“O Direito Internacional Humanitário (DIH) é um conjunto de normas que busca, por motivos humanitários, limitar os efeitos dos conflitos armados. Protege as pessoas que não participam ou já não participam directa ou activamente das hostilidades e impõe limites aos meios e métodos de guerra”. A explicação básica do também chamado “direito da guerra” é clara e não levanta muitas dúvidas. Mas para facilitar a análise da conduta do conflito israelo-palestiniano e as violações das normas acima referidas, explicamos com maior detalhe algumas delas. Todavia e como resultado desta aclaração, há que questionar: para que servem estas regras se são comummente ignoradas?
POR HELENA OLIVEIRA

No meio do conflito sangrento desencadeado pelo grupo Hamas e que deu origem ao presente conflito israelo-palestiniano, travam-se outras batalhas de origem diplomática, política, de desunião entre os países-membros das Nações Unidas e da União Europeia, de troca de palavras violentas entre líderes de várias nações e até, recentemente, do apelo do embaixador israelita junto da ONU, Gilad Erdan, para que António Guterres se demita, na medida em que este último, apesar de ter condenado inequivocamente a chacina perpetrada pelos terroristas no passado dia 07 de Outubro, afirmou também que é “importante reconhecer” que os ataques do grupo islamita Hamas “não aconteceram do nada” e que “esses ataques terríveis não podem justificar a punição colectiva do povo palestiniano”. Em resposta às declarações do secretário-geral da ONU, Israel anunciou que irá recusar vistos a representantes das Nações Unidas e mais uma guerrilha está em curso.

Ao mesmo tempo e nos últimos dias, falou-se num “cessar-fogo imediato”, pedido pelo secretário-geral da ONU, que passou depois a um “cessar-fogo humanitário” e/ou a uma “pausa humanitária”, sem que se descortine exactamente a distinção entre estes conceitos.

O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, tentou esclarecer a diferença entre os termos, afirmando que “um cessar-fogo [que implica um acordo entre as partes] é certamente muito mais do que uma pausa” e que uma pausa humanitária – que facilite a chegada de ajuda humanitária para que os cidadãos de Gaza recebam ajuda sob a forma de medicamentos, alimentos e água, a par de uma oportunidade para a libertação dos reféns israelitas – é muito mais rápida.

Mas e apesar da lógica e da necessidade desde acto, o apelo contínua em cima da mesa [este artigo está a ser escrito na quarta-feira, dia 25], mas e até agora, sem consenso entre alguns Estados-membros da UE. Espera-se, contudo, que o acordo vá para a frente esta quinta ou sexta-feira, na cimeira que juntará os chefes de Governo e de Estado da União Europeia, e tendo como pontos principais da agenda este pedido para a pausa humanitária e as negociações para a “solução de dois Estados”.

No meio desta teia de horrores e desarmonias, o Direito Humanitário Internacional tem sofrido violações por parte de ambos os beligerantes, o que nos leva a questionar o propósito “real” destas “leis da guerra”, na medida em que raramente são cumpridas.

As seguintes perguntas e respostas abordam questões relacionadas com o Direito Internacional Humanitário que regem as actuais hostilidades entre Israel e o Hamas e outros grupos armados palestinianos em Gaza. O objectivo é facilitar a análise da conduta de todas as partes envolvidas no conflito, no sentido de dissuadir as violações das leis da guerra e incentivar a responsabilização pelos abusos cometidos em qualquer um dos territórios.

As questões – 18 no total – são respondidas pela Human Rights Watch, a reconhecida organização internacional de direitos humanos, não-governamental, sem fins lucrativos e que conta com aproximadamente 400 membros que trabalham em diversas localidades ao redor do mundo. Dada a pertinência e a existência de muitas dúvidas relacionadas com o Direito Internacional Humanitário, escolhemos um conjunto de perguntas cujas respostas consideramos essenciais para compreendermos melhor o que está a ser violado e por quem. Dada a sua extensão, as respostas foram abreviadas, tentando-se sublinhar o que mais importante se afigura informar. E desde já sublinhamos a isenção – norma básica do jornalismo –  no que a qualquer parte do conflito diz respeito.

  • Que Direito Internacional Humanitário se aplica ao actual conflito armado entre Israel e os grupos armados palestinianos?

O Direito Humanitário Internacional (DHI) reconhece a ocupação israelita da Cisjordânia e de Gaza como um conflito armado em curso. Os actuais conflitos e ataques militares entre Israel e o Hamas e outros grupos armados palestinianos são regidos pelas normas de conduta das hostilidades enraizadas no Direito Internacional Humanitário (DIH), que consistem no Direito Internacional dos Tratados, nomeadamente o artigo 3º comum às Convenções de Genebra de 1949, e no direito internacional humanitário consuetudinário aplicável aos chamados conflitos armados não internacionais, que se reflectem nos Protocolos Adicionais de 1977 às Convenções de Genebra. Estas regras dizem respeito aos métodos e meios de combate e às protecções fundamentais dos civis e dos combatentes que já não participam nas hostilidades.

Entre as leis do Direito Internacional Humanitário, a mais importante é a regra segundo a qual as partes num conflito devem distinguir sempre entre combatentes e civis. Os civis nunca podem ser o alvo de um ataque. As partes em conflito são obrigadas a tomar todas as precauções possíveis para minimizar os danos causados a civis e objectos civis, como casas, lojas, escolas e instalações médicas. Os ataques só podem visar combatentes e objectivos militares. São proibidos os ataques que visem civis ou que não discriminem entre combatentes e civis, ou que causem danos desproporcionais à população civil em comparação com os ganhos militares previstos. (…)

  • O contexto político, incluindo a resistência a uma ocupação e os desequilíbrios de poder, afecta a análise à luz do Direito Internacional humanitário?

As leis da guerra não fazem qualquer distinção formal entre as partes num conflito com base em desequilíbrios de poder ou em outros critérios. Os princípios fundamentais do DIH continuam a aplicar-se. A sua violação, visando deliberadamente civis ou efectuando ataques indiscriminados, nunca pode ser justificada invocando a injustiça da situação política ou outros argumentos políticos ou morais. Permitir que se atinjam civis em circunstâncias em que existe uma disparidade de poder entre forças opostas, como acontece em muitos conflitos, criaria uma excepção que praticamente anularia as regras da guerra. (…)

  • Quem e o quê está legalmente sujeito a um ataque militar?

As leis da guerra reconhecem que algumas baixas civis podem ser inevitáveis durante os conflitos armados, mas impõem às partes beligerantes o dever de distinguir sempre entre combatentes e civis e de visar apenas os combatentes e outros objectivos militares. Os princípios fundamentais do direito internacional humanitário são a “imunidade civil” e o princípio da “distinção”.

Os civis perdem a sua imunidade de ataque quando e apenas durante o tempo em que participam directamente nas hostilidades. Para que o acto de um indivíduo constitua participação directa nas hostilidades, o mesmo deve ser iminentemente capaz de causar danos às forças opostas e deve ser deliberadamente levado a cabo para apoiar uma parte no conflito armado. A participação directa nas hostilidades inclui as medidas tomadas para preparar a execução do ato, bem como o envio e o regresso do local onde o acto é executado.

As leis da guerra proíbem igualmente os ataques indiscriminados. Os ataques indiscriminados atingem objectivos militares e civis ou objectos civis sem distinção. Exemplos de ataques indiscriminados são aqueles que não são dirigidos a um objectivo militar específico ou que utilizam armas que não podem ser dirigidas a um objectivo militar específico. Os ataques indiscriminados proibidos incluem os bombardeamentos de área, que são ataques por artilharia ou outros meios que tratam como um único objectivo militar uma série de objectivos militares claramente separados e distintos localizados numa área que contém uma concentração de civis e de objectos civis. (…)

  • A tomada de reféns é permitida pelo Direito Internacional Humanitário?

A tomada de reféns é um crime de guerra incluído nos termos do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. As pessoas tomadas como reféns, tal como todas as pessoas detidas, devem ser tratadas com humanidade e não podem ser utilizadas como escudos humanos.

Os reféns são frequentemente civis que não representam uma ameaça à segurança, que são levadas sob custódia e detidas ilegalmente. No entanto, a detenção ilegal não é necessária para que haja uma tomada de reféns. Um indivíduo cuja detenção possa ser legal, como um soldado capturado, pode ainda assim ser utilizado como refém. (…)

  • Quais são as obrigações de Israel e dos grupos armados palestinianos no que respeita aos combates em zonas civis povoadas?

O DIH não proíbe os combates em zonas urbanas, embora a presença de muitos civis imponha às partes beligerantes uma maior obrigação de tomar medidas para minimizar os danos causados aos civis. Gaza é uma das zonas mais densamente povoadas do mundo. (…) A utilização de armas explosivas com efeitos de área alargada na Faixa de Gaza, onde vivem 2,2 milhões de palestinianos numa faixa de território com 41 quilómetros de comprimento e entre 6 e 12 quilómetros de largura, e o facto de, por vezes, visar infra-estruturas críticas, pode causar danos graves a civis e a objectos civis. Adicionalmente, os foguetes lançados de Gaza e que são fundamentalmente imprecisos ou concebidos para abranger uma grande área e susceptíveis de atingir civis e objectos civis dentro de Israel, também causam danos previsíveis a civis e a objectos civis. (…)

  • Quais são as protecções legais dos hospitais, do pessoal médico e das ambulâncias?

As instalações de cuidados de saúde são objectos civis que beneficiam de protecção especial ao abrigo das leis da guerra contra ataques e outros actos de violência, incluindo bombardeamentos, pilhagens, entradas forçadas, tiroteios, cercos ou outras interferências forçadas, tais como a privação intencional de electricidade e água nas instalações.

De acordo com as leis da guerra, os médicos, enfermeiros e outro pessoal médico devem ser autorizados a fazer o seu trabalho e ser protegidos em todas as circunstâncias. Só perdem a sua protecção se cometerem, fora da sua função humanitária, “actos prejudiciais ao inimigo”.

Do mesmo modo, as ambulâncias e outros meios de transporte médico devem poder funcionar e ser protegidos em todas as circunstâncias. Só podem perder a sua protecção se forem utilizadas para cometer “actos prejudiciais ao inimigo”, como o transporte de munições ou de combatentes saudáveis em serviço. (…)

  • É permitido a Israel atacar mesquitas ou escolas em Gaza?

As mesquitas e igrejas – como todos os locais de culto – e as escolas são presumivelmente objectos civis que não podem ser atacados, a menos que estejam a ser utilizados para fins militares, como um quartel-general militar ou um local para armazenar armas e munições. Todas as partes são obrigadas a tomar especial cuidado nas operações militares para evitar danos a escolas, casas de culto e outros bens culturais. (…)

  • Os foguetes disparados por grupos armados palestinianos contra Israel são legais?

Enquanto partes no conflito armado, os braços armados do Hamas, da Jihad Islâmica e de outros grupos armados palestinianos são obrigados a respeitar o direito humanitário internacional. O ataque a instalações militares e a outros objectivos militares é permitido ao abrigo das leis da guerra, mas apenas se forem tomadas todas as precauções possíveis para evitar danos a civis.

Se as armas utilizadas são tão imprecisas que não podem ser dirigidas a alvos militares sem impor um risco substancial de danos a civis, então o grupo não as deve utilizar. A Human Rights Watch constatou, em hostilidades anteriores, que os foguetes lançados por grupos armados palestinianos – incluindo os foguetes de curto e longo alcance fabricados localmente, os foguetes “Grad” e os foguetes importados de outras fontes – são tão imprecisos que são incapazes de ser apontados de forma a distinguir entre alvos militares e objectos civis quando são lançados contra áreas povoadas. Esta imprecisão e incapacidade de atingir objectivos militares são exacerbadas nas distâncias mais longas em que alguns foguetes foram disparados contra Israel. (…)

  • Os jornalistas gozam de protecção especial contra ataques?

Os jornalistas e o seu equipamento beneficiam da protecção geral de que gozam os civis e os objectos civis e não podem ser alvo de um ataque, a menos que participem directamente nas hostilidades. Os jornalistas podem estar sujeitos a limitações legítimas de direitos, como a liberdade de expressão ou a liberdade de circulação, impostas de acordo com a lei e apenas na medida estritamente exigida pelas necessidades da situação. Mas não podem ser presos, detidos ou sujeitos a outras formas de punição ou retaliação pelo simples facto de fazerem o seu trabalho. (…)

  • Quais são as obrigações de Israel e dos grupos armados palestinianos para com as agências humanitárias?

Nos termos do Direito Internacional Humanitário, as partes num conflito devem permitir e facilitar a passagem rápida e desimpedida da ajuda humanitária distribuída imparcialmente à população necessitada. As partes beligerantes devem consentir que as operações de socorro sejam efectuadas e não podem recusar esse consentimento por motivos arbitrários. Podem tomar medidas para garantir que as remessas não incluam armas ou outro material militar. No entanto, é proibido impedir deliberadamente o fornecimento de ajuda humanitária.

Além disso, o Direito Humanitário Internacional exige que as partes beligerantes garantam a liberdade de circulação do pessoal de ajuda humanitária essencial para o exercício das suas funções. Este movimento só pode ser restringido temporariamente por razões de necessidade militar imperativa. (…)

FONTE: Human Rights Watch

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