Paul Tough está a provocar um debate acalorado na comunidade educativa norte-americana. Em vez de nos esforçarmos para criar “bebés Einstein” e de considerarmos o QI como determinante para o sucesso dos nossos filhos, devemo-nos concentrar nas denominadas competências não cognitivas que, em conjunto, formam o carácter. Resiliência, optimismo, saber gerir o stress e ter capacidade para se lidar com o fracasso, ultrapassando-o e aprendendo com ele, são cruciais para o desenvolvimento de seres humanos “inteiros”. Sejam eles provenientes de meios pobres ou abastados…
POR HELENA OLIVEIRA

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Por que motivo algumas crianças são bem-sucedidas enquanto outras fracassam? Quais as razões subjacentes ao facto de, em média, as crianças mais desfavorecidas serem menos propensas ao sucesso comparativamente às suas congéneres da classe média? E o que podemos fazer para conduzirmos o maior número de crianças ao sucesso?

Foi essencialmente para responder a estas questões que Paul Tough, jornalista e autor de Whatever It Takes: Geoffrey Canada’s Quest to Change Harlem and America e sobre o qual o VER já escreveu , resolveu mergulhar numa clínica pediátrica, num bairro pobre de San Francisco, numa dispendiosa escola privada de Nova Iorque, num torneio juvenil de xadrez e num conjunto de pesquisas realizadas por economistas, psicólogos, médicos e neurocientistas. O resultado cifrou-se no livro How Childreen Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character que tem estado a dar que falar, não só entre os pais sempre desejosos de encontrar os segredos escondidos para o sucesso dos seus filhos, mas em particular na comunidade educativa norte-americana. Longe de ser um manual de instruções para pais obcecados com o bem-fazer futuro dos seus filhos, o livro vai mais longe: como escreveu uma jornalista do The New York Times, “é um verdadeiro guia para as ironias e perversidades da desigualdade de rendimentos na América”.

A verdade é que, mesmo que Tough não o tivesse previsto inicialmente, a sua pesquisa acaba por traçar o retrato de um país com crianças extremamente privilegiadas e extremamente pobres que em comum partilham a privação de experiências emocionais e intelectuais indispensáveis para a construção de um carácter sólido. É que a grande novidade introduzida pelo trabalho de Paul Tough deita por terra, apesar de não completamente, a ideia que há muitos anos tem contribuído para colocar em lados diferentes da barricada aqueles que atingem o sucesso e os que se ficam pelo fracasso: o sucesso depende, em grande escala, das competências cognitivas – ou seja, do tipo de inteligência medida pelos testes de QI , incluindo as capacidades para reconhecer letras e palavras, para fazer cálculos, para detectar padrões, sendo que a melhor forma para se desenvolver estas competências é praticá-las o mais possível, e começando o mais cedo possível.

Todavia e de acordo com a pesquisa de Tough, uma nova hipótese está a ser formulada e a receber atenção por parte de equipas multidisciplinares: a de que são as competências não cognitivas, inerentes ao carácter (em inglês, character, numa definição mais abrangente do que a dada pela língua portuguesa e que pode significar também “personalidade) – e que integram a persistência, a curiosidade, a resiliência, o auto-controlo, o optimismo, a coragem (grit, em inglês, que pode também significar determinação e a preferida do autor) e, talvez a mais importante, a capacidade de se lidar com o fracasso, ultrapassando-o e aprendendo com ele – que mais cruciais são para traçar o caminho para o sucesso.

De acordo com o próprio Tough, “os psicólogos e os neurocientistas têm aprendido muito, ao longo das últimas décadas, sobre a proveniência deste tipo de competências e como podem as mesmas ser desenvolvidas. E as suas descobertas podem ser sumarizadas numa única frase: “o carácter é criado quando se encontra e ultrapassa o fracasso”. [A ideia não é inteiramente nova e tem sido amplamente discutida, principalmente na literatura de gestão, como o VER já teve oportunidade de escrever no artigo “O fracasso é o trampolim para o sucesso”]

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Meninos ricos, meninos pobres
Uma boa parte da pesquisa efectuada por Paul Tough foi realizada junto de bairros pobres. E, diz-nos a sabedoria convencional que a principal razão para os miúdos que nascem e se desenvolvem em contextos de pobreza não atingirem o sucesso é, em grande parte, a falta de estimulação cognitiva. Ora Paul Tough pode ter “descoberto” outro mito. Se é uma verdade inegável que crescer na pobreza é particularmente difícil para as crianças, o factor que mais parece contribuir para o seu fracasso enquanto adultos está mais relacionado com os ambientes caóticos nos quais muitos miúdos pobres se desenvolvem em conjunto com relacionamentos desgastantes que mantêm com os adultos que os rodeiam. Este ambiente faz realmente uma grande diferença para a forma como os cérebros das crianças se desenvolvem, sendo que os cientistas estão agora capacitados para traçar uma linha recta entre experiências negativas na primeira infância e os problemas mais tardios na escola, na saúde e no comportamento.

Todavia, e a partir de uma pesquisa extensa desenvolvida pela psicóloga Suniya Luthar junto de crianças privilegiadas e também de uma escola para “meninos ricos” de Nova Iorque, que Tough incluiu na sua própria investigação, a conclusão foi a de que estas crianças, provenientes de meios abastados, sofrem exactamente dos mesmos problemas de falta de coragem, determinação, autocontrolo ou optimismo encontrados nos seus pares pobres.

Mas afinal o que une miúdos provenientes de extremos socioeconómicos e com vivências tão distintas? Como explica o próprio Tough, é realmente verdade que as crianças que nascem e crescem em ambientes de afluência enfrentam os seus próprios desafios no que respeita ao domínio do carácter. Citando os estudos de Sunya Luthar, psicóloga e investigadora na Universidade da Columbia, um dos seus estudos revelou problemas psicológicos no extremo socioeconómico “mais abastado”, com taxas mais elevadas de depressão e abuso de substâncias ilícitas comparativamente aos sues congéneres que nasceram e cresceram no extremo oposto, ou seja, na pobreza. Este tipo de problemas acaba por surgir nos agregados de rendimentos elevados nos quais as crianças sentem, em simultâneo, uma enorme pressão para serem bem-sucedidas em conjunto com uma distância emocional por parte dos pais, uma combinação particularmente tóxica de acordo com os estudos da psicóloga em causa.

Adicionalmente, as crianças provenientes de meios mais abastados são, desde o berço, completamente isoladas de qualquer tipo de adversidade, superprotegidas e pouco ou nada preparadas para ultrapassarem dificuldades ou para lutarem por algo que desejem muito. Todavia, a principal vantagem que as crianças ricas têm face aos miúdos pobres são exactamente os recursos familiares e de vizinhança que lhes permitem ser “bem-sucedidos” em termos materiais – para tirarem o seu curso universitário, por exemplo – apesar de travarem este tipo de lutas. A rede social que os acompanha ao longo de toda a vida serve para os “apanhar” quando saem “do caminho”. O que não acontece com as crianças pobres e sendo essa a razão por que Tough acaba por concordar que estes desafios de carácter acabam por ser muito mais importantes para os que não têm privilégios.

Por outro lado, existem também evidências que os miúdos pobres, quando dotados destas competências não cognitivas, desenvolvem maiores capacidades de resiliência e, consequentemente, têm mais facilidade em transpor os obstáculos que ao longo da vida vão conhecendo. Ao longo do livro, Tough oferece excelentes exemplos e histórias de vida surpreendentes sobre miúdos oriundos de meios pobres.

Contudo e infelizmente, são muitos os meninos pobres que não desenvolvem este tipo de resiliência. E a razão, como escreve Tough, pode ser encontrada nas suas infâncias conturbadas: “a parte do cérebro mais afectada pelo stress prematuro é o córtex pré-frontal, o qual é crítico para as actividades de autocontrolo, tanto ao nível emocional como cognitivo. Como resultado, as crianças que crescem em ambientes tensos e desgastantes têm, geralmente, maiores dificuldades de concentração, de se manterem quietas, de recuperarem de desapontamentos e de seguirem orientações. E é óbvio que isso tem um efeito directo na sua performance escolar. Quando alguém se sente esmagado por impulsos incontroláveis e distraído por sentimentos negativos, torna-se realmente mais complicado aprender o alfabeto”, escreve Tough.

Mais uma vez, as vivências destas crianças poderiam ser “amortecidas” relativamente aos ambientes tensos em que crescem, se tivessem pais atentos e receptivos às suas necessidades, mas também é verdade que os adultos que coexistem com estas crianças carregam, muitas vezes, problemas demasiado pesados e não têm disponibilidade para oferecer este tipo de cuidados.

Por seu turno, os miúdos ricos, podem também sofrer da ausência de uma “ligação de cuidados” com os seus pais e mães – não tanto nos primeiros anos da infância, mas principalmente quando entram na adolescência, altura em que a pressão para serem bem-sucedidos se intensifica. E, para fechar este tema, Tough conclui que, tanto para adolescentes ricos como para os pobres, certas características familiares acabam por ditar o seu destino, incluindo níveis reduzidos de ligação com as mães, níveis elevados de críticas e supervisão reduzida relativamente ao que fazem depois da escola por parte dos pais.

Daí a importância de se ter uma atenção especial para o desenvolvimento das competências não cognitivas.

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Aprender a lidar com o fracasso e a gerir a adversidade
Mas como se ensina, ou se aprende, a ter coragem, curiosidade, perseverança, resiliência, rectidão, autocontrolo e optimismo – as competências eleitas por Paul Tough? Em primeiro lugar, o livro aponta para o facto de que o período mais eficaz para se ajudar uma criança a desenvolver estas competências não cognitivas é o da primeira infância, ou seja, antes do primeiro dia de escola. Mas apesar de existirem algumas intervenções experimentais centradas no desenvolvimento destas competências não cognitivas em algumas escolas dos Estados Unidos, a maioria dos estudos que existem sobre as mesmas foram desenvolvidos por psicólogos ou pediatras.

Todavia, as duas escolas escolhidas para figurar no livro de Tough, estão a colaborar numa iniciativa de desenvolvimento do “carácter”. A primeira iniciativa está a ser implementada num conjunto de escolas, denominadas “charter schools” [as charter schools são, por definição, escolas que apesar de financiadas, em parte, pelo sistema público, têm liberdade na escolha dos currículos e nos métodos pedagógicos utilizados] abrangidas pelo programa KIPP – Knowledge IS Power Program – e que serve uma população maioritariamente proveniente de famílias sem rendimentos; e a Riverdale Country School, em Nova Iorque que, ao invés, é constituída na sua maioria por crianças abastadas. Em conjunto, estas duas escolas desenvolveram uma lista de sete pontos fortes de carácter, os quais estão a ser trabalhados para encorajar os estudantes a “abraçá-los”. Como explica o autor, a intervenção levada a cabo no KIPP está já mais avançada do que a de Riverdale. Há já alguns anos, e como descreve Tough no seu livro, o KIPP desenvolveu um “boletim de notas sobre o carácter” – conhecido como o boletim do crescimento do carácter – e em alguns períodos do ano, todos os estudantes são avaliados relativamente a sete atributos de carácter por parte dos seus professores, sendo que estes atributos são trabalhados em contínuo. A Riverdale School não tem este tipo de boletim, mas os corpos directivos e os professores discutem também os pontos fortes do carácter não só nas aulas, mas também em reuniões periódicas. Apesar de ainda ser prematuro falar dos resultados destes programas, as escolas integradas no programa KIPP têm vindo a melhorar a performance dos seus alunos no que respeita aos exames nacionais.

Ao longo do livro, Tough insiste na importância do fracasso como um “bloco de construção” por excelência do carácter. Se não deixarmos as nossas crianças falhar – desde as quedas e tropeções dos primeiros anos até saber perder nos jogos infantis ou no desporto – elas não irão desenvolver as competências não cognitivas necessárias para sobreviver adequadamente quando forem mais velhas.

O termo “carácter” ou “personalidade” é muitas vezes utilizado de forma errada para descrever algo que é inato e não maleável, ou seja, algo que nos define desde o nascimento. E apesar de os neurocientistas afirmarem que o carácter de uma pessoa depende pelos menos em 50% da genética, Tough acredita que o ambiente tem um impacto muito maior do que aquele que imaginamos. “Tendemos a procurar explicações biológicas porque são mais fáceis de entender, mas as primeiras experiências são extremamente importantes”, diz. “Quando os psicólogos seguem uma criança desde a mais tenra idade até à idade adulta, o temperamento aos seis meses tem profundas correlações com o mesmo aos 30 anos”, acrescenta. O que significa que o que acontece a uma criança nos primeiros seis meses de vida é crucial.

Existem dois períodos particularmente importantes para o desenvolvimento futuro das crianças: o período que antecede a entrada para uma creche (Tough utiliza os primeiros 18 meses de vida) e o período da adolescência, quando, pela primeira vez, as crianças são capazes de reflectir sobre os seus próprios pontos fortes em termos de carácter e, possivelmente, alterá-los. Se no primeiro período o grau de resposta às necessidades expressas pelos mais pequenos é de particular importância (o elo de ligação que existe, por exemplo, entre mãe e filho), as grandes transformações que se operam na adolescência e as decisões tomadas ao longo desse período podem afectar a vida de um jovem para sempre.

As dificuldades que as crianças poderão encontrar mais tarde nas suas vidas podem, em parte, ser atribuídas ao facto de os pais terem falhado em incutir um “bom carácter”, o qual Tough define como curiosidade, perseverança e generosidade de espírito – exactamente nos primeiros anos de vida quando o córtex pré-frontal está no máximo da sua plasticidade.

E se os pais podem contribuir significativamente para afectarem, positiva ou negativamente, o carácter emocional e psicológico dos seus filhos, também as escolas o podem fazer. E quando as crianças crescem sem o apoio adequado por parte do meio familiar, as escolas podem fazer muito para compensar essa ausência de suporte.

Todavia, a “aprendizagem de carácter” permanece uma ciência elusiva e Tough é absolutamente honesto no que a este tema diz respeito. Para que este assunto fosse devidamente estudado e aplicado, o sistema escolar teria de sofrer uma enorme reconfiguração. E a questão que se coloca é se os professores – constantemente em debate devido aos inúmeros métodos de ensino existentes nas disciplinas “cognitivas” – estariam receptivos a outra revolução educativa.

Mas Tough afirma estar esperançado: “Existem muitas más notícias sobre a performance escolar de alunos, ricos e pobres. Se uma intervenção adequada acontecer, a mudança é possível. Só que pode demorar algum tempo. Ou demorar para sempre”. E, na verdade, a educação é uma ciência que estará sempre longe da perfeição.

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