Este aparelho, que vai ocupar um compartimento do cosmos, será uma espécie de carruagem completamente às escuras, um fantasma gelado ao serviço da criatura mais maravilhosa que se conhece, para que ela, vendo melhor o que a rodeia, se veja melhor a si própria
POR PEDRO COTRIM

Há um século acreditava-se que a Via Láctea era tudo o que existia no Universo, e também que era estável e permanente. Fosse o Universo o que quer que fosse, os cientistas tinham como certo que tinha sido sempre assim e que iria ser para sempre assim, sem princípio nem fim, uma espécie de Arcádia igualmente não corrompida pela civilização, pois que a humanidade jamais teria modos de lhe causar sobressaltos.

Houve um senhor com nome de telescópio que virou tudo de pernas para o ar. Onde se lê dura lex sed lex deverá ler-se dura scientia sed scientia, pois que o tribunal da física e da experimentação não admite sofismas. E a história é simples.

Hubble, Edwin Hubble, podia este espião ao serviço da humanidade responder quando lhe indagavam pela graça. Em vez de andar atrás dos maus, encavalitou-se numa montanha da Califórnia em 1919 e começou a observar o céu através do telescópio novinho em folha do observatório do Monte Wilson, na altura o mais potente do mundo.

A sua primeira grande descoberta ocorreu em 1924, quando detectou um tipo de estrelas, designadas como cefeidas, numa mancha esbranquiçada na até então conhecida como nebulosa de Andrómeda e que era tida como parte da Via Láctea. Devido ao facto de o seu brilho variar em ciclos muito regulares, a distância real das cefeidas pode ser calculada com grande precisão, e Hubble descobriu que não era possível que aquela estrela estivesse dentro dos limites conhecidos da galáxia.

Não, de modo algum, a nebulosa de Andrómeda teria de ser uma galáxia totalmente distinta, outra ilha de estrelas num universo muito maior do que se supunha. E assim foi. O Sistema Solar também crescera subitamente a partir de William Herschel e Úrano em 1781. Sabemos hoje que Andrómeda, uma galáxia em espiral como a nossa, pertence a um aglomerado de galáxias «vizinhas» conhecido como Grupo Local. A sua distância até nós é de aproximadamente 2,5 milhões de anos-luz e quase se pode dizer que é tão vizinha da Via Láctea no Universo quanto a Lua é da Terra no Sistema Solar.

Outras galáxias começaram depois a surgir e em breve Hubble tinha catalogado pelo menos duas dúzias delas. Com cada uma que encontrava, o Universo tornava-se maior. Não muito depois, em 1929, fez porventura a sua maior descoberta. Ao analisar o espectro de cores das suas galáxias, descobriu que a maioria se afastava rapidamente de nós e das restantes; e que quanto mais longe se encontravam, mais depressa se moviam (v. Caixa).

Se a cor muda para azul, o objecto está a aproximar-se. Se muda para vermelho, está a afastar-se. A maioria das galáxias observadas por Hubble estava «avermelhada», significando que se estavam a afastar. «Estável e permanente nem a mudança, quanto mais a velocidade das galáxias», poderia dizer Heráclito se soubesse desta descoberta ocorrida dois mil e quatrocentos anos depois de ter vivido.

Heráclito não viu galáxias e Hubble não viu o telescópio baptizado em sua honra. Nem sequer a sua concepção, já dentro dos anos 1970 e com estima para lançamento em 1983. Houve assuntos técnicos para resolver, a omnipresente economia, pois que a ideia de que não se explora o espaço quando há outros problemas para resolver se agiganta, apesar de não ser inteiramente verdadeira e valendo a pena mencionar os cobertores prateados e dourados que se usam em situações de emergência e que salvam muitas vidas por ano e que foram inventados porque fomos ao espaço. Há muito mais aqui do que se supõe e diz-se que não se nega à partida uma ciência que se desconhece. Não se desdenhe pois o espaço.

Além de todas estas razões, uma tragédia. O desastre do Challenger, em 1986, fez parar o programa Space Shuttle durante 32 meses, e o telescópio viu finalmente a luz do espaço em 1990. E apenas quando estava em órbita se percebeu que o espelho mais sensível do mundo tinha um pequeno defeito que lhe causava miopia. Careceu de mais três anos de missões tripuladas para lhe tratar desta avaria e finalmente viu-se muito mais do que o olhar alcança. Terá havido mais ar no cone oco do Hubble que em muitos pulmões quando as imagens dos primórdios do Universo chegaram à Terra.

Por defeito, se procurarmos imagens do céu profundo, o que encontramos são chapas do Hubble. Não há, na terra nem no céu, nada que se compare a este telescópio, que foi um dos programas espaciais mais bem-sucedidos de sempre. O telescópio padece agora de alguns problemas relacionados com a idade avançada que poderiam ser remendados se o programa Space Shuttle não tivesse sido descontinuado, pois o aparelho ficou inalcançável.

A questão maior reside no facto de circular numa LEO, ou Low Earth Orbit, significando que na sua trajectória ainda percorre atmosfera. Muito residual, certamente, mas certamente suficiente para lhe causar arrasto, neste caso constituído pelo atrito das partículas da termosfera com a aeronave, mais um termo náutico levado para os céus e é também muito acertado que a navegação lá por cima se designe «astronáutica». Os 550 quilómetros que a NASA nos responde agora sobre a altitude do telescópio vão diminuir lentamente, e depois muito bruscamente. Menos altitude mais arrasto e mais arrasto menos altitude, que como vimos a física não mente.

O Hubble foi concebido para ser acedido, reparado e melhorado em órbita, e nos últimos 25 anos recebeu várias missões, sempre através do Space Shuttle, sendo que no final do arranjo o Shuttle empurrava o Hubble para uma órbita mais elevada para obviar o arrasto mencionado.

O círculo vicioso do decaimento orbital fará o Hubble cair na Terra entre 2028 e 2040. Parece um intervalo dilatado, mas assim é devido à actividade solar que afecta a atmosfera terrestre e também o arrasto no Hubble, havendo muitas variáveis nesta matriz. Não fora contudo planeado este fim.

Numa das hipóteses propunha-se que o Hubble fosse trazido para Terra e exposto num museu da NASA ou no Smithsonian. Seria belo ver de perto aquele que olhou para as estrelas longínquas, mas será quase certamente remetido para enredos novelescos.

Temos agora o telescópio James Webb finalmente pronto para o lançamento. Não é bem um substituto do Hubble, podendo dizer-se mais ajustadamente que é um sucessor.

Desde que foi concebido, tomou mais tempo que a totalidade do programa lunar, incluindo as missões Mercury, Gemini e Apollo. 40 milhões de horas de trabalho, e se um número assim grande faz confusão podemos pensar em duas mil pessoas a trabalhar a tempo inteiro durante dez anos no projecto.

Grandes projectos são muitas vezes afectados por grandes atrasos, e mais uma vez os problemas financeiros surgiram e a corrida para cima ficou para trás. E mais uma vez se afirma que a decisão é mais complexa do que parece. Em 1996, quando foi concebido, esperava-se que fosse lançado em 2007 e não se sabia muito bem como tratar dele. Alguma da tecnologia que seria essencial era ainda desconhecida na altura da sua concepção, o que constitui um maravilhoso paradoxo da ciência, um pouco como desconhecer o DNA ou o genoma, mas que num intervalo de tempo bem mensurado os iríamos conhecer e conforme sucedeu no passado.

Mesmo nos instantes finais uma avaria no veículo de lançamento adiou mais uns dias este lançamento para o dia 22 de Dezembro de 2021. Se não houver mais nada a transtornar, a grande lente no céu sairá da Terra em menos de três semanas.

Embora se pense que o James Webb e o Hubble são muito semelhantes, serão mais primos afastados do que irmãos. O Hubble foi concebido para operar no espectro do visível e dos raios ultravioletas, com algumas capacidades limitadas para operar na zona dos infravermelhos. O James Webb foi concebido para trabalhar sobretudo no espectro dos infravermelhos, e esta circunstância torna-os realmente muito distintos. O espelho do James Webb terá 6,5 metros de diâmetro contra 2,4 do Hubble. Um espelho desta dimensão nunca poderia ser lançado num foguetão, sendo constituído por 18 secções hexagonais controladas de modo individual.

Haverá outra grande diferença em relação à disposição orbital dos dois telescópios. O James Webb será colocado em L2, o ponto de Lagrange número 2. Significa isto que não orbitará a Terra, mas o conjunto Terra-Sol. L2 é um ponto de que dista cerca de 1,5 milhões de quilómetros da Terra (quatro vezes mais distante que a Lua) na direcção oposta à do Sol e onde as forças centrífugas da estrela e da nossa casa estarão mais ou menos equilibradas pela força centrípeta da órbita do próprio telescópio, que assim conseguirá manter esta posição relativa com correcções ligeiras.

Estará equipado com um escudo grande para protecção de todos os tipos de radiação que vierem do conjunto Sol-Terra-Lua, corpos aproximadamente alinhados neste L2. Este escudo terá cinco camadas separadas com o melhor isolante que existe: o vácuo.

Se alguma coisa correr mal com o James Webb, não vai ser possível consertá-lo. Se for necessário ir até ao telescópio, a viagem tripulada poderá demorar vários anos a ser engendrada. Não foi concebido para reparações, sendo sujeito a testes e todas as redundâncias que a mente humana e a tecnologia conseguem imaginar. Tudo terá de correr perfeitamente, com testes dos testes dos testes. O erro inicial do Hubble, que se deveu sobretudo a fazer vista grossa num ensaio, não poderá aqui ser corrigido.

Nunca se construiu nada como o James Webb, que vai viver num mundo gelado, a 230 graus negativos, e não pode ser afectado por IV e UV que não provenha das fontes que se pretendem estudar, tendo por isso ainda um sistema de arrefecimento, apesar desta gélida temperatura ambiente. É grande o nosso engenho para escapar à inescapável física.

Este aparelho, que vai ocupar um compartimento do cosmos, será uma espécie de carruagem completamente às escuras, um fantasma gelado ao serviço da criatura mais maravilhosa que se conhece, para que ela, vendo melhor o que a rodeia, se veja melhor a si própria.


O efeito doppler

A cor de um objecto que emite radiação muda à medida que se aproxima ou afasta de nós, tal como sucede com a tonalidade da sirene de uma ambulância à medida que se aproxima de nós ou se afasta: é o efeito doppler que comprime ou distende as ondas. Também o vemos nas ecografias, e o sangue que se afasta da sonda aparece vermelho no ecrã e o que se aproxima azula-se. Essencial para compreender os fluxos das válvulas num ecocardiograma, por exemplo, e também para o James Webb Space Telescope.

As galáxias afastam-se da Terra porque o próprio tecido do cosmos está em expansão. Enquanto as galáxias se deslocam – a Galáxia de Andrómeda e a Via Láctea haverão de colidir muitos milhares de milhões de anos depois de o Sol explodir – ocorre um fenómeno geral de desvio para o vermelho à medida que o universo fica maior.

Os desvios para o vermelho e para o azul aplicam-se a qualquer parte do espectro electromagnético, incluindo ondas de rádio, infravermelhos e ultravioletas, raios X e raios gama. Se as ondas de rádio são «deslocadas» para a zona ultravioleta do espectro, diz-se que são deslocadas para o azul ou direccionadas para frequências mais altas. Os raios gama «deslocados» para ondas de rádio significam uma mudança para uma frequência mais baixa ou um desvio para o vermelho, e tem tudo isto das cores a ver com aproximação ou afastamento. É por tudo isto que se torna essencial descobrir a totalidade da impressão digital das galáxias.