POR HELENA OLIVEIRA
Com a evolução dos mercados e dos modelos de negócio, o termo “peer-to-peer” há muito que é pronunciado e devidamente praticado em muitas organizações. Empresas como a AirBnB ou a Uber estão a liderar o movimento que foi cunhado como a “revolução peer-to-peer”, igualmente seguido por startups mais pequenas cujas características principais incluem uma maior flexibilidade e adaptabilidade, um controlo descentralizado, um aumento da eficiência e uma resposta mais rápida à procura local.
Por outro lado, e à medida que os próprios mercados se encontram mais descentralizados, um conjunto variado de líderes de negócios tem-se vindo a questionar de que forma é que seria possível aplicar estes mesmos princípios à forma como as empresas são estruturadas e governadas, ou seja, de que forma é que se pode trabalhar no sentido de tornar as organizações mais flexíveis, adaptáveis e com uma melhor resposta à mudança?
No mundo pós-industrial, são inúmeros os novos desafios enfrentados pelas empresas: aumento de complexidade, necessidade de transparência, maior interligação, horizontes de tempo mais curtos, instabilidade económica e ambiental e uma pressão crescente para que sejam mais éticas e sustentáveis. Adicionalmente, e sem surpresas pois a empresa é uma estrutura evolutiva, o modelo de “fábrica” que reinou ao longo de todo o século XX, com o seu exército de trabalhadores-máquinas está gradualmente a ser substituído por organizações mais “planas” e menos “piramidais”, com redes peer-to-peer, plataformas, controlo descentralizado, empowerment dos trabalhadores e outras formas de “trabalho liderado pela democracia”, como escrevem num longo ensaio publicado pela Aeon e intitulado “No boss? No, thanks”, Nicolai Foss e Peter Klein, dois teóricos das organizações. As tecnologias avançadas permitem o acesso em tempo real aos trabalhadores a qualquer hora e em qualquer local e as empresas também conseguem cooperar através de meios electrónicos. E, se é assim, por que motivo são ainda necessários chefes?
A questão tem sido bastante discutida nos meios académicos e de negócios e como qualquer outra potencial moda da gestão, tem defensores e críticos. Mas a verdade é que a holacracia, cuja filosofia que lhe está subjacente dita que o poder precisa de ser igualmente distribuído por toda a rede de trabalhadores que compõe a organização, está a ganhar novos adeptos, mesmo que empresas como a Zappo – uma das pioneiras a usá-la enquanto modelo – a tenha abandonado recentemente. Como também se pode ler num interessante artigo da Quartz, e cujo título é exactamente “É a holacracia o futuro do trabalho ou apenas um culto da gestão?”, este modelo é concebido para acabar completamente com a hierarquia tradicional e substitui-la por uma nova estrutura que descentralize o poder, “fazendo de toda a gente um CEO”.
Apesar de já terem existido vários modelos anteriores com o objectivo de democratizar a gestão, o conceito foi criado por Brian Robertson, um engenheiro de software e “guru de sistemas organizacionais, que co-criou a HolacracyOne, uma consultora que ajuda na transição e “supervisiona” o desenvolvimento deste novo método para a gestão, contando com “algumas centenas de organizações que o adoptaram, estimando-se que, em todo o mundo, este número possa chegar às mil”, como se pode ler no artigo da Quartz.
Mas e como explica a própria HolocracyOne num paper destinado a todos os querem experimentar este modelo democrático, a holacracia oferece uma nova “tecnologia social” para governar e operar uma organização – que distribui de forma autêntica a autoridade, integra a flexibilidade e a auto-organização nas regras e processos através dos quais a organização se estrutura a si mesma e encara o seu próprio negócio. Basicamente e em poucas palavras, a holacracia é, simplesmente, um modelo de gestão sem gestores, ou sem chefes, que concentra o processo de tomada de decisão em equipas autogeridas em substituição da estrutura do topo para as bases, hierárquica e autoritária. Mas não é assim tão simples.
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© HolocracyOne
Holacracia, sociocracia e inteligência colectiva
Inicialmente inspirada pelas lições aprendidas com o desenvolvimento da gestão de projectos Agile e da produção lean, a holacracia visa permitir a resposta imediata a tensões e oportunidades em todos os níveis da organização. O resultado, afirma o paper, é o de uma organização que evolui constantemente e vai adaptando a sua própria estrutura e processos através de uma governança peer-to-peer contínua.
Como seria de esperar, são muito mais os líderes empresariais que têm reservas sobre a sua eficácia do que os que estão dispostos a arriscar nesta reinvenção da gestão e de tudo o que ela representa. Afinal, as funções de gestão organizadas numa estrutura hierárquica formal são cruciais para o entendimento do que é um empresa, quais os seus objectivos e qual o seu papel para o funcionamento da economia. E, até recentemente, a empresa organizada de forma tradicional tem sido encarada como uma fonte de dinamismo, de criação de riqueza e de crescimento económico. E os defensores da holacracia não são, de todo, alheios a este facto.
No paperem causa, estas reservas dos líderes de negócios na adopção de uma estrutura de poder distribuído são levadas em consideração, em particular no que respeita ao facto de se temer que empresas que arrisquem neste modelo caiam numa anarquia “sem líderes”. De acordo ainda com o paper, a holacracia é muitas vezes erradamente compreendida, constituindo um modelo que dá primazia a um processo robusto e abrangente, que substitui a gestão do topo para as bases, e que mantém todos os seus trabalhadores alinhados e unidos à medida que vão navegando no mar de complexidade diária que caracteriza a nossa era.
Tal como empresas como a AirBnB e a Uber se mostram eficazes porque foram criadas “por cima” de plataformas tecnológicas sofisticadas, as empresas que usam a holacracia são igualmente eficazes porque são construídas “por cima” de uma plataforma social sofisticada que permite à empresa desenhar-se a si mesma. De acordo com o paper, esta nova estrutura inclui os seguintes elementos:
- Uma constituição que estabelece as “regras do jogo” e redistribui formalmente a autoridade;
- Uma nova forma de estruturar a organização e definir as funções e as responsabilidades das suas pessoas;
- Um processo de decisão único que permite actualizar essas funções e as respectivas áreas de autoridade;
- E um processo de reuniões para manter as equipas em sintonia e levar a cabo o trabalho necessário em conjunto.
Como explica o paper, a holacracia substitui a tradicional gestão hierárquica em forma de pirâmide por uma estrutura baseada na ideia da holarquia. E o que é a holarquia? O termo é proveniente da palavra “hólon”, cunhada pelo jornalista, autor e activista húngaro Arthur Koestler e que significa que “as partes e o todo em sentido absoluto não existem”. Ou seja, todas as entidades, das moléculas aos seres humanos e destes aos sistemas sociais, podem ser considerados “todo” no sentido de serem estruturas integradas e também partes de “todos” maiores, em níveis superiores de complexidade. Mais tarde, o criador da Psicologia Integral, Ken Wilber, tomaria de empréstimo o conceito holístico de Koesteler, aplicando-o a átomos, moléculas, organismos, mas também a palavras, frases páginas, livro e ideias e, por fim, à própria consciência humana.
Assim, e como ilustra o paper, a holacracia na gestão pode ser considerada como um agrupamento de círculos, em que cada um deles representa uma equipa com determinados papéis, agrupados em torno de uma função específicas – seja uma equipa com um projecto singular, um departamento, uma função de apoio ou uma linha de negócio. Alguns círculos contêm sub-círculos, sendo que todos estão contidos no maior dos super-círculos, normalmente denominado como “Circulo Geral da Empresa”. Mais uma vez, cada círculo é um hólon – que é simultaneamente uma entidade auto-organizativa de pleno direito mas que faz parte de um círculo mais alargado. Desta forma, tem autonomia e autoridade para se gerir a si mesmo, mas tem também o dever de se coordenar com os demais círculos existentes no sistema, sem que exista a possibilidade de resvalar para um grupo impossível de ser liderado ou numa microgestão autocrática.
Ou, e de uma forma bastante mais simples, a “holacracia pretende organizar a empresa em torno do trabalho que precisa de ser realizado e não em torno das pessoas que o realizam”.
Esta mudança – de uma hierarquia de pessoas que gerem outras pessoas para uma holarquia de funções organizacionais – é crucial, sublinha o paper. Em vez de estruturar uma simples relação de poder entre as pessoas – em que alguns podem dar ordens a outros – a holacracia estrutura, ao invés, o “local onde o trabalho vive” no interior do sistema geral, bem como as fronteiras entre as várias entidades que realizam esse mesmo trabalho.
Até chegar a este novo sistema, Robertson foi beber a várias fontes, inspirando-se em vários autores que se dedicaram tanto às teorias da organização como à psicologia. O famoso livro de Peter Senge, “The Fifth Discipline”, publicado no início dos anos de 1990 e, mais recentemente, a fórmula de produtividade de David Allen, o autor de “Getting Things Done” (e sobre o qual o VER já escreveu) ajudaram-no a trabalhar conceitos ainda mais “antigos”, como a sociocracia, termo cunhado pelo sociólogo Augusto Comte, no século XIX e que evoluiu para um sistema de governo no qual as decisões são tomadas considerando-se a opinião de todos os indivíduos de determinada sociedade. Também na sociocracia, a sociedade actua como um organismo vivo, sendo fundamental a existência do princípio de auto-organização, o qual assenta nas teorias sistémicas da inteligência colectiva.
A governança que ocorre em todos os níveis da organização
Nas organizações convencionais, a governança tende a ter lugar apenas no topo, sendo missão ou do conselho de administração ou de uma equipa de executivos de topo. E, normalmente, os estatutos da empresa conferem o poder de governo das operações da organização a uma só pessoa – seja um CEO, um presidente ou um gestor executivo. Todas as funções, as estruturas de reporte e as responsabilidades são distribuídas de cima para baixo e nem sempre estão relacionadas com a gestão diária da empresa.
De acordo com os seus defensores, uma das mais significativas inovações da holacracia é fazer da governança algo que acontece em todos os níveis da organização. Ou seja, esta deixa de ser função exclusiva da liderança, tornando-se um processo contínuo que acontece em cada um dos círculos e durante reuniões específicas para o efeito. Ou seja, a holacracia chama a si algumas das funções organizacionais que tradicionalmente estão nas mãos do CEO ou dos executivos seniores e transforma-as em processos peer-to-peer que são accionados em toda a organização e com a participação de todos.
Por outro lado, a abordagem à governança é impulsionada pela tensão, o que significa que qualquer uma questão pode ser adicionada à agenda sempre que um membro da equipa sente “um gapexistente entre como as coisas são e como poderiam ser”. Como explica o paper, uma tensão tanto pode ser um problema – algo que não está a funcionar – ou uma oportunidade que não está a ser aproveitada. Nas reuniões de governança, que normalmente acontecem uma vez por mês, os membros da equipa podem trazer para o debate tensões específicas em torno dos papéis, das responsabilidades ou da autoridade na tomada de decisão, em conjunto com as expectativas de cada um. Estas tensões são então “processadas” através de um formato “integrativo” específico da reunião para juntar e considerar o input de cada um dos membros da equipa, sem que a sua arbitragem dependa de um líder – mas sim de um facilitador eleito -, seguindo-se depois os passos estabelecidos na constituição da holacracia.
Ao distribuir a governança por cada um e por todos os círculos, a capacidade da organização para captar e aproveitar os diversos inputs é significativamente ampliada e na medida em que as questões subjacentes à mesma são tão importante na base como no topo da empresa. Na verdade, acreditam os defensores, aqueles que trabalham na linha da frente estão melhor posicionados para levar a cabo melhorias contínuas no interior das suas áreas de especialidade e para monitorizar os resultados no dia-a-dia. A ideia é que neste mundo em constante e acelerada mudança a governança constitua uma parte contínua da forma como as empresas operam, e em todos os níveis.
Uma melhor forma de trabalhar ou meio caminho andado para o caos?
Como escrevem os autores da Aeon, que são críticos deste sistema, apesar das grandes mudanças tecnológicas e demográficas, em conjunto com a globalização, a ideia básica de “empresa”, a natureza da sua propriedade e responsabilidade e a forma como as pessoas coordenam as tarefas que nela devem ser realizadas continuam a ser as mesmas de sempre.
As empresas são e foram concebidas para produzir bens e serviços através da combinação de recursos, incluindo o trabalho e decisões têm de ser tomadas sobre o que é e como é produzido. Os trabalhadores precisam de informações, ferramentas, equipamento e motivação para levar a bom porto o seu trabalho. E, por fim, indivíduos ou grupos de pessoas têm de assumir a responsabilidade final pelas acções que esta leva a cabo. E tudo isto se mantém verdade na economia da actualidade.
Opinião diferente têm os defensores da halocracia afirmando que quando este modelo é praticado a “organização não só evolui como tem um carácter evolucionário”. O fundador da HolocracyOne, Brian Robertson, cita um economista da Universidade de Oxford, Eric Beinhocker, o qual descreve a evolução como se de um algoritmo se tratasse: “uma fórmula universal para a inovação (…) que, e através da tentativa e erro, cria novas concepções e soluciona problemas difíceis”. O economista explica ainda que apesar de os mercados serem extremamente dinâmicos, a “verdade brutal” é a de que a maioria das empresas não o são. Ou seja, as organizações têm uma capacidade muito limitada para evoluírem e se adaptarem.
Apesar de os teóricos Nicolai Foss e Peter Chein, que assinam o extenso artigo da Aeon sobre aquilo que consideram ser só mais uma moda, terem a noção de que a autoridade nas organizações é hoje exercida de uma forma diferente face à “gestão científica” do taylorismo, na medida em que os trabalhadores são muito mais autónomos e não precisam de um chefe que lhes diga o que fazer e com quem interagir diariamente, continuam a defende acerrimamente que para qualquer empresa que pretenda florescer e ultrapassar os muitos desafios do ambiente de negócios da actualidade, é absolutamente necessária a existência de um líder forte (ou uma equipa de gestores seniores) que exerça estilos de liderança autoritários. Os autores dão exemplos de empresas tão diferentes como a Disney, a Apple, a Xerox ou a IBM, nas quais “centralizar a autoridade para a tomada de decisões continua a consistir na forma mais eficaz para as empresas se adaptarem às mudanças não antecipadas”.
Mas para os defensores da holacracia é exactamente devido ao facto de as empresas se terem de adaptar a mudanças por vezes drásticas que as mesmas devem funcionar como entidades evolutivas e, por consequência, adaptativas. De regresso ao economista Beinhocker, a sua convicção é a de que é necessário “trazer a evolução para o interior da organização” e deixar “as rodas da diferenciação, da selecção e da ampliação girar no interior das quatro paredes da empresa”, sendo essa a proposta e oferta da holacracia, na medida em incorpora internamente o ADN organizacional que permite a capacidade para o dinamismo e para a evolução contínua.
Complementarmente, esta filosofia reflecte uma tendência societal mais alargada no sentido de uma nova forma de estruturar os sistemas e interacções humanos, aspirando a contribuir para essa mudança abandonando os modelos autocráticos ultrapassados.
O paperda HolocracyOne afirma ainda que o seu grande objectivo é criar organizações que sejam mais ágeis, mais rápidas e que sejam bem-sucedidas a perseguir e atingir o seu objectivo, livres da tirania do planeamento do topo para as bases ou do consenso generalizado, impossível de alcançar. Apesar de estarem igualmente cientes de que este novo sistema não é nenhuma “bala de prata” e que é necessário um trabalho árduo e muita prática para dominar esta forma radicalmente nova de organização, estão convictos que esta é a mais eficaz forma de gerir organizações no século XXI.
Como já enunciado anteriormente, o paper cita ainda o reconhecido “guru da produtividade” David Allen, autor do best-seller Getting Things Done, como um convicto praticante deste estilo de gestão: “a holacracia não é uma panaceia e não resolverá todas as tensões e dilemas de uma organização. Mas, e de acordo com a minha experiência, fornece o terreno mais estável para os reconhecer, enquadrar e abordar”, afirma.
Se esta poderá ser apenas uma moda da gestão ou uma tendência futura que virá a ganhar mais adeptos, não sabemos. Mas, e ao contrário do que o artigo da Quartz sugere – que os superiores hierárquicos são mais necessários do que nunca exactamente na era em que vivemos – a verdade é que, em alguns casos, parece fazer sentido.
Editora Executiva