POR HELENA OLIVEIRA
IbiscoDE
Kodés, pós de fada e reaprender a sonhar
“Kodé” é a palavra crioula para o filho mais novo e foi a pensar nestes “filhos mais novos”, dos bairros intervencionados pelo Departamento Educativo da Associação Teatro IBISCO – Teatro Inter Bairros para a Inclusão Social e Cultura do Optimismo, que surge este projecto que junta crianças e pré-adolescentes no mesmo palco para “brincarem juntos”, como refere Catarina Aidos, a coordenadora do mesmo. Com o propósito de trabalhar a sua auto-estima, motivação e a concentração, imprescindíveis para diminuir os níveis de insucesso escolar e absentismo, o projecto IbiscoDE tem como base três pilares de trabalho por excelência: “os ensaios regularem que juntam os miúdos na construção de espectáculos; um segundo denominado como “ciclo Mukur Mukur” e que convida as crianças a contar histórias aos seus pais e avós, as quais correspondem à tradição oral do povo guineense e, por último, o da “fruição cultural”, que consiste em levar os kodés, da Quinta da Fonte e da Quinta do Mocho, a assistir a espectáculos fora do bairro e a acolherem, também, espectáculos nesta ‘casa’, que é deles”, explica a coordenadora.
Os bairros em causa serviram para realojar comunidades, tanto da etnia cigana, como de vários países africanos, em particular da Guiné-Bissau e Cabo Verde, sendo que existe “um conflito histórico” entre ambos os territórios que acaba por se perpetuar, num sentimento de vingança e medo, junto das gerações mais novas. Assim, o principal trabalho desenvolvido pela Associação IBISCO é “desmontar esta construção mental de um inimigo” – a do “outro” que vive no “outro” bairro.
“Agora que faço teatro com ‘eles’, vejo-os com outros olhos”, afirma uma miúda do grupo. Trabalhar a partir de “uma metodologia optimista, de um espaço de descoberta, para no cruzar do olhar com o ‘outro’ se partilharem histórias e experiências, descobrir o que têm em comum e que isso é mais forte do que aquilo que os separa”, é outro dos propósitos adoptados neste projecto, como refere Susana Arrais, directora pedagógica, em conjunto com uma conquista de consciência de que as diferenças que os separam podem promover a criatividade e a arte. “Desde que começámos a fazer teatro IBISCO, somos ensinados a trabalhar em conjunto, a ouvir as opiniões dos outros (…) e aqui somos uma família e temos que nos ajudar uns aos outros, não só aqui dentro, mas por causa do que se passa lá fora”, como explica, sem reservas, uma outra rapariga do grupo.
“Acreditamos que as 35 crianças com quem estamos a trabalhar desde 2013, estão a reaprender a sonhar”, assegura Catarina Aidos, com efeitos visíveis não só no seu comportamento, mas também na “imagem que têm sobre si próprios e do que representam para os seus amigos e vizinhos, o que faz toda a diferença na construção da identidade e da consciência de onde estamos e quem somos”. “Aqui posso libertar aquilo que sou por dentro, tipo magia, tipo pós de fada (…) a minha imaginação está aqui dentro”, refere uma das crianças E o maior impacto é traduzido pela crença que Catarina Aidos manifesta com segurança: “acredito que hoje, estas 35 crianças, são mais felizes”.
A verdade é que projecto tem sido tão bem acolhido no interior das comunidades que os pais e os avós destes kodés querem, também, um projecto feito à sua medida, mas em conjunto com os seus mais novos: o IbisCota é o próximo degrau a subir para levar novos elementos a este mesmo palco.
Refúgio e Teatro: dormem mil gestos nos meus dedos
“Estamos a fazer peças sobre as nossas vidas”
Numa altura em que a palavra “refugiado” parece andar, e raramente pelos melhores motivos, na boca de toda a gente, este projecto, da responsabilidade do Conselho Português para os Refugiados (CPR) e coordenado por Isabel Galvão, deveria ser de “conhecimento geral obrigatório”.
Englobando duas vertentes – sessões regulares de expressão dramática com o objectivo de ‘treinar’ a língua portuguesa e o acompanhamento artístico do Grupo de Teatro RefugiActo – os seus principais propósitos consistem em recuperar o tão almejado, quanto complexo “sentimento de pertença”, em conjunto com a identidade cultural, através de uma partilha, emocionalmente “dura”, de sentimentos e histórias. Como refere Sofia Cabrita, directora artística do projecto, “estamos sempre a trabalhar com a aprendizagem da língua, sendo que é a prática do teatro que interessa e não tanto a construção artística”. Todavia, na vertente mais “séria” em que se insere o RefugiActo, “aí sim, a prática artística é mais importante e os participantes são ‘fazedores de arte”, acrescenta ainda Sofia Cabrita, na medida em que os mesmos querem ser “a voz dos refugiados”. Como explica um dos participantes, “queremos mostrar quem somos, porque a maior parte das pessoas mistura refugiados com imigrantes e diz ‘ah, vieste aqui só para ganhar dinheiro’, o que na maior parte das vezes não é verdade”.
O trabalho que é desenvolvido não tem por base uma peça escrita, mas sim uma história, uma memória, um sentimento, transformados depois em teatro. Razão pela qual um dos refugiados resume o trabalho desenvolvido como “estamos a fazer peças sobre as nossas vidas” e uma outra participante confessa que o grupo no qual se insere funciona mesmo “como um refúgio”.
Como refere também Teresa Galvão, as apresentações públicas do RefugiActo têm “realmente tocado as pessoas”, na medida em que “o testemunho na primeira pessoa realmente perturba”. É que é muito diferente assistir nas notícias que milhares de pessoas são obrigadas a deixar para trás as suas vidas, as suas famílias, as suas casas e ouvir, olhando nos olhos de quem realmente passou por situações similares, um testemunho directo de momentos tão inimagináveis. Como remata uma das refugiadas em causa, e num português muito perto do perfeito: “penso que é muito mais fácil chegar às pessoas através do teatro, do que por qualquer outro meio”. Sem dúvida.
O mundo à nossa volta
A energia destes miúdos dava um filme
“Primeiro fui assistente de realização e depois realizador. É um pouco difícil ser realizador: procurar os espaços, saber onde tenho de pôr a câmara, dizer aos actores onde eles devem estar, o que devem fazer e muitas outras coisas”. Do alto dos seus oito ou 10 anos, é assim que um dos miúdos que pertence ao projecto organizado pela Associação Filhos de Lumiére, coordenado pela cineasta Teresa Garcia, explica as difíceis funções que vai tendo no interior deste “estúdio de cinema”.
Dirigido a crianças e jovens em risco dos concelhos de Lisboa, Moita e Serpa, “o cinema enquanto forma de dar a conhecer o mundo” tem vários propósitos. O primeiro é levá-los a descobrir o cinema através do contacto com algumas obras cinematográficas e a experimentar as diferentes fases que integram a realização, com o apoio de cineastas e profissionais de cinema. Perceber o que é um plano, o espaço e o tempo cinematográfico, a luz, a cor, o som, o movimento, o ritmo e depois aplicar esse conhecimento na produção conjunta de um filme é o grande desafio deste projecto, que através de várias oficinas de cinema, procura ainda articular o trabalho desenvolvido com as famílias e professores dos participantes. Como refere Teresa Garcia, não nos podemos esquecer que os miúdos “antes de aprenderem a ler, aprendem ver” – o projecto trabalha com crianças a partir do 1º ciclo, mas também com pré-adolescentes – sendo que para estes últimos o cinema, de acordo com a visão da cineasta, “ajuda a pensar as questões que os tocam”.
O trabalho é feito ao longo de todo o ano lectivo, mas o grande objectivo é apresentar o “filme” produzido conjuntamente e onde todos têm o seu papel: de realizadores, a produtores, a técnicos de som ou enquanto actores ou actrizes, aprender a olhar o mundo à volta com outros olhos tem sido o “script” seguido por este projecto. Adicionalmente, transpor o que aqui aprendem para a “normalidade das aulas” é também uma mais-valia: como explicou um dos professores envolvidos no projecto e por exemplo, “a escrita de um guião acaba por ajudá-los nas aulas de Português”. O reforço de laços das famílias com a sua descendência é igualmente importante, o mesmo acontecendo até com a própria comunidade, na medida em que os pais se juntam para assistir aos filmes realizados pelos filhos e acabam por conviver entre si. E, tal como refere Teresa Garcia, “para mim, a inclusão social é este relacionamento, com a comunidade e, é claro, consigo próprios”.
URB
“Mostrar às pessoas chiques que nestes bairros não vivem só delinquentes”
Criar um projecto audiovisual que venha preencher um ‘buraco’ que existe no imaginário dos portugueses e que retrate a realidade da população portuguesa residente em bairros particularmente degradados e socialmente “perturbados” na área da Grande Lisboa é o ponto de partida para este projecto, coordenado pelo realizador e director artístico,
Pedro Pinho e impulsionado pela OCT Terratreme Oficina. Contando com a participação de 50 pessoas de todas as idades, residentes em zonas urbanas periféricas com problemas sociais graves, o seu objectivo “maior” é, todavia e como explica João Miller Guerra, também ele realizador, o desenvolvimento de uma série televisiva, com 50 episódios, ancorada na realidade social efectiva destas zonas em particular, bem como na sua diversidade e multiplicidade cultural.
Através da implementação, em vários bairros da Grande Lisboa, de workshops de escrita e teatro, os realizadores envolvidos “aproximaram-se destas pessoas que, entretanto, foram conquistadas”, começando a escrever os episódios – cada realizador é responsável por um número específico de episódios – cuja série dependerá, contudo, da quantidade de financiamento que conseguirem reunir, visto que o PARTIS, sozinho, não tem, e obviamente, essa capacidade. “Mostrar às pessoas chiques que nestes bairros não vivem só delinquentes” é a expressão utilizada por um dos participantes para traduzir o trabalho que está a ser desenvolvido ou, nas palavras de um outro, “com a nossa verdade, que é esta, provocar uma explosão na cabeça dessas pessoas”. Apesar de o “produto final e desejado” estar ainda longe do alcance dos seus promotores, o projecto tem revelado uma dinâmica eficaz, com actividades frequentes em diversos bairros e criado, em simultâneo, outro tipo de produtos, como vídeos e gravação de músicas, os quais, espera-se, poderão ajudar à divulgação e notoriedade do projecto.
Companhia Limitada
Lis-Bú ou o combate à solidão
Nascido no interior da estrutura da Cooperativa Largo Residências, este projecto (que, no âmbito do apoio do PARTIS, já terminou) visa, através de várias práticas artísticas, nomeadamente o teatro e a dança, trabalhar a realidade do bairro onde se integra, o Intendente (e a Mouraria), que tem estado em constante transformação, como refere a sua coordenadora Marta Silva.
Combater, essencialmente, a enorme solidão e isolamento a que estão votados muitos dos habitantes destes bairros consistiu no principal propósito desta Companhia Limitada (cujo apoio por parte do PARTIS foi só para o ano de 2014). Considerado por Madalena Vitorino, directora artística do projecto, como uma trilogia, em que a solidão é sempre o tema por excelência, o projecto levou em linha de conta também a sua diferente materialização, seja a nível dos “formatos”, das”idades” e das suas próprias “definições”. Pensado como uma trilogia – ou como um desmembramento de um projecto mais alargado – o PARTIS surgiu como apoio à sua “segunda fase”, explica Marta Silva.
“Olhar para a solidão existente na rua”, na qual os protagonistas são homens, mas também crianças e adolescentes que ali passam muito tempo, “com eles construímos um espectáculo” com várias vertentes de artes performativas, uma “performance de rua e de Inverno e que passou pelos locais mais solitários do Largo do Intendente”, acrescenta Madalena Vitorino, numa criação fictícia de “um povo que desceu das montanhas do mundo, o povo de Bú” e que deu o nome ao espectáculo – Lis-Bú – e que misturou os residentes do bairro com um conjunto significativo de outros artistas que participaram no projecto. Como resultados mais positivos, pessoas que nunca saíam de casa, começaram a vir para a rua, gerando e mantendo uma nova rede de relacionamentos que perdurou para além do tempo estabelecido para a realização do espectáculo e, consequentemente, do projecto.
Daqui p’ra cá
Danças cruzadas
É através da dança que Tânia Marques, da Associação InPulsar, em Leiria, acredita que é possível fazer uma integração social bem-sucedida, nomeadamente entre oito crianças de etnia cigana, residentes no Bairro Social Cova das Faias, para quem a exclusão é apenas o normal no decorrer do seu quotidiano, em conjunto com outras oito crianças da Escola de Dança Clara Leão. Num cruzamento de realidades socioeconómicas bastante distintas, a aposta foi também a de misturar diferentes estilos de dança. Como explica a directora artística do projecto, Anna Wesolek, na medida em que as crianças de etnia cigana já trazem, “dentro de si e desde muito novas” um estilo particular de dança e os alunos da Escola de Dança Clara Leão têm uma formação mais rígida, comum à dança clássica, o grande objectivo foi “cruzar” ambas as experiências e dois mundos tão diferentes. Faseado, o projecto vai “experimentando” a aproximação de ambos os grupos até os ter “cara a cara”, o que culmina num espectáculo final. O respeito pelo outro, a aceitação das diferenças, o aumento do sentimento de pertença a um grupo, o estimular da criatividade e modelos de comunicação mais assertivos entre estes dois grupos de crianças consistiram nos principais resultados deste projecto, que teve o financiamento do PARTIS ao longo de um ano, mas que continua a trabalhar na integração da comunidade cigana residente em Leiria e em várias actividades com outros grupos descriminados.
NOTA: Uma parte considerável da informação utilizada para “contar a história” dos projectos apoiados pelo PARTIS, foi retirada da visualização dos vídeos sobre os mesmos, realizados pela Fundação Calouste Gulbenkian, através do seu Programa de Desenvolvimento Humano e que podem ser consultados aqui
Este artigo faz parte integrante do Especial PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social
Editora Executiva