“O tema ‘construir a esperança’ é sugestivo e a esperança também nos constrói a nós. A esperança é uma virtude, porque vem de Deus: abre os horizontes, ajuda-nos e impulsiona a sua realização”. Foi desta forma que o Cardeal de Lisboa deu início a uma conferência online, promovida pela ACEGE, na passada semana. Em “tempos inéditos” e de enorme cautela, o cardeal-patriarca de Lisboa alerta para a necessidade de se unirem esforços entre os países afectados, sublinhando que nenhum grupo será capaz, por si só, de resolver os desafios colocados pela pandemia. Mas acredita que, em grande parte, “tudo isto nos tornou mais próximos”, principalmente “em termos de famílias e vizinhanças reconstruídas”
POR HELENA OLIVEIRA
No âmbito do ciclo de conferências/webinars que a Associação Cristã de Empresários e Gestores está a realizar, e exactamente sob o lema de “construir a esperança”, D. Manuel Clemente partilhou com uma audiência de cerca de 250 pessoas a visão que tem da presente pandemia e algumas preocupações não só com o presente, mas também com o futuro.
Através de um conjunto de perguntas colocadas pelos gestores e empresários presentes, o cardeal-patriarca falou dos vários desafios que se colocam à sociedade nestes “tempos inéditos”, de lições positivas – porque também as há – a retirar do estado de confinamento a que o país tem estado sujeito, sublinhando que a “reconstrução económica” não poderá ser feita apenas pelo mundo empresarial e relembrando, mais uma vez, que é através dos quatro princípios orientadores da Doutrina Social da Igreja – dignidade da pessoa humana, bem comum, subsidiariedade e solidariedade – que poderão ser encontradas muitas respostas para a incerteza que actualmente nos consome.
Sublinhando a importância de “vivermos em grupo, não nos isolarmos e a não querermos resolver as coisas sozinhos”- o Cardeal de Lisboa frisou também que é “da discussão e da partilha que nasce a luz”, porque “várias cabeças a pensar no mesmo sentido e na mesma inspiração” é o que dá origem à acção – o que também é a missão da ACEGE. Dai que, defende, “a esperança não é algo de futuro, mas algo que já está em construção”.
Apesar das muitas incógnitas que subsistem ainda face a este vírus que está a mudar as nossas vidas, D. Manuel Clemente quis conferir um tom positivo às suas palavras, afirmando ainda que “a esperança é performativa”. Ou seja, “não se anuncia apenas, realiza-se, vai abrindo caminho na medida em que se exercita” e “o que se consegue fazer não apesar das pessoas, mas com as pessoas constitui uma enorme valorização” e uma via de criação para um “futuro mais sustentável”. Uma “esperança activa e activada” foi como lhe chamou.
“Vai ser de outra maneira”
Acreditando que “não vai ser rapidamente que o problema de saúde estará controlado”, o cardeal de Lisboa está também convicto que nos próximos tempos não vamos interagir e relacionarmo-nos da mesma maneira”. Citando uma entrevista com o epidemiologista [Johan Giesecke] que está a acompanhar a situação na Suécia, país que não seguiu exactamente a mesma estratégia que os outros, na qual o médico em causa afirma que “uma das coisas que tem resguardado a população sueca é exactamente o facto de não se aproximarem tanto, tão habitualmente e tão tangivelmente como outras populações”, D. Manuel Clemente está seguro de que a” nossa maneira de estarmos uns com os outros, a distância relativa, os cuidados de higiene, as sucessivas lavagens de mãos, as purificações do ambiente, tudo isso vai passar a fazer parte do no nosso quotidiano”. Apesar de não ser possível toda a gente continuar em teletrabalho para sempre, não nos podemos esquecer, em nenhum momento, que estamos perante a presença de um vírus para o qual não existe vacina, sem “sabermos se vai existir um dia”, alerta, o que obriga a “muito cuidado”. Preocupado com a actividade económica e com o facto de nos termos habituado a poder “estar em todo o lado” – o que para já deixou de ser possível – o cardeal-patriarca afirma que há que ter “em linha de conta todos os aspectos da vida social, empresarial, escolar, da economia e até da Igreja”, observando que a relação pessoa – espaço passou a ser extremamente importante e um dos grandes motivos de preocupação da própria Conferência Episcopal.
“Há muitas questões que se colocam e que obscurecem o futuro”, declarou e “voltar ao que tínhamos em Fevereiro passado não vai acontecer”. “Vai ser de outra maneira”, assevera, “ e teremos de ser criativos e andar para a frente”.
“Estamos mais próximos em termos de famílias e vizinhanças reconstruídas”
Questionado sobre se esta crise trouxe alguns bons ensinamentos, o cardeal de Lisboa quis dizer, em primeiro lugar que “nós, em sociedade, nos portámos muito bem, principalmente tendo em conta que foi uma situação que aconteceu de um momento para o outro e de chofre”. Recordando um mês de Fevereiro em que, e reunidos em Fátima, os bispos, tal como a sociedade portuguesa no geral, se encontravam cheios de projectos, e que de um momento para o outro, todos somos obrigados a vir para casa, é de elogiar, diz, não só o facto de, enquanto sociedade, termos “aguentado muito bem o restringir das nossas movimentações e o confinamento físico”, o que por si só significa que, a seu ver, “somos um povo disciplinado e que tivemos consciência do perigo”, mas tudo o que “apareceu entretanto”. Ou seja, “outros contactos que se criaram entre as famílias”, “algumas novas vizinhanças que se estabeleceram”, uma maior preocupação, por exemplo, “com os parentes e/ou com os idosos que se encontravam em lares” e, no geral, “tudo o que se fez em relação a outras pessoas que precisavam de ajuda”.
“Creio que, em grande parte, isto nos tornou mais próximos”, declarou. “Mais próximos da consciência de um perigo que é comum, porque nos atinge a todos de uma maneira ou outra, mas também mais próximos em termos de famílias e vizinhanças reconstruídas”.
O cardeal de Lisboa sublinhou igualmente a actividade dos sacerdotes portugueses os quais, “com criatividade”, conseguiram “através da internet, ou através de todos estes meios digitais que hoje estão disponíveis, estar presentes junto dos seus paroquianos para lhes ‘enviarem’ as suas orações e celebrações, para continuarem a fazer o seu acompanhamento espiritual”.
Já no campo empresarial, a explosão do teletrabalho e dos seus “congéneres”, permitiu igualmente que “ a vida nas empresas continuasse a funcionar”.
“Creio que tudo isto representa um valor para o futuro. Nas diversas acepções da nossa sociedade, na resiliência e na criatividade que ela tem demonstrado, nas vizinhanças que tem encontrado e nas redes de solidariedade que se foram criando. Isto é um valor. E é o melhor valor que temos agora para a reconstrução que há-de vir. Por isso, estou confiante”, rematou.
“Simples como as pombas, mas prudentes como as serpentes”
Na medida em que estamos perante um problema pandémico, de saúde, D. Manuel Clemente fez questão de sublinhar que temos de ter em conta “o que nos diz a investigação, aquilo que nos diz o corpo clínico, aquilo que nos diz a Direcção Geral de Saúde, que é quem tem a obrigação de recolher e veicular a informação”. Mais que o Estado,”são as autoridades de saúde que nos importam”, diz, afirmando igualmente que, em termos de futuro, a Igreja tem já um grupo de trabalho formado por “gente da medicina e da pastoral” que está a acompanhar atentamente o que se passa em vários países, os avanços e os recuos, lembrando que, por vezes, “existe alguma precipitação que pode dar mau resultado”. Colher os dados, reflectir sobre os mesmos e avançar com toda a cautela, porque estamos diante de uma ameaça completamente nova, é o caminho que a Igreja pretende seguir, pois “estamos cá para resolver o problema e não para o agravar”. Daí ter relembrado que mal as escolas foram encerradas, o mesmo aconteceu com as catequeses presenciais – D. Manuel aproveitou também a ocasião para elogiar o “trabalho fantástico que está a ser feito em todo o país por parte de dezenas de milhares de catequistas” -, sem esquecer que foram de imediato seguidas também “as recomendações para serem interrompidas as celebrações comunitárias para podermos garantir que o vírus não se transmitisse facilmente”.
Afirmando que tem já um “esboço” do que se pretende fazer [em relação ao retomar das celebrações], o cardeal-patriarca reforçou a ideia de que é necessária muita cautela, para não existirem precipitações “Existe uma série de problema que, pela sua novidade, nos obriga a que tenhamos de ser necessariamente muito prudentes”, repetiu. “Sejamos pudentes como Jesus nos ensina a ser. Simples como as pombas, mas prudentes como as serpentes”, acrescentou.
“Nenhum país vai conseguir resolver isto sozinho”
Questionado também sobre o complexo balanço entre a segurança sanitária e segurança económica e sobre as decisões difíceis, que podem chegar até ao despedimento, que os gestores são e serão obrigados a fazer, o cardeal de Lisboa deixou bem claro que “se a pergunta for ‘como é que o mundo empresarial pode responder a um tema tão vasto’, a minha resposta será ‘só por si, não pode’”.
E é exactamente por isso, diz, “que nos constituímos enquanto sociedades organizadas como estados, os quais são os órgãos que criámos para gerir o bem comum”. Portanto, “todos nós contribuímos para essa máquina, passo o termo, para chegarmos onde sozinhos não podemos chegar”, assegura.
E a sua proposta para a resolução das várias questões que, tanto a nível económico como social, se colocam com a presente crise, reside naquilo que, apesar de já inúmeras vezes mencionado, continua a valer a pena ser repetido: “os quatro princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja, ou seja, as quatro orientações que nós, a partir de atitude de Jesus Cristo e do que essa atitude tem acrescentado ao longo destes dois mil anos, propomos para que as questões se resolvam bem”.
Em primeiro lugar, o princípio da dignidade da pessoa humana. “A pessoa humana é o principal valor deste mundo e não pode ser dispensada nem ultrapassada. Não pensemos resolver qualquer problema dispensando a pessoa humana”, pois sempre que esta é relativizada, tudo o resto cai por terra, assegura com veemência.
“Nenhum país vai conseguir resolver isto sozinho”,assevera igualmente. “Terá de ser resolvido em termos de União Europeia no que à Europa diz respeito e em termos mais vastos referentes a outros espaços. É o caso típico de que quando a dignidade da pessoa humana não prevalece enquanto valor fundamental, os problemas, mesmo que, no curto prazo, pareçam resolver-se para alguns, a médio e longo prazo trazem problemáticas ainda maiores”. E, insiste, “quando a dignidade da pessoa humana não prevalece em todos e em cada um, não se resolve a prazo problema nenhum”.
O segundo princípio é o do bem comum. E significa que “em cada sociedade organizada – ou o Estado, que era assim como aprendíamos antigamente – se recolham um conjunto de meios que permitam a realização plena de cada um dos cidadãos”. “O Estado existe para o bem comum”, reforça, “ e estes dois princípios têm de se articular com mais dois, que são a solidariedade – para que ninguém fique de fora, e a subsidiariedade – para que as instâncias de topo, ou o Estado, não dispensem, mas acatem e promovam aquilo que por iniciativa dos cidadãos, pessoalmente ou em grupo – que é o caso dos grupos empresariais – possam fazer em prol de um benefício comum”. E é exactamente através da conjugação destes dois factores que, a seu ver, mais uma vez as coisas se vão resolver.
“Precisamos de Estado e de cooperação entre estados, como primeiros órgãos do bem comum para resolver aquilo que nenhum grupo pode resolver sozinho”, sublinhando mais uma vez que “nenhum grupo empresarial pode resolver nada por si só”. Mas ao mesmo tempo, defende também que “precisamos de suscitar e apoiar aquilo que cada grupo empresarial ou outro possa fazer por si, porque senão é a minimização das pessoas, é o desprezo daquilo que cada um poderia proporcionar e é o empobrecimento geral”, alerta ainda.
Assim, acredita, é na conjugação destes princípios que as coisas poderão ter caminho, “algo que está tão comprovado historicamente que já nos custa repetir”, diz. E quando algum destes princípios está em falta, “surgem ou os totalitarismos, ou os individualismos, ou as pessoas desprezadas, ou os grupos de fora, ou enormes clivagens socioeconómicas”, remata.
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