POR HELENA OLIVEIRA
Se vivêssemos num mundo igualitário, só teríamos razões para celebrar. Nunca houve tanta riqueza acumulada em todo o planeta, com um acréscimo, em 12 meses (até Junho) de 16,7 biliões de dólares.
Se vivêssemos num mundo igualitário e se a riqueza global fosse dividida equitativamente, cada agregado familiar poderia contar com cerca de 56,640 dólares anuais. Ao invés, o 1% mais rico do mundo é dono de metade de toda esta riqueza, sendo que o valor médio por agregado é de apenas 3,582 dólares. Se é detentor de um valor anual superior a este, saiba que pertence aos 50% mais ricos da população mundial.
Os dados são do mais recente Global Wealth Report 2017 publicado anualmente pelo Credit Suisse, o qual dá conta que, e principalmente face aos mercados financeiros que se enontram em modo de prosperidade, a riqueza global aumentou 6,4%, batendo recordes de “rapidez” desde 2012, ascendendo agora aos 280 biliões de dólares. Existem 2,3 milhões de novos milionários no planeta e o número total de super-ricos ascende agora a 36 milhões, sendo que estes últimos – que representam 0,7% da população mundial adulta – controlam 46% da riqueza total global. Dos novos milionários, cerca de metade vive nos Estados Unidos, 620 mil foram “criados” em alguns dos países mais prósperos da Zona Euro – Alemanha, França, Itália e Espanha -, um número similar aos que “emergiram” na China e na Índia em conjunto. Outros 200 mil “nasceram” na Austrália. Em conjunto, só os “novos” afortunados são donos de 128,7 biliões de dólares.
Mas não foram só os muito ricos que ficaram mais ricos. Acompanhando a tendência de crescimento patente na população de milionários, os ultra-milionários – ou aqueles que possuem uma riqueza líquida superior a 50 milhões de dólares – “cresceram” ainda mais depressa. O número de milionários “normais” cresceu 170% desde o ano 2000, enquanto a quantidade de ultra-ricos aumentou cinco vezes desde a mesma altura, o que faz deles o “grupo de mais rápido crescimento” de todos os detentores de riqueza.
A América continua a ser o principal “pólo de concentração de mais ricos” – com cerca de dois quintos do total, seguido pelo Japão com 7% e o Reino Unido com 6%. Todavia, estes dois últimos países são dos poucos que evidenciam quebras no número dos seus milionários, com o primeiro a perder cerca de 300 mil e o segundo 34 mil.
Adicionalmente, e sem excepção à regra, a Suíça continua a dominar o ranking dos mais ricos, com uma riqueza por adulto na ordem dos 537,600 dólares, o que representa um crescimento de 130% desde o virar do século.
Já em Portugal, a população de milionários passou a ter mais sete mil representantes, perfazendo um total de 68 mil, o que se traduz num acréscimo de 11,5% face a 2016.
Depois destas ricas notícias, as inevitavelmente mais pobres. No extremo oposto da opulência, estão 3,5 mil milhões de pessoas que, colectivamente e representando 70% da população mundial, são “donos” de 2,7% da riqueza global. Com activos (muito) inferiores a 10 mil dólares – e tendo em conta que em alguns dos países mais pobres de África, a percentagem da população que “cabe” neste grupo de riqueza (?) ascende aos 100% como regra e não como excepção – vivem 90% de africanos e de indianos.
Uma faixa populacional que merece também destaque individualizado neste mesmo relatório é a dos pertencentes à geração millennial (v. Caixa). Comparativamente às demais gerações, estes jovens, reconhecidos por terem qualificações académicas superiores às dos seus progenitores, enfrentam condições e obstáculos particulares, desde taxas elevadas de desemprego, regras hipotecárias muito mais restritas, maior desigualdade e menor mobilidade de rendimentos, menor acesso a subsídios e maior endividamento face às exigências de um percurso académico mais “rico”, mas também mais longo. Adicionalmente, e com os baby-boomers a ocupar a esmagadora maioria dos cargos de topo nas empresas, esta geração está a “sair-se pior” que a dos seus pais quando este tinham a mesma idade, especialmente no que diz respeito aos rendimentos, a terem casa própria e em outras dimensões de bem-estar igualmente analisadas no relatório, o qual identifica apenas uma minoria de jovens “que poderão ir longe” em sectores como o das tecnologia e das finanças, os quais poderão ser capazes de ultrapassar esta “desvantagem millennial”.
Estes são os principais resultados da edição de 2017 do Global Wealth Report. Mas vale a pena aprofundar alguns dos temas em análise e tentar perceber o que este já tão “rotineiro” fosso de desigualdade irá representar no futuro.
O virar do século e a crise que (re)compensou as maiores fortunas
Os primeiros anos do século XXI pareciam auspiciosos. De acordo com o Global Wealth Report, a cobertura geográfica do crescimento da riqueza foi, neste período, a mais disseminada da história recente, com todos os estratos sociais a beneficiarem da era da prosperidade: enquanto a riqueza média global por adulto cresceu 7% por ano entre 2000 e 2007, a metade inferior dos detentores de riqueza “saía-se” ainda melhor, com a média da mesma por adulto a crescer quase o dobro, ou cerca de 12% ao ano.
As economias emergentes – em particular a China e a Índia – não só partilharam deste crescimento, como se assumiram como líderes do mesmo e o impacto social de um planeta globalmente mais rico teve efeitos positivos mesmo nos segmentos populacionais mais pobres.
Depois veio a crise e este cenário de crescimento foi abruptamente suspenso, “limpando” 12,6 % da riqueza global. Todavia, não levou muito tempo para que a “retoma” da abundância fosse uma realidade – para os mais ricos – apesar de o seu ritmo ter sido mais lento e frágil.
Mas o que se assumiu como particularmente diferente foi a qualidade da criação de riqueza. No período pós-crise, e de acordo com o Credit Suisse, a fonte do crescimento da riqueza pendeu fortemente para os Estados Unidos, abrindo um fosso enorme com o Japão e com todo o continente africano, por exemplo. Adicionalmente, e porque os activos financeiros cresceram mais rápido do que os não financeiros, uma substancial parte do aumento da riqueza financeira deveu-se à inflação dos preços dos activos. O resultado? Os maiores detentores de riqueza foram substancialmente beneficiados e, em todas as regiões, a desigualdade foi aumentando todos os anos, entre 2007 e 2016.
Em todo o lado – com uma honrosa excepção para a China – a riqueza média por adulto apresentou um significativo declínio, o que nos fez chegar ao cenário que, por tão persistente, parece ser já o da normalidade: a de que o 1% mais rico do mundo tem nas mãos metade da riqueza global. Esta quota de riqueza tem vindo a aumentar consecutivamente desde 2007, voltando a alcançar os níveis de que gozava na passagem do século em 2013 e atingindo novos picos desde então. De um aumento de riqueza global na ordem dos 42,5% em 2008 para 50,1% em 2017, o mundo dos muito ricos vai bem e recomenda-se.
E, de acordo com as expectativas, vai ficar ainda melhor. O Credit Suisse aponta para um crescimento na ordem dos 22% para o número de milionários em 2022: dos 36 milhões actuais para os 44 milhões, com o número de adultos que vivem com menos de 10 mil dólares anuais a “encolher” apenas 4%. Uma micro-gota no oceano das desigualdades.
Como é sabido, há muito que os especialistas têm vindo a alertar não só para a “vergonha” desta desigualdade persistente, como para o facto de a mesma constituir uma ameaça à estabilidade e às instituições democráticas um pouco por todo o mundo. É que se os sistemas já estabelecidos, como os governos e as estruturas democráticas, não conseguem prover os seus cidadãos com um mínimo de bem-estar económico, não é de estranhar que estes últimos “optem” por procurar alternativas mais radicais. À medida que a desigualdade aumenta, os partidos extremistas, da esquerda e da direita, têm vindo a gozar de um maior apoio por parte dos mais vulneráveis e menos afortunados. A título de exemplo, o Fórum Económico Mundial alertou, no seu habitual relatório anual sobre os riscos globais (e sobre o qual o VER escreveu), que tanto a eleição de Donald Trump como os resultados do Brexit tiveram como força motriz a desigualdade persistente, sendo esta eleita como a mais importante tendência no mundo na próxima década.
E, detalhando ainda mais as percentagens de indivíduos que têm nos bolsos – e nos paraísos fiscais – a mais do que generosa fatia da riqueza mundial global, não se prevêem grandes melhorias no estreitar deste fosso intransponível.
É que e como já anteriormente assinalado, se a crise financeira que assolou os Estados Unidos em 2007, e se propagou rapidamente para o resto do planeta, abalou, por breves instantes, a riqueza dos mais ricos, uma década passada e estes foram já mais do que compensados e recompensados.
As quotas referentes ao 1% e aos 10% mais ricos do mundo sofreram uma redução entre 2000 e 2008: por exemplo, os que se incluem no topo dos topos viram a sua riqueza global declinar, neste período, de 46% para 43%. Todavia, não foi preciso esperar muito para que a tendência se invertesse, logo a seguir à crise financeira, e os que integravam o top dos 10% mais ricos do mundo não deixaram de dormir descansados por causa disso. Adicionalmente, e a partir de 2013, a quota relativa aos 5% de milionários com maior riqueza global acumulada estava acima dos valores observados no início do século, o mesmo acontecendo ao 1%, cujos níveis de riqueza estão, em 2017 e de acordo com o relatório do Credit Suisse, muito acima do que os que gozavam no ano 2000.
O top 10 dos países que se encontram na liga cimeira das grandes fortunas incluem também, e para além dos Estados Unidos, da França, do Reino Unido e da Austrália, economias mais pequenas, mas altamente dinâmicas como é o caso da Bélgica, da Dinamarca, da Nova Zelândia, da Noruega, de Singapura e, como sempre, da Suíça – com alguns casos considerados “notáveis” pelo relatório em causa em termos de riqueza emergente e que incluem países como o Chile, a República Checa, o Líbano a Eslovénia e o Uruguai. A título ainda de curiosidade e em termos proporcionais, a Polónia assume-se como o país em que o valor de riqueza média por agregado mais cresceu, num total de 18%. Israel e África do Sul são também regiões apontadas como grandes geradoras de riqueza ao longo do último, com o Egipto no extremo oposto, acusando uma quebra de quase metade dos seus activos em 2016.
“Escavando” ainda mais fundo nos dados apresentados pelo Global Wealth Report e sublinhando, mais uma vez, que a metade mais pobre do mundo detém, colectivamente, menos de 1% da riqueza global, é também para o reflectir o facto de 10% dos mais ricos deterem 88% de toda esta riqueza, enquanto o top 1% é dono de 50,6% da mesma.
Os paraísos dos milionários também ajudam à desigualdade
Apesar da crise financeira e da performance pouco estimulante da economia mundial desde então, a riqueza global dos agregados aumentou 163 biliões de dólares entre o ano 2000 e 2017. Os mercados emergentes têm vindo a conquistar uma fatia crescente deste bolo – no período em causa praticamente duplicaram a sua quota-parte no mesmo, de 11% para 19% – e, apesar de as expectativas apontarem para um crescimento mais lento nesta matéria face a previsões anteriores, estima-se que os mesmos continuem a aproximar-se gradualmente dos países desenvolvidos e a gerar mais riqueza. Mas e o que reserva o futuro para o pote de ouro global?
A notícia positiva – se bem que não suficientemente boa – é a de que o Credit Suisse prevê, para 2022, um decréscimo do número de pessoas no degrau mais baixo da escada da riqueza. Ou seja, se actualmente 70% da população mundial vive no patamar abaixo dos 10 mil dólares anuais, as expectativas apontam para que essa percentagem diminua para 66% daqui a cinco anos e com a classe média – definida pelo banco suíço como os que auferem entre 10 mil a 100 mil dólares – a contar com um crescimento na ordem dos 20% na sua riqueza líquida agregada. O segmento dos milionários, e como já anteriormente mencionado, deverá crescer, em número, até aos 44 milhões de indivíduos – com um incremento mais lento em termos de riqueza global – e o clube dos super-milionários deverá ter, em 2022, 193 mil membros face aos 45 mil com que conta na actualidade.
No cômputo geral, os dados estimados acima apontam para um ligeiro decréscimo no fosso das desigualdades. Ou seja, e no debate sobre o tema, acaba por nascer um paradoxo: a quota de pessoas no estrato mais baixo da população irá declinar, enquanto a riqueza dos mais ricos dos ricos irá crescer mais rapidamente comparativamente a qualquer outro grupo. Mais 719 multimilionários irão “nascer” nos próximos cinco anos, o que significa que o seu número ascenderá aos 3 mil.
Se estas projecções se mantiverem, decerto que se ouvirão vozes que irão defender que o mundo está menos desigual e que o aumento da riqueza global dos muito ricos deixará de ser (uma grande) notícia. O que, e esperemos que sim, poderá ser verdade. Mas existe um outro elemento que também conta – e muito – no planeta desigual: os paraísos fiscais.
No seguimento dos Panama Papers e, mais recentemente, dos Paradise Papers, existe também um consenso que deveria ser geral: afinal, existe uma regra (?) para os “poucos uns” e uma outra regra para todos os restantes.
Mais uma vez, e face a uma nova fuga de informação global a envolver mais de 13 milhões de documentos, o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação contribuiu para a exposição de múltiplas operações feitas através de offshores por parte de algumas das mais poderosas – e ricas – pessoas (e empresas) do mundo.
Dos maiores gigantes empresariais, a chefes de Estado, passando por “grandes nomes” da arena política, do entretenimento e do desporto que “resguardam” as suas fortunas em paraísos fiscais secretos, a verdade é que muito pouco se tem feito para se punir e, idealmente, se acabar com mais um “luxo” apenas disponível para as elites mais afortunadas do mundo. Seja em termos de evasão fiscal (incompreensível, mas tecnicamente legal, apesar de eticamente muito questionável) à criminalizada fraude fiscal, as elites mundiais continuam a gozar de privilégios intocáveis, os quais contribuem e muito para aumentar as suas mais do que abastadas fortunas.
Como foi amplamente divulgado, desde a rainha da Inglaterra, a vários membros, conselheiros e financiadores de Donald Trump, ao genro de Vladimir Putin, a empresas como a Nike, a Apple, a Uber ou ainda a maior retalhista do Reino Unido, a BrightHouse – conhecida por explorar famílias pobres e vulneráveis – são muitos aqueles que continuam a recorrer a esquemas cada vez mais criativos para fugir aos impostos e, consequentemente, a serem ainda mais ricos do que aquilo que já consta dos “relatórios oficiais”.
O que prova, e como se pode ler num interessante artigo publicado pela organização sem fins lucrativos The Conversation, que a evasão e a fraude fiscais se estão a tornar num indústria florescente. “Praticamente toda a indústria de investimento – a indústria especializada em fazer investimentos para os ricos e os muitos ricos do nosso mundo – opera a partir do universo das offshores. E a razão é simples. Cada fundo ou transacção, em conjunto com cada jacto ou iate ou com qualquer que seja a coisa que se registe nas ilhas Caimão ou nas Bermudas, não está sujeito a impostos. Para além de estar escondida dos olhos do público”, pode ler-se.
Para o autor deste artigo, Ronen Polen, professor de política internacional na Universidade e Londres, o que os Paradise Papers revelam também é o quão pouco sabemos sobre o nível de fuga aos impostos – e fraude fiscal – que tem origem nestes verdadeiros paraísos exclusivamente criados para os que detêm a maior riqueza acumulada do planeta. E também revelam que apesar de muitas promessas, as autoridades continuam a nada fazer, sendo que a opacidade continua a esconder quase tudo o que se passa no mundo das offshores.
E, desconfiamos, se a cortina fosse levantada, o Credit Suisse teria de reescrever o seu relatório anual sobre riqueza global.
Millennials: a geração sem sorte
Muito se tem escrito sobre eles e muitas esperanças foram depositadas no seu futuro, abrilhantado por qualificações académicas elevadas e por uma inquietude que poderia ajudar a mudar o mundo. Mas a verdade é que os jovens pertencentes à geração Y – mais conhecidos por millennials por se terem tornado “adultos” na viragem do século e do milénio – acabaram por iniciar a sua maioridade no “local errado, à hora errada” – particularmente os que vivem nos países desenvolvidos.
As gigantescas perdas de capitais que caracterizaram a crise financeira global em 2008-2009, em conjunto com as subsequentes taxas elevadas de desemprego, acabaram por “estourar” nas suas mãos, limitando as suas possibilidades tanto em termos de trabalho, como de poupanças. Juntemos o endividamento “académico”, as regras mais apertadas na concessão de empréstimos, os preços mais elevados das casas, o aumento da desigualdade de rendimentos, o menor acesso a subsídios do Estado e a menor “mobilidade” social e eis que surge a tempestade perfeita que em muito contribui para a não acumulação de riqueza por parte destes jovens em muitos países, apesar dos que vivem nas economias emergentes parecerem estar-se a sair menos mal.
De acordo com o relatório do Credit Suisse, os desafios colocados aos que pertencem à geração Y parecem ser mais evidentes nos Estados Unidos, mas já se propagaram também aos países europeus e a outras regiões do planeta. E contrastam fortemente com a geração dos baby boomers – os nascidos entre 1945 e 1964 – cuja riqueza foi dinamizada por um conjunto de factores positivos.
Alguns analistas apontam exactamente para os boomers como um dos principais obstáculos à prosperidade desta geração mais jovem, tendo estes actualmente entre 50 e 70 anos, o que significa também que estão na melhor “fase da riqueza da vida”, e que ocupam os lugares cimeiros – e mais bem pagos –no mercado de trabalho, não dando espaço à substituição geracional. E, de acordo com vários estudos realizados, os próprios millennials sentem que o seu progresso está em modo stand-by, esperando pelos lugares vazios que os boomers deixarão quando se reformarem. E a verdade é que, e comparativamente aos seus pais – os próprios boomers – e mesmo tendo pela frente as normais lutas que espreitam a vida adulta como ter uma casa própria, um bom emprego e uma família – esta geração vive pior, aparentemente com mais oportunidades mas, e na prática, sem grandes condições financeiras para as satisfazer.
Editora Executiva