Durante a Segunda Guerra Mundial, um jovem médico alemão fora destacado para um dos campos para efectuar o processo de selecção. No final do primeiro dia, nauseado e febril com o que se passara, pediu para ir combater para não participar naquela desumanidade. Mobilizado para a frente de batalha, ouviu o silvo das balas e aterrorizou-se. Pediu para ser novamente remetido para o campo de concentração para continuar o ‘trabalho’ de selecção. Ao fim de uma semana, fazia-o numa grande descontracção e chegava a gracejar
POR PEDRO COTRIM

No dia 23, Josep Borrell, alto Representante da União Europeia para a Política Externa, pediu em nome dos 27 uma «pausa humanitária» para que a ajuda pudesse entrar na Faixa de Gaza. Admitiu que era muito menos que o completo cessar-fogo proposto por Guterres, mas seria sem dúvida uma bonança bem-vinda.

Há, desde sempre, opiniões contrárias sobre o conflito no Médio Oriente. A magnitude do ataque do Hamas e da resposta de Israel, ainda por cima numa altura em que há câmaras e formas de difundir imagens por todo o lado, trouxeram o conflito para as manchetes como há muito não se via. Borrell falou nas atrocidades que os judeus sofreram no Holocausto e em como jamais deviam suprimir o fornecimento de água e electricidade a civis indefesos. Há uma semana, Paddy Cosgrave, responsável pela Web Summit, foi ‘cancelado’ por emitir a sua opinião sobre o que se passa na Terra Santa. A magnitude do mal atormenta e é claro que não é uma discussão nova.

As discussões sobre o mal podem variar muito em termos das suas perspectivas filosóficas, sociais e teológicas. Diferentes pensadores fornecem diversas interpretações e teorias sobre a natureza, as origens e as manifestações do mal na experiência humana e no mundo. Quando surgem conflitos, ou quando tornam a aparecer nas notícias, vemos o inominável e pensamos sobre o que pode levar um ser humano a fazer tanto mal a outro.

Santo Agostinho, nas suas Confissões, debruçou-se sobre o problema do mal e a sua existência num mundo criado por um Deus Bom e Todo-poderoso, contribuindo significativamente para o desenvolvimento da teologia cristã sobre este tema. Sabemos que a moralidade não carece de crença e que há bem e mal em todo o lado. São, no fim de contas, as duas faces da mesma mente.

Hannah Arendt é um nome incontornável quando se trata de analisar o mal, com os seus trabalhos sobre temas como o totalitarismo, a autoridade e a natureza do mal. No seu livro Eichmann em Jerusalém: Um Relatório sobre a Banalidade do Mal, discutiu o conceito de maldade no contexto do julgamento de Adolf Eichmann, um funcionário nazi de alta patente responsável pela organização logística do Holocausto.

Arendt argumentou que Eichmann não parecia ser um indivíduo monstruoso nem excepcionalmente malévolo, mas um burocrata que cumpria ordens e executava as suas funções com eficiência. A análise de Arendt suscitou a questão de saber como é que actos de maldade tão horrendos podiam ser levados a cabo por pessoas não especialmente notáveis pelo seu carácter maligno.

Mais recentemente, Nikolaus Wachsmann, historiador anglo-alemão, escreveu uma obra notável: KL: A History of the Nazi Concentration Camps. Aborda o tema do mal e de como um cidadão comum pode cometer atrocidades. Há um exemplo por ele citado que dá que pensar: um jovem médico alemão fora destacado para um dos campos para efectuar o processo de selecção. No final do primeiro dia, nauseado e febril com o que se passara, pediu para ir combater para não participar naquela desumanidade. Mobilizado para a frente de batalha, ouviu o silvo das balas e aterrorizou-se. Pediu para ser novamente remetido para o campo de concentração para continuar o ‘trabalho’ de selecção. Ao fim de uma semana, fazia-o numa grande descontracção e chegava a gracejar.

O espantoso trabalho de investigação de Wachsmann dá muito mais exemplos de banalização do mal, enfatizando ao nível de colaboração e de burocracia dentro do sistema de campos. Destaca o papel de várias agências estatais, indivíduos e organizações na manutenção e expansão da rede de campos, categorizando-os em diferentes tipos, incluindo campos de concentração, campos de extermínio e campos de trabalhos, entre outros. Explora as funções específicas e as brutalidades associadas a cada tipo. Através de extensa pesquisa e testemunhos de sobreviventes, Wachsmann investiga as experiências dos reclusos nos campos, destacando o sofrimento extremo, a desumanização e a luta pela sobrevivência.

As questões que estão por trás das atrocidades têm séculos. Como é que uma pessoa aparentemente cheia de escrúpulos é capaz de cometer actos hediondos? A luta pela sobrevivência tudo justifica? Será a obediência a mandar? A este propósito, Stanley Milgram fez experiências arrasadoras sobre a obediência à autoridade. O seu estudo mais famoso, realizado no início da década de 1960, foi concebido para investigar até que ponto as pessoas obedeceriam a uma figura de autoridade, mesmo quando as suas acções fossem contra as suas crenças morais ou causassem danos a outros.

O estudo envolveu uma série de voluntários recrutados para o que lhes foi dito ser uma experiência de memória e aprendizagem. Não tinham conhecimento da verdadeira natureza do estudo. Os participantes eram designados para o papel de «professor», havendo ainda um «aluno» e um «investigador», na realidade cientistas conhecedores do teste e coniventes neste estudo. O «professor» era instruído a administrar choques eléctricos ao «aluno» sempre que este respondesse incorretamente a uma pergunta. Os «choques» variavam entre os 15 e os 450 volts, com rótulos de níveis crescentes de perigo. O «investigador» encorajava o «professor» a continuar a administrar os choques, mesmo quando o «aluno» protestava, gritava de dor ou acabava por não reagir, aparentando ter morrido.

Uma parte significativa dos participantes, cerca de 2/3, continuou a administrar choques até ao máximo de 450 volts, mesmo quando se sentiam claramente desconfortáveis e angustiados. Fizeram-no porque se sentiram obrigados a obedecer ao «investigador». O estudo demonstrou como factores situacionais, como a presença de uma figura de autoridade e a natureza estruturada da experiência – as condições de laboratório foram primorosamente replicadas –, podiam levar as pessoas a agir contra os seus próprios juízos morais.

É provavelmente a experiência mais famosa da psicologia social, juntamente com a dos prisioneiros de Stanford, um estudo psicológico conhecido e controverso realizado pelo psicólogo Philip Zimbardo em 1971. Foi concebido para investigar os efeitos psicológicos da perceção de poder e autoridade, bem como a dinâmica dos papéis num ambiente prisional simulado.

O estudo envolveu 24 estudantes universitários do sexo masculino cuidadosamente seleccionados e a quem foram atribuídos aos papéis de «prisioneiros» ou «guardas». A experiência teve lugar na cave do departamento de psicologia da Universidade de Stanford, que foi convertida numa prisão simulada. Os «prisioneiros» receberam números de identificação e vestiram uniformes de prisão, enquanto aos «guardas» foi concedida autoridade e a quem vestiram uniformes a preceito.

Os «guardas» receberam instruções para manter a ordem dentro da prisão, evitando a violência física. Os «prisioneiros» estavam sujeitos a uma série de regras e regulamentos, como referirem-se uns aos outros pelos números que lhes tinham sido atribuídos. Inicialmente planeada para durar duas semanas, a experiência foi terminada ao fim de apenas seis dias devido ao sofrimento psicológico e emocional sentido pelos participantes. Tanto os «guardas» como os «prisioneiros» começaram a exibir comportamentos extremos e inesperados pouco depois do início do estudo. Os «guardas» tornaram-se abusivos e os «prisioneiros» sofreram graves perturbações emocionais. O estudo demonstrou a poderosa influência dos papéis situacionais na formação do comportamento. Os participantes levaram os seus papéis tão a sério que frequentemente se esqueciam de que estavam a participar numa experiência.

A experiência foi alvo de críticas cerradas, uma vez que os participantes foram sujeitos a traumas psicológicos e emocionais. A falta de consentimento informado, a gravidade do trauma emocional sofrido e a ausência de supervisão adequada foram questões éticas fundamentais. As tentativas subsequentes de replicar o estudo tiveram resultados mistos e a metodologia foi criticada pela sua falta de rigor científico e pelas potenciais características de procura – em que os participantes se comportam como acreditam que se espera que se comportem.

A experiência da prisão de Stanford serve como advertência no domínio da psicologia, salientando a importância das considerações éticas, do consentimento informado e da supervisão adequada na realização de investigação em seres humanos. Também levanta questões sobre até que ponto o comportamento das pessoas pode ser influenciado por factores situacionais e pelos papéis que lhes são pedidos para assumir.

Já Milgram refere-se diretamente a Arendt nos seus escritos, mas não parece ter subscrito totalmente a tese da «banalidade do mal». O cientista não estava a tentar compreender o comportamento dos nazis, mas sim daqueles que eram seus cúmplices, mostrando que este potencial de obediência estava presente em todos, mas que não era incondicional. Não se trata de uma autoridade qualquer, mas a da ciência. O retrato de Arendt de Eichmann como um «assassino de secretária» pretendia enfatizar a ideia de que o mal moderno podia ser perpetrado através de processos burocráticos, papelada e tarefas aparentemente mundanas, e não através de actos directos de sadismo ou violência.

A análise de Arendt suscitou grande debate e controvérsia, uma vez que desafiava as noções convencionais do mal como algo inerente ao carácter de um indivíduo. Em vez disso, Arendt defendia que o mal se podia manifestar como resultado da irreflexão, do conformismo e da falta de considerações morais. Muitos pensadores também se alongaram sobre o conceito de mal, como o já citado Santo Agostinho. Friedrich Nietzsche, em obras como Sobre a Genealogia da Moral e Para Além do Bem e do Mal, questionou os valores morais tradicionais e as noções de bem e de mal. Introduziu o conceito de «vontade de poder» e criticou os sistemas morais vigentes.

Søren Kierkegaard examinou o conceito de mal no contexto do existencialismo e da teologia cristã. A sua obra A Doença Até à Morte e outros escritos exploraram a natureza do pecado e do desespero; Immanuel Kant: Kant, na sua obra Religião sem os Limites da Razão discutiu o problema da maldade e a ideia de que os seres humanos têm uma predisposição para o mal, a que se referiu como «mal radical». Vários teólogos e filósofos escreveram teodiceias, em tentativas de conciliar a existência do mal com a existência de um Deus Todo-poderoso e plenamente bondoso. O próprio Teodiceia, de Leibniz, é um grande exemplo.

Compara-se agora o que sucede no Médio Oriente com o extermínio dos judeus pela Alemanha Nazi, mas o assunto é complexo e multifacetado, não existindo uma teoria única que possa explicar totalmente as acções e atrocidades cometidas durante o Holocausto. O trabalho e as interpretações dos pensadores citados continuam a suscitar debates metodológicos, éticos e teóricos, mas permanecem essenciais para a compreensão de certos factores comportamentais cruciais. Como resolvemos os dilemas morais que enfrentamos como trabalhadores ou consumidores, num contexto em que a divisão do trabalho e as cadeias de responsabilidade continuam a tornar-se mais complexas? E como lidaríamos nós com as nossas funções se implicassem defesa directa e ataque directo a pessoas e a cidades que amamos?

Foto: © Unsplash.com

2 COMENTÁRIOS

  1. Muito interessantes estes estudos, creio que tempos cada vez mais de valorizar a educação sem ideologias, com a interligação familiar, com os conceitos de liberdade de pensamento, crenças, respeito de cada pessoa num nível acima do político, com valorização patriótica sem qualquer tipo de nacionalismo.

  2. Excelente reflexão e excelente revisão dos estudos sobre o Homem. O episódio do médico nazi é de pasmar. Divulgo!

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