“Há limites para o que os cidadãos podem aguentar”, disse, no final de 2010, Cavaco Silva, a propósito da apresentação da Campanha “Direito à Alimentação”, graças à qual os restaurantes vão poder doar refeições às instituições de apoio às pessoas carenciadas. Contornadas as questões de lei que impediam esta rede social – extensível às cantinas de escolas, hospitais, etc. – de actuar, resta ainda criar um regime de excepção para que não seja cobrado IVA sobre estas refeições. O VER conversou com o mentor da petição “Contra o Desperdício Alimentar” e com o presidente da Cáritas, sobre esta causa nacional
POR GABRIELA COSTA

António Costa Pereira, cidadão português, piloto de profissão, pode sentir-se orgulhoso de, sozinho, ter juntado uma pequena multidão à volta de uma causa social cada vez mais real no País: a fome. Contra ela, era “moralmente obrigatório” dissociar dois conceitos – Saúde Pública e Desperdício Alimentar -, ligados entre si através de “uma lei absurda”: um diploma comunitário de 2002, transposto para a legislação nacional ao abrigo da Lei de Saúde Pública, que obrigava, até há bem pouco tempo, ao desperdício diário de 35 a cinquenta mil refeições diárias, segundo as estimativas de António Pereira.

A realidade é que todos os dias um grande número de refeições, completas e em perfeitas condições de consumo, são deitadas fora nos refeitórios de empresas, escolas, universidades, hospitais, prisões e restaurantes, alegadamente “por razões de saúde pública”. E enquanto uns mandam o que sobra para o lixo, outros – cada vez mais portugueses – procuram nele o alimento mínimo para a sua subsistência.
A alteração à lei, introduzida há já oito anos na sequência da norma europeia, permitindo que todos os alimentos em perfeitas condições possam ser “verificados, acondicionados, transportados e distribuídos a quem precisa” é hoje “uma questão social bem actual, real e concreta”, comenta ao VER o piloto de longo curso. Trata-se, aliás, de uma questão que “se é tecnicamente possível, é moralmente obrigatória”.

“Confortáveis na nossa abundância, perdemos de vista o mundo real”
Passaram mais de dois anos desde que António Costa Pereira arregaçou as mangas por esta causa: começou por contactar a Presidência da República, que remeteu o assunto para o Governo. Contactado este último, “responderam-me que iam pensar no assunto”. Sem querer abdicar dos seus direitos cívicos, o piloto procurou então chegar ao contacto com deputados de três grupos parlamentares, novamente sem sucesso.
Como para grandes males, grandes remédios, a mediatização do tema nas redes sociais, principalmente com a criação no Facebook do movimento “Acabar com o Desperdício Alimentar” e o lançamento da petição Desperdício Alimentar (que recolheu já mais de 69 500 assinaturas, tendo registado, só na primeira semana, uma participação que ascendeu das 5800 às 34 mil assinaturas), foram o mote para trazer a polémica às agendas.

A partir daí, os apelos remetidos à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) tiveram eco – com esta a garantir apoio para “vir a ser parte da solução”; arrancou, em Oeiras, um projecto-piloto para formação e garantia da distribuição dos alimentos em boas condições de segurança, envolvendo a ASAE; os cinco grupos parlamentares reuniram com António Pereira (o CDS-PP apresentou mesmo uma moção contra o desperdício alimentar que a Câmara de Lisboa aprovou por unanimidade, permitindo à autarquia a criação de um programa que evite que as sobras de muitos dos restaurantes e cantinas de Lisboa vão parar ao lixo); e o presidente da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal manifestou-se disponível para envolver os restaurantes nesta acção nacional de doação de alimentos às pessoas carenciadas.

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A Associação avançou mesmo com o lançamento, a 10 de Dezembro de 2010, da “Carta do Direito à Alimentação” e de uma campanha de solidariedade social dedicada ao “Direito à Alimentação”, que merece o alto patrocínio do presidente da República. Cavaco Silva louvou esta iniciativa “destinada a combater um dos flagelos que, de modo envergonhado e silencioso, se tem propagado pelos estratos menos favorecidos da sociedade portuguesa: a falta de acesso a uma alimentação condigna”, considerando que esta “constituí um verdadeiro exemplo de como as instituições da sociedade civil podem dar um valioso contributo para um Portugal mais coeso, mais unido e solidário”.

Através da Campanha Nacional para o Direito à Alimentação – DA, que arranca oficialmente no dia 4 de Abril, a AHRESP assume a responsabilidade social de criar uma Rede Nacional de Solidariedade, dirigida às famílias e aos cidadãos carenciados de alimentação, digna e suficiente. Pretende-se que adiram a esta iniciativa todas as empresas e instituições privadas e públicas, através de apoios, contributos e donativos. Desde a produção agro-pecuária, passando pela indústria e a distribuição alimentar, e indo até aos estabelecimentos de hotelaria, restauração e bebidas, todas as empresas e instituições podem participar no programa, através da adesão voluntária, garantida pela operação do BUE – Balcão Único Empresarial.

Para o presidente da AHRESP, Mário Gonçalves, perante a actual conjuntura, é urgente reforçar a cooperação com as cerca de 4.500 instituições de Solidariedade Social existentes em Portugal, confrontadas, muitas vezes, com a rotura das suas capacidades: o Balcão Único Empresarial “vai promover a adesão e operação em rede de proximidade dos nossos fornecedores e dos nossos próprios estabelecimentos, para, de forma articulada, congregar donativos, entregando-os aos municípios para estes os fazerem chegar, directamente, ou através das instituições de solidariedade do seu concelho, aos grandes destinatários da nossa preocupação, os carenciados de alimentação digna e equilibrada”.

O programa visa exclusivamente a alimentação, e vai utilizar várias valências, desde os produtos alimentares e as senhas de refeição, até às refeições confeccionadas. Apesar do prazo para a inscrição dos municípios no site da campanha (www.direitoalimentacao.org) – manifestando a sua disponibilidade para aderirem à primeira fase – terminar apenas no próximo dia 20, “é já significativo o número de adesões”. Em paralelo, e enquanto se aguarda a conclusão desta fase, o que leva a que ainda não estejam definidos os locais prioritários onde a campanha irá decorrer, já há um grande número de estabelecimentos que manifestaram a sua disponibilidade para aderir à campanha.

O que está feito…
Para António Pereira, adaptar, alterar ou interpretar a lei são variações sobre uma nota só. Faça-se o que se fizer, terá de ser feito “o que for necessário para acabar com esta situação [de desperdício alimentar], a bem de muitos portugueses que têm dificuldades e que necessitam de toda a ajuda, agora e já. Recusando render-se “à burocracia e à falta de humanidade”, o piloto da TAP defende que a única opção decente e civilizada perante as dificuldades que o país atravessa é “reagir”. Temos de ser mais exigentes connosco próprios enquanto cidadãos e com quem nos representa e governa, apela.

Mais exigentes ou não, os portugueses são, por natureza, generosos, e talvez por isso se indignem facilmente com as injustiças sociais. Com a ajuda das redes sociais, muitos milhares apoiam esta causa dedicada à doação de refeições a quem mais precisa, que depende agora da criação de um regime de excepção na lei para que os restaurantes não tenham de pagar treze por cento de IVA sobre o que doarem durante a Campanha Direito à Alimentação. O impacto da iniciativa tem sido, de resto, bem visível no pouco habitual destaque dado ao tema pela comunicação social.

Depois do êxito da petição – que se mantém online para, caso a “interpretação da lei” continue a não permitir uma operação “fazível” de aproveitamento das refeições, poder avançar para a Assembleia da República; e para manter na agenda política a consciência da “nova realidade no país: a existência de muitos novos pobres, que têm fome”) – o desafio lançado por António Pereira à Câmara Municipal de Oeiras, para, em coordenação com a ASAE e articulando todas as IPSS e empresas do concelho, recolher, acondicionar, distribuir e entregar todas as refeições em condições que sobram nos refeitórios, restaurantes, supermercados e outras estruturas do concelho, deverá em breve ser replicado para outros municípios.

Na sua opinião, será “mais eficaz que o projecto funcione em parcerias locais, com a ‘condução’ das Câmaras Municipais, pois cada local tem os seus problemas e as suas soluções próprias”. À semelhança de Oeiras, também a Câmara Municipal de Lisboa abraçou este projecto e já foi nomeada uma equipa camarária para começar o trabalho. Em câmaras como a do Funchal, Mealhada, Setúbal, Loures ou Anadia foram apresentadas, votadas e aprovadas moções para “Acabar com o Desperdício Alimentar” nos concelhos.

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…E o que falta fazer
Finalmente, e como referido, a AHRESP aderiu a este movimento de cidadania e já está a estabelecer contactos com os seus associados e com a ANMP para, em coordenação com a ASAE (que irá acompanhar e formar os técnicos envolvidos), alargar a causa a um âmbito nacional. António Pereira acredita que a criação da Carta do Direito à Alimentação permite congregar a colaboração de muitas entidades, “resultando no compromisso dos restaurantes em dar um determinado número de refeições a quem necessita”. Os restaurantes que o fizerem terão direito a colocar um símbolo no seu estabelecimento que identifica a sua participação nesta “onda de solidariedade”.

Dentro de poucas semanas começarão a ser conhecidos os resultados concretos nos primeiros municípios que desenvolverem este projecto. É importante que todos os concelhos deles possam beneficiar, diz o mentor do movimento contra o desperdício Alimentar, bem como que os cidadãos sintam que é possível fazer algo que “depende em grande medida da capacidade que cada um de nós tiver de dar à sociedade aquilo que tem faltado: ideias, soluções e envolvimento”. Confiante, acredita que apenas com “vontade, trabalho e coordenação” é possível potenciar esta causa, para a qual “todos temos de deixar de nos abster”.

Como é sabido, Portugal está a atravessar um dos períodos socioeconómicos mais complicados da sua história e tem de ser nestes momentos que a sociedade mais terá de contribuir para ajudar o país, diz. Foi o que fez a AHRESP, ao envolver centenas de restaurantes associados nesta causa, dando um sinal de alento aos cidadãos necessitados, que “serve de exemplo a seguir por todos”.

Entretanto, já depois de todo o esforço envolvendo muitas pessoas e entidades interessadas e solidárias com esta causa, surgiu a questão das refeições doadas poderem ser taxadas de IVA. Para António Pereira “seria de uma crueldade e cegueira burocrática que tal pudesse vir a acontecer, pois inviabilizaria este projecto que não visa o lucro mas, tão-somente, ajudar os portugueses que neste momento tão necessitados estão”. Como disse o presidente da República, “há limites para o que os cidadãos podem aguentar”, recorda, e, cada vez mais, os portugueses precisam de ver exemplos muito concretos de ajuda.
Sobre esta matéria, o Governo já garantiu que está a ultimar pormenores para criar um regime de excepção para esta situação específica, através do Ministério das Finanças, o que deverá permitir a doação de refeições pelos restaurantes às organizações de apoio à população carenciada a partir do dia 4 de Abril.

Entrevista
“Ninguém nega que a crise tem consequências muito dolorosas”
A Cáritas Portuguesa é uma das entidades que integram a Comissão de honra da campanha de solidariedade social “Direito à Alimentação”, ao lado da Associação Nacional dos Municípios Portugueses, da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares contra a Fome, da Fundação Calouste Gulbenkian, da Fundação Oriente, da União das Misericórdias Portuguesas e de grandes grupos empresariais, como a Caixa Geral de Depósitos, o Millenium bcp, o Montepio Geral, a nova Delta, a Jerónimo Martins, a SONAE, a Makro e o Grupo Trivalor, para além, claro está, do autor da Petição que deu origem ao projecto, António Costa Pereira.

Em entrevista ao VER, Eugénio Fonseca considera “óbvia a oportunidade” desta iniciativa que visa suprir quaisquer carências alimentares, numa altura em que a Crise está a privar muitos portugueses de ter acesso a uma subsistência digna. Na opinião do presidente da Cáritas Portuguesa, o dinamismo gerado à volta da petição demonstra “a evidência da validade do princípio da subsidiariedade”, graças ao qual foi possível fazer com que o país não ficasse indiferente “perante a denúncia de escandalosos desperdícios alimentares”.

De que importância se reveste, na actual conjuntura socioeconómica, uma iniciativa que deverá permitir oferecer refeições a 50 mil carenciados?
É óbvia a oportunidade. Ninguém nega que as consequências da crise financeira e económica estão a ter repercussões muito dolorosas na vida de milhares de portugueses. Veio agravar a situação dos dezoito por cento que já estavam na condição de pobres. Esses passaram a viver miseravelmente. A eles vieram juntar-se um número ainda não rigorosamente definido. São aqueles que tinham no seu posto de trabalho a única fonte dos seus rendimentos.

A maioria com salários baixos que não permitiram poupanças, muitos com contratos precários que não lhes retiraram o direito a determinadas formas de protecção social, como é o subsídio de desemprego. Todos estes, rapidamente, ficaram privados de aceder a bens indispensáveis à sua digna subsistência. Um dos factores que tem repercussões imediatas na vida das pessoas é a alimentação. Começa-se por deixar de se adquirir produtos de maior qualidade até à redução do número de refeições. São variados e gravosos os efeitos nefastos desta privação no equilíbrio do ser humano, nomeadamente a precarização da saúde e a diminuição do rendimento laboral e escolar. É, por isso, indispensável qualquer iniciativa que vise a superação da fome ou de qualquer tipo de carência alimentar.

Como interpreta o facto de a iniciativa isolada de um cidadão – a petição Desperdício Alimentar – ter dado azo a esta campanha da AHRESP, a qual implica a criação de um regime de excepção na lei para que os restaurantes não tenham de pagar IVA sobre o que doarem durante a Campanha “Direito à Alimentação”?

A petição é mais uma evidência da validade do princípio da subsidiariedade. Ou seja, quem está mais próximo da realidade conhece-a melhor e pode intervir com maior eficácia. Por outro lado, esta proximidade gera dinamismos de interesse e envolvimento que abordagens mais distanciadas das pessoas e dos seus problemas dificilmente conseguem. Foi isso que aconteceu.

Porém, o estar próximo não é só uma questão geográfica mas, sobretudo, de sensibilidade. A AHRESP é uma organização grande, com um nível muito vasto de abrangência que tem enormes desafios a enfrentar. Mesmo assim não foi indiferente a um problema que talvez não fosse prioritário no âmbito da sua intervenção. Mas percebeu que, face às enormes dificuldades que estavam a viver milhares de concidadãos, não poderia ficar indiferente perante a denúncia de escandalosos desperdícios alimentares e que uma das soluções – a mais imediata – passaria pela co-responsabilização dos seus associados.
Foi feliz na iniciativa e no mote que lhe deu, apontando para o acesso à alimentação como um direito inalienável, e não uma mera esmola.

Que perspectivas tem a Cáritas de aumentar o apoio às famílias mais carenciadas, através da integração nesta rede nacional de solidariedade?
São grandes e fundadas as expectativas. Por um lado, trata-se de uma proposta que não obriga a afectação de mais recursos materiais, o que para muitos associados seria um esforço difícil de suportar, dado que estarão também a sofrer os efeitos da actual contracção económica.

Por outro, os portugueses já deram provas mais do que suficientes da sua pronta generosidade para com quem se encontra a passar mal. Tendo a possibilidade de dispor destes recursos, ficarão mais disponíveis outros para responder a carências de tipo diferente.

Checklist para acabar com o desperdício alimentar nos municípios:
  • Coordenar com a ASAE, as formas e boas práticas desta operação: a ASAE acompanhará, informará e formará quem trabalhar neste projecto.
  • Contactar as várias empresas de catering ( que fornecem os refeitórios das escolas, hospitais, empresas, etc ), afim de quantificar a quantidade de sobras.
  • Contactar com os restaurantes locais, através das Juntas de Freguesia directamente ( após um Ofício da Câmara Municipal ), para saber da disponibilidade de cederem refeições. Os restaurantes que aderirem, terão o direito a colocar um dístico de Restaurante Solidário; podendo ser publicitados pala própria C.M.
  • Contactar os grupos económicos que estão à frente dos hipermercados e supermercados, pois também aqui existe muito desperdício alimentar.
  • Contactar e coordenar com as IPSS’s locais, afim de percepcionar tudo o que elas terão ( carrinhas de transporte, voluntários, cozinhas/refeitórios locais, bem como das suas necessidades ) para oferecer ao projecto.
  • Quem vier a beneficiar deste programa, será inscrito através dos serviços da Câmara Municipal ou Juntas de Freguesia, que aferirá da real necessidade.

Fonte: “Acabar com o Desperdício Alimentar”/ António Costa Pereira

Jornalista