Na sequência do apagão que afectou recentemente Portugal e Espanha, urge questionar: será que precisamos mesmo de falhas tecnológicas para nos reencontrarmos com o essencial? A presença, o silêncio, a relação com os outros — tudo aquilo que tantas vezes sacrificamos graças à distracção e dependência contínuas dos ecrãs — não devia depender de um colapso da internet para emergir. Um apelo ao facto de que estarmos presentes é mais urgente do que estarmos ligados
POR HELENA OLIVEIRA

Nota prévia: Convidamos, neste artigo, à reflexão sobre o papel da tecnologia nas nossas vidas e o que acontece quando ela falha — ou nos falha. Este texto não é sobre redes “avariadas”, mas sobre ligações humanas esquecidas. Uma pausa forçada que pode ser, afinal, um apelo à presença, à escuta e ao reencontro com o essencial.

Passou mais de uma semana sob o apagão eléctrico inesperado que deixou vastas regiões de Portugal e Espanha sem fornecimento de energia durante horas. Num instante, deixaram de funcionar luzes, elevadores, semáforos e electrodomésticos — mas o impacto mais sentido foi outro: a quebra das redes móveis e do acesso à internet. Em muitas zonas, os dados móveis caíram, as comunicações pararam e os telemóveis, subitamente, perderam o seu poder e omnipresença. Isoladas digitalmente, milhões de pessoas ficaram sem saber o que estava a acontecer e viram o seu quotidiano profundamente afectado.

Num tempo em que a informação circula à velocidade do toque, o silêncio caiu abruptamente. Apenas algumas estações de rádio e canais de televisão com geradores conseguiram manter-se no ar. Durante essas horas, a rádio — meio tantas vezes considerado obsoleto — voltou a ser a voz que unia comunidades, informava com a serenidade possível e trazia um eco de presença humana. A ausência da internet foi mais do que um contratempo técnico: foi uma interrupção no nosso modo de viver.

Apesar de todos os constrangimentos, urge questionar: o que procuramos quando o mundo digital se cala? O que nos resta quando desaparecem a conexão e a distracção constantes? A resposta talvez esteja no que esquecemos: o valor da presença, do diálogo olhos nos olhos, da atenção plena, da escuta sem notificações. Esta pausa involuntária foi, para muitos, um lembrete de que o tempo não precisa de ser dominado, mas acolhido. E que o silêncio pode ser fecundo.

Foi também um espelho. Um espelho que reflecte até que ponto nos tornámos dependentes do mundo digital e até que ponto esquecemos o que é estar verdadeiramente presentes no mundo real. Durante algumas horas, voltámos a ser apenas corpo, voz, gesto. Sem distracções instantâneas, sem scroll automático, sem resposta imediata. Voltámos a estar.

Todavia, não devia ser preciso um apagão para que isso acontecesse. Não devia ser necessária uma interrupção (quase) total da internet para conversarmos calmamente com aqueles que amamos, para nos olharmos olhos nos olhos à hora do jantar, mesmo que à luz de velas, para irmos ao jardim sem um telefone na mão, para vivermos o nosso quotidiano sem termos a necessidade de o partilhar continuamente, para observarmos a solidariedade que se gerou entre desconhecidos.  Não devia ser preciso que o mundo digital colapsasse por momentos para nos lembrarmos do que já sabíamos antes de ele existir: que o tempo com os outros é insubstituível, que o silêncio é essencial, que estar é muito mais do que a presença online constante.

A hiper-conectividade trouxe muitos avanços, é certo. Mas também ansiedade, dispersão e, paradoxalmente, isolamento. Nunca estivemos tão ligados e nunca nos sentimos tão sós. O excesso de informação, de opiniões, de solicitações, faz-nos perder a capacidade de escutar em profundidade, de estar verdadeiramente com o outro, de pensar com clareza.

Numa cultura de aceleração permanente, perder a internet é quase um escândalo. Mas o que é que realmente perdemos? E o que ganhamos quando o tempo abranda? Para muitos, esses minutos de silêncio involuntário permitiram recuperar pequenas humanidades: trocar uma palavra com os vizinhos, olhar pela janela, escutar o próprio ritmo interior. Pode parecer pouco, mas não é: é o tipo de pouco que alimenta o muito.

É também nestes momentos que se revelam os nossos hábitos. Incapazes de esperar, muitos tentaram reestabelecer a ligação com impaciência, como quem perdeu uma parte de si. Outros, talvez mais serenos, acolheram o intervalo como quem entra numa sala vazia e ali encontra espaço para respirar. A reacção ao apagão é também o espelho do que temos cultivado ou do que deveríamos cultivar: o imediatismo ou a interioridade.

Ainda nos lembramos de como era no “antes”? Tínhamos espaços de espera, de pausa, de conversa espontânea. Tínhamos fins de tarde no jardim, à sombra, sem a pressão de responder. Tínhamos tempos mortos que agora enchemos compulsivamente. Precisamos de reaprender a estar sem fazer scroll, a ouvir sem distrair, a viver sem registar tudo para depois. Precisamos, talvez, de voltar a aprender o que significa simplesmente “respirar”.

Há algo profundamente espiritual neste acto de desligar. A ausência de ruído, a pausa, o deserto, são caminhos para reencontrar sentido. Silenciar para escutar melhor, abrandar para discernir. Talvez também hoje, no meio de tantas vozes, notificações e exigências de respostas imediatas, nos seja pedido esse mesmo gesto: uma pausa que nos torne mais presentes.

Desligar, mesmo que por acidente, parece-nos hoje um acto contra cultural. Num tempo em que tudo nos empurra para a velocidade e a dispersão, abrandar é quase um gesto de resistência. É dizer: o mundo pode esperar. É afirmar: há algo mais importante do que estar sempre acessível. É recordar: não fomos feitos para ser máquinas que reagem, mas pessoas que se relacionam.

Num apagão digital, não perdemos apenas ligação à internet. Perdemos o ruído constante. E ganhámos, por instantes, a possibilidade de escutar o que realmente importa. Talvez o verdadeiro progresso não seja estarmos sempre ligados, mas sabermos quando desligar. Talvez a próxima revolução não seja tecnológica, mas relacional.

Este apagão é, no fundo, uma imagem do que poderíamos viver com mais frequência: uma resistência consciente ao ruído, uma escolha por relações mais profundas, uma opção por um tempo que seja dom e não apenas instrumento.

O mundo precisa de conexão, sim. Mas mais ainda de enraizamento, de escuta, de toque, de verdade. Se a internet pode ser uma ponte, que não se torne o único caminho. Porque o essencial está onde sempre esteve: na nossa relação com o outro e com nós mesmos. E, às vezes, basta desligar para finalmente voltar a ligar.

Imagem: © Diana Parkhouse/Unsplash

Editora Executiva

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui