Em Portugal, o aumento de pessoas em situação de exclusão social é uma das principais consequências da crise económica mundial. As organizações sociais não têm tido mãos a medir para socorrer os pedidos de ajuda que, de forma crescente, lhes chegam. No entanto, e apesar da diminuição das receitas das próprias instituições, estas revelam pertencer a um sector empenhado em inovar e criar um impacto positivo na sociedade. Estas são as principais conclusões do estudo “O impacto social e institucional da crise Económica e Financeira do Terceiro Sector”, apresentado recentemente pela Rede Europeia Anti-Pobreza
POR
MÁRIA POMBO

Portugal é um dos países europeus mais afectados pela crise financeira mundial que despoletou em 2008, tendo sido a terceira nação do Velho Continente (depois da Grécia e da Irlanda) a pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI). E a conclusão, em Maio de 2014, do Programa de Assistência Económica e Financeira, que terá marcado um momento de transição da economia portuguesa, não teve ainda os efeitos necessários para que possamos afirmar que os tempos difíceis são “uma coisa do passado”.

O aumento da exclusão social e do desemprego (principalmente de longa duração), bem como o abrandamento do crescimento económico, são algumas das principais consequências desta crise, a qual foi encarada, numa fase inicial e por algumas pessoas, como uma oportunidade positiva de mudança e de busca de alternativas para superar as dificuldades sentidas. Os cortes salariais constituem outra consequência destes tempos difíceis, deixando todos os agregados mais fragilizados (mesmo aqueles que tinham uma situação financeira estável e que acreditavam estar imunes às consequências deste flagelo). Complementarmente, o aumento da taxa de pobreza da população infantil e juvenil que, segundo os Indicadores de Pobreza da OCDE, passou de 22,4%, em 2009, para 25,6%, em 2013, é outra grande consequência da crise.

É neste contexto de luta contra a pobreza e exclusão dos mais desfavorecidos que é dada importância à economia social. De acordo com o Eurocid – Portal de Informação Europeia em Língua Portuguesa, a definição deste conceito abrange outras noções, como economia solidária e terceiro sector (sendo muitas vezes considerada sinónimo das mesmas), e remete para “um modelo de pessoa colectiva que se caracteriza não pela dimensão ou pelo sector de actividade, mas antes pelo respeito de valores comuns”.

O primado da democracia, da participação dos parceiros sociais e dos objectivos sociais sobre o lucro pessoal, a defesa e implementação dos princípios da solidariedade e da responsabilidade e a conjugação dos interesses dos membros utilizadores com o interesse geral são alguns valores fundamentais para a economia social. A mesma engloba também o controlo democrático pelos membros, bem como a sua adesão livre e voluntária, a autonomia de gestão e a independência relativamente aos poderes públicos, e ainda a mobilização do essencial dos excedentes para a concretização de objectivos de desenvolvimento sustentável e o serviço prestado aos seus membros de acordo com o interesse geral.

[pull_quote_left]A necessidade de criar um “fundo de sustentabilidade” é fundamental para a sobrevivência das organizações[/pull_quote_left]

Complementarmente, e afastando-se da ideia romântica de “fazer o bem sem olhar a quem”, o Eurocid revela que este sector heterogéneo garante emprego “a cerca de 14,5 milhões de pessoas, ou seja, aproximadamente 6,5% da população activa da UE-27”. De acordo com as suas características, este sector enquadra-se na Estratégia Europa 2020, apresentada em Março de 2010, e que visa desenvolver uma economia baseada no conhecimento, na inovação, na eficiência de recursos e na coesão económica, social e territorial, através do aumento do PIB e da taxa de emprego, da redução do abandono escolar e do número de pessoas em situação de pobreza, e também da diminuição da emissão de gases com efeito de estufa.

Neste âmbito, e ainda de acordo com o órgão acima referido, a economia social pretende assumir um papel regulador da actividade económica, promover a acessibilidade a serviços, controlar o impacto dos ciclos económicos, fomentar a igualdade de oportunidades, estimular a existência de uma democracia económica assente na redistribuição da riqueza, e posicionar-se numa construção integrada do espaço comunitário.

É em tempos atribulados de crise como o que vivemos actualmente que as entidades da economia social assumem um papel importante e até ingrato. As diversas mudanças que a sociedade tem vindo a sofrer obrigam as organizações sociais a procurar novos recursos para fazer face às novas exigências, trabalhando ao lado do Estado na promoção do bem-estar social. Consequentemente, também estas enfrentam novos desafios, pois são forçadas a responder, com menos meios, a um número crescente de pedidos de ajuda.

Crise: aumenta voluntariado mas diminuem apoios

02062016_OpoderDaFoi para perceber quais são os efeitos da crise nas organizações sociais portuguesas, e também a forma como estas estão a reagir à mesma, que a Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN Portugal), em conjunto com a Associação para a Extensão Universitária da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (APEU – FEUC), realizou o estudo “O impacto social e institucional da crise Económica e Financeira do Terceiro Sector”. Este documento foi apresentado no passado dia 9 de Maio, no Encontro Nacional de Associados da EAPN Portugal, onde se comemoraram também os 25 anos desta associação.

No prefácio do documento, a directora executiva da EAPN Portugal, Sandra Araújo, explica que “a convivência, quer com o aumento da procura dos serviços sociais, quer com a redução do financiamento, a diminuição das doações voluntárias e o aumento das exigências dos financiadores são realidades que hoje impõem mudanças estruturais nas organizações de economia social, no seu ambiente interno, [e também] na sua forma de interacção com os outros sectores – Estado e mercado”. Adicionalmente, a responsável por esta organização refere que estas alterações “resultam no aumento da complexidade da sua gestão e da necessidade de investimentos, modernização e adaptação às mudanças [relativamente à] busca da auto-sustentação, continuidade e perpetuação das suas acções”.

O presente estudo resultou de entrevistas em profundidade, realizadas entre Março e Maio de 2014, a oito organizações (de que são exemplo a Fundação Montepio, a Cruz Vermelha Portuguesa ou a Caritas) e de inquéritos online, entre Abril e Junho de 2015, às entidades que, de forma “alargada”, compõem o terceiro sector em Portugal, tendo recolhido um total de 341 respostas válidas. O mesmo faz uma actualização de uma outra análise, realizada em 2010 também pela EAPN, sobre a actuação das organizações da economia social e o seu papel no combate à pobreza e exclusão social. No entanto, foram as mudanças impostas pela crise que motivaram os responsáveis pela organização em causa a olhar novamente para esta realidade, procurando saber se se alterou a percepção que as próprias têm acerca da sua importância na sociedade portuguesa e também de que modo superam as dificuldades que enfrentam diariamente, numa época tão delicada como aquela que temos vivido nos últimos anos.

[pull_quote_left]A alteração dos objectivos de intervenção das próprias instituições é uma grande aposta do terceiro sector para fazer face às consequências da crise[/pull_quote_left]

Sem grandes surpresas, quando questionadas acerca do papel do terceiro sector na sociedade, a maioria das organizações elegeu a “promoção do bem-estar social”, seguido do “desenvolvimento social” e do “desenvolvimento de laços sociais”; a opção “desenvolvimento económico” foi a menos escolhida. Contudo, nesta nova análise verificou-se uma mudança interessante relativamente à importância deste sector na sociedade e aos apoios que o Estado deve dar: se no estudo de 2010 a maioria das organizações defendia que o Estado deveria reforçar os apoios dados à economia social, actualmente estas reconhecem o seu próprio papel central no fornecimento de apoios e serviços à população, estando mais conscientes da sua “obrigação” de trabalhar ao lado da Administração Central.

Relativamente aos atributos necessários para criar uma organização do terceiro sector com impacto para os beneficiários, 83% elegeram a “qualidade do trabalho e/ou dos serviços”, 50,7% evidenciaram a “capacidade de trabalho em parceria” e 39,6% escolheram a “solidez financeira” como a principal característica que uma instituição deve ter. De 20 opções disponíveis, as “competências de Relações Públicas e media” (com 1,2%) e a “gestão da marca, da imagem e da reputação” (com 5,6%) foram consideradas as qualidades menos importantes para a criação de uma organização social.

Deste modo, conclui-se que é na qualidade do trabalho desenvolvido e dos serviços prestados que estas organizações se distinguem das restantes entidades de outros sectores, e que o marketing não é visto como uma preocupação destas nem é considerado essencial para garantir a qualidade da sua acção junto da população.

O impacto da crise económica neste sector foi encarado de diversas formas e sob diferentes perspectivas. Se numa primeira análise é possível concluir que alguns aspectos, como o número de voluntários e de trabalhadores, não sofreram alterações significativas (e as que sofreram foram positivas e resultaram no aumento do número de uns e de outros), numa análise mais aprofundada compreende-se que, de forma negativa, os rendimentos das instituições sociais, decorrentes da diminuição de apoios (filantropia individual, empresarial, comparticipações dos utentes e subsídios públicos), foram significativamente afectados, tendo sido colmatados (em alguns casos) com as receitas provenientes da venda de alguns produtos.

A este respeito, importa referir que a quebra dos apoios por via de comparticipações de utentes revela, por si só e como é do conhecimento geral, que a crise afectou não só o terceiro sector mas também (e principalmente) o rendimento das famílias. Desta forma assistimos, por um lado, ao crescimento do número de pedidos de ajuda e de beneficiários e, por outro, à melhoria da qualidade dos serviços prestados e dos bens produzidos (conseguida em parte com o apoio do voluntariado), os quais têm tido um impacto positivo na pressão exercida junto das entidades estatais, estimulando a criação e o “impulso de políticas para o desenvolvimento de novas respostas de carácter emergente”.

Organizações empenhadas em ter um impacto positivo na sociedade

02062016_OpoderDa2Os desafios impostos por estes “tempos difíceis” são variados. Cerca de metade (51,6%) das organizações considera que o seu principal desafio é responder prontamente às necessidades sociais, mantendo a qualidade dos seus serviços (50,7%). A necessidade de criar um “fundo de sustentabilidade” que permita manter a actividade em períodos de carência de apoios é outro dos desafios impostos pela crise e fundamental para a sobrevivência de muitas organizações.

Sem vontade de baixar os braços, 79,5% das organizações inquiridas afirmaram procurar agora novas formas de financiamento (novos subsídios, por exemplo), e 71% revelaram trabalhar mais em parceria com outras instituições. Duas outras vias apontadas pelas instituições, para ultrapassar a crise, estão relacionadas com a busca de independência relativamente a apoios de terceiros: 55,4% assumiram procurar actividades geradoras de financiamento, e 53,4% promovem agora a criação de novos serviços e valências. No pólo oposto, a “fusão” com outras organizações (5,3%), a redução dos serviços (12,9%) e a substituição dos corpos dirigentes da organização (17,3%) são as soluções menos procuradas.

Entre os novos serviços e valências encontram-se o atendimento a públicos “pouco habituais”, em áreas tão distintas como a deficiência e incapacidade, a infância, a velhice, as cantinas sociais, e a educação e formação. Esta reestruturação, a qual implica a alteração dos objectivos de intervenção das próprias instituições – e que está relacionada com o acesso às medidas do Programa de Emergência Social (criado pelo Governo, em 2011, com o objectivo de minimizar o impacto da crise e proteger a população mais vulnerável) e a outros apoios – foi, assim, uma grande aposta do terceiro sector para fazer face às consequências da crise. Complementarmente, o controlo de custos (principalmente dos fixos) relacionado com a optimização de gastos energéticos, com a renegociação dos contratos de manutenção e prestação de serviços e até com a mudança de instalações, foi um outro caminho seguido por diversas instituições.

As actividades geradoras de novos financiamentos revelam uma capacidade e uma vontade de inovar em termos de serviços, e também de reivindicar o seu papel na sociedade. Agora mais do que nunca, estas pretendem fazer a diferença e ter um impacto positivo junto da população com quem trabalham, assumindo uma posição mais activa e interventiva. As novas formas de gerar dinheiro e de se auto-sustentarem, não ficando presas ao financiamento por parte de terceiros, são outra das principais apostas das organizações para combater a crise e ultrapassar todas as suas consequências.

[pull_quote_left]As organizações sociais estão empenhadas no desenvolvimento de novas metodologias de identificação e resposta aos problemas sociais[/pull_quote_left]

Numa tentativa de projecção do futuro, as organizações prevêem a existência de uma maior cooperação entre entidades congéneres, de uma maior preocupação com a amplificação do seu impacto social, e também de uma maior cooperação com o poder local. Adicionalmente, as mesmas estão empenhadas na promoção e desenvolvimento de novas metodologias de identificação e resposta aos problemas sociais. No entanto, existe uma preocupação generalizada com a escassez de recursos e também com a “asfixia financeira” provocada, por um lado, pela diminuição de fontes de receita e, por outro, pelo aumento das necessidades a que é preciso dar resposta.

Em termos gerais, os promotores deste estudo revelam que as organizações estão mais optimistas que pessimistas relativamente ao futuro do terceiro sector, esperando uma evolução significativa em termos de cooperação entre estas, promovendo-se assim o desejado alargamento do sector e a consolidação da sua missão. Prevê-se ainda o surgimento de mais organizações empresariais (o que contribui para a crescente afirmação do sector lucrativo enquanto provedor de serviços sociais) e existe a consciência de que será necessário criar “fusões” entre organizações, tendo em conta que a partilha de conhecimentos e recursos será fundamental para a sobrevivência de muitas delas.

Adicionalmente, as previsões mais pessimistas apontam para o encerramento das organizações mais pequenas, menos inovadoras e abertas à mudança, e também daquelas que apresentam menores capacidades a nível financeiro. As organizações que trabalham essencialmente com os públicos infantil e juvenil são aquelas que, de acordo com este documento e como consequência da descida da natalidade e do aumento da população idosa, apresentam as maiores dificuldades de sobrevivência.

Curioso é o facto de as principais prioridades apontadas pelas organizações estarem relacionadas com a garantia de melhores serviços e com a capacidade de responder a um maior número de pedidos de ajuda, e não com os desafios financeiros que as mesmas enfrentam (e cuja superação constitui uma das suas grandes preocupações). Adicionalmente, divulgar melhor os serviços, capacitar os técnicos e promover uma boa gestão dos recursos humanos são também grandes prioridades apontadas pelas instituições.

Se é verdade que a crise económica tem abalado a sociedade portuguesa e aumentado o número de pedidos de ajuda (resultado essencialmente do aumento da taxa de desemprego e da diminuição dos rendimentos das famílias), também é verdade que o terceiro sector tem revelado uma grande capacidade de resposta às necessidades que surgem diariamente, e de adaptação a estes “tempos mais difíceis”.

Mesmo com a diminuição das fontes de receita, as organizações sociais revelam estar empenhadas em inovar no tipo de serviços que prestam e em melhorar em termos de capacidades técnicas, tendo agora a consciência de que são fundamentais para o desenvolvimento do País e para a diminuição da exclusão social. Investindo em novas valências e apostando no empreendedorismo, estas organizações revelam ser capazes de aproveitar as diversas oportunidades que vão surgindo e que podem garantir a sua sobrevivência e sustentabilidade, como a venda de novos produtos, a promoção de novos serviços e a cooperação com instituições congéneres.

Jornalista