se revelou, desde o início, mais do que um evento: foi o início de uma rede internacional de transformação estrutural.

Inspirados pela figura de São Francisco de Assis, milhares de jovens têm trabalhado por uma economia mais justa, sustentável e inclusiva, desenvolvendo projectos com impacto concreto nas áreas da agricultura regenerativa, finanças éticas, energias renováveis e inclusão social. Em 2024, esse esforço ganhou expressão institucional com a criação da Fundação Economia de Francisco, dedicada à investigação, à inovação empresarial e à educação cultural. Hoje, este movimento reúne não só economistas e empreendedores, mas também sociólogos, engenheiros, teólogos, ambientalistas e líderes comunitários, lado a lado com empresários “menos jovens” — numa aliança intergeracional que reflecte a convicção de Francisco de que a economia é uma responsabilidade partilhada e inseparável da dignidade humana.

Desde o início do seu pontificado, Francisco demonstrou uma atenção persistente e profundamente afectuosa aos jovens. Não os via apenas como “o futuro da Igreja”, mas como o presente vivo e transformador da humanidade. Dialogou com eles de forma directa, franca e comovente — nas Jornadas Mundiais da Juventude, nas muitas mensagens e cartas, e nos encontros pessoais que procurou manter com simplicidade e escuta.

Desafiou-os a viver com autenticidade: a rejeitar a anestesia do conformismo, a não ceder ao individualismo e à superficialidade, a sonhar em grande e a colocar os seus dons ao serviço dos outros. Pediu-lhes que cuidassem dos idosos, que ouvissem os mais sábios, que construíssem pontes entre gerações. Francisco foi um Papa que escutava. Que não teve medo das perguntas difíceis, das dúvidas, nem das inquietações — e, por isso, os jovens o reconheceram como um aliado verdadeiro, um companheiro de caminho.

Na exortação apostólica Christus Vivit (2019), voltou a insistir na centralidade dos jovens como protagonistas da mudança, afirmando com ternura: “Cristo vive e ama-te infinitamente”. Em mensagens posteriores, reforçou: “Fazei ouvir a vossa voz”, incentivando os jovens a serem criativos, críticos e empreendedores de transformação.

Quero uma Igreja jovem e para os jovens”, afirmou, com convicção. As Jornadas Mundiais da Juventude tornaram-se espaços de renovação espiritual global, com milhões de participantes. “Fazei barulho”, dizia-lhes. “Ide sem medo. Sede santos do século XXI.” E, em Lisboa, deixou uma das suas mensagens mais comoventes: “(…) não sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos!” Foi também ali que ecoou a frase que tocou multidões: “Na Igreja há espaço para todos. E, quando não houver, por favor façamos com que haja, mesmo para quem erra, para quem cai, para quem sente dificuldade. Todos, todos, todos.”

Diálogo com o mundo: mensagens para crentes e não crentes

O Papa Francisco destacou-se como um líder espiritual com vocação para o diálogo universal. Ao longo do seu pontificado, empenhou-se em construir pontes com todos: crentes e não crentes, líderes religiosos e políticos, cientistas e académicos, agentes sociais e culturais. Fê-lo com humildade, convicção e uma visão profundamente ética. Nunca viu a fé como um reduto exclusivo, mas como uma linguagem aberta à humanidade inteira. Foi esse espírito que deu forma à sua insistente proposta de uma “cultura do encontro”, em oposição ao fechamento, ao medo e à indiferença.

Promoveu um diálogo inter-religioso sem precedentes. Procurou uma relação fraterna com o Judaísmo e o Islão, tendo assinado, em 2019, com o Grande Imã de Al-Azhar, o Documento sobre a Fraternidade Humana em Abu Dhabi — um apelo corajoso à paz, ao respeito mútuo e à rejeição do extremismo. Essa declaração tornou-se referência ética global, reforçando a ideia de que a religião deve ser instrumento de reconciliação e não de divisão.

Com os líderes políticos, Francisco foi uma voz incómoda, mas necessária. Denunciou sem rodeios a corrupção, o populismo, o tráfico humano, a exploração económica, o desrespeito ambiental e a indiferença perante a dor dos mais pobres. Com os cientistas, desenvolveu um diálogo fecundo, sobretudo em torno da crise ecológica e das urgências do nosso tempo. E com o mundo laico e secular, afirmou-se como uma presença moral forte — não impositiva, mas credível, coerente, profundamente ética e espiritual.

As suas palavras ultrapassaram fronteiras religiosas e culturais. Foram ouvidas muito além dos limites da Igreja, tornando-se referência para muitos que, mesmo não partilhando da fé católica, reconheceram nele uma voz de consciência num mundo desorientado. A sua liderança moral teve impacto real em políticas públicas, especialmente nas áreas das migrações, do clima e da justiça social. O seu compromisso com os migrantes — “são rostos e nomes, não números” — teve eco em agências das Nações Unidas e em organizações não-governamentais de todo o mundo.

O papa argentino nunca pregou para dentro. Os seus discursos dirigiram-se sempre ao mundo inteiro, com uma linguagem acessível e inclusiva. Mesmo ao falar da fé, falava da vida, da dignidade, da ternura, da escuta, da compaixão. Numa entrevista, disse a uma jornalista: “Se não acreditas, reza por mim em silêncio” — e essa frase, simples e genuína, captou a essência da sua atitude: a fé como espaço de encontro e não de imposição.

No cenário internacional, desempenhou também um papel de mediação e apelo à paz. Foi o primeiro líder espiritual a participar numa cimeira do G7 e interveio em momentos críticos da diplomacia global, como a reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos ou os seus insistentes apelos à paz na Ucrânia e na Faixa de Gaza. Sempre recusou a lógica da guerra como solução e denunciou as indústrias que lucram com o conflito.

Um legado de esperança

O Papa Francisco deixa-nos um legado que é, acima de tudo, testemunho vivo de coerência evangélica. A sua figura — por vezes incompreendida, tantas vezes desafiadora — foi sempre movida por uma ternura desarmante e por um amor profundo à Igreja e ao mundo. Sacudiu hábitos, questionou estruturas, desconcertou expectativas. Mas fê-lo com a firmeza serena de quem acredita que o Evangelho é uma força transformadora de vida.

O seu legado é o de uma esperança activa: uma Igreja “em saída”, que não se fecha nos seus próprios muros, mas que se faz próxima dos pobres, dos frágeis, dos descartados. Uma fé que não se reduz a doutrinas abstractas, mas que se encarna no concreto da existência humana, com as suas feridas, angústias e sonhos.

É também um legado simultaneamente social e espiritual. Francisco ajudou-nos a compreender que o Evangelho tem implicações no modo como tratamos a criação, como organizamos a economia, como construímos relações sociais, políticas e empresariais. Insistiu que a ética não é opcional e que o cuidado — da casa comum, dos mais frágeis, da justiça — é o novo nome da responsabilidade cristã. Escutou os jovens, dialogou com todos, acolheu quem estava à margem e deu voz a quem não a tinha. Ensinou-nos que a santidade se vive no quotidiano e que a Igreja deve ser “hospital de campanha”, lugar de consolo e não de julgamento.

Francisco mostrou-nos que a fé não é um esconderijo, mas uma forma radical de presença no mundo. Nunca quis ser uma figura centralizadora; preferiu ser irmão, servidor, “pastor com o cheiro das ovelhas”. E, no entanto, será para sempre uma das vozes mais luminosas e influentes da Igreja do nosso tempo.

Agora que partimos com ele neste adeus, não podemos deixar o seu legado confinado a palavras belas ou a cerimónias tocantes. A verdadeira homenagem que lhe podemos prestar é esta: viver com coragem, cuidar com generosidade, escutar com atenção, servir com alegria.

Como ele o fez.

Foto: © vaticannews.va

Editora Executiva

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