Passa-se mais tempo a fazer reportagens de rua a perguntar aos transeuntes suados e esbaforidos se está muito calor, mas poucos minutos sobram para explicar, de forma clara e pedagógica, como surgiu a emergência climática e quais as consequências económicas e sociais do colapso dos ecossistemas
POR NUNO GASPAR DE OLIVEIRA

“Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; era o tempo da sabedoria e o tempo da loucura”. Isto sim, é uma grande abertura, muito melhor do que as sete outras que tentei para este artigo e me saíram todas ao lado. Pena que o Dickens me tenha roubado a ideia quando escreveu ‘Um Conto de Duas Cidades’ há quase dezassete décadas atrás. Mas, justiça lhe seja feita, acho que esta linha se adequa tanto aos dias de hoje como aos loucos dias passados entre a queda da Bastilha e o ar pestilento do vórtice industrial londrino. Afinal de contas, vivemos tempos loucos onde o zénite da racionalidade e pensamento científico tem de conviver com o fosso paranoico dos ‘factos alternativos’, teorias da conspiração avulsas e a destruição lenta, dolorosa, progressiva e, aparentemente, irreversível dos ideais liberais e humanistas que sustentaram a ascensão das democracias ocidentais.

De São Bento a São Petersburgo, as vozes do ódio, intransigência e violência mais-ou-menos explícita e xenofobia cada-vez-mais glorificada vão-se amplificando, deixando um ruido surdo que vai abafando o bom senso e erodindo a empatia. Abrem-se telejornais com revelações chocantes de como morreram todos, mas o foco está em milionários a brincar às 20 mil léguas submarinas e não nas 20 mil almas que se vão perdendo pelas profundezas do Mediterrâneo. Passa-se mais tempo a fazer reportagens de rua a perguntar aos transeuntes suados e esbaforidos se está muito calor, mas poucos minutos sobram para explicar, de forma clara e pedagógica, como surgiu a emergência climática e quais as consequências económicas e sociais do colapso dos ecossistemas. Ouvem-se dezenas de especialistas e analistas de espectro largo em temas da atualidade, mas escasseiam as reportagens de investigação e tarda-se a atualizar os conteúdos dos manuais escolares com a realidade dos factos que estão a condicionar fortemente o futuro bem-estar de quem hoje frequenta a escola.

Embora o velho Charles tivesse razão, também não é só tempo de ler autores que nem sequer chegaram a ter a sorte de brincar com consolas ‘arcade’ ou a fazer playlists em k7s de 90 minutos para os amigos. Esse prazer ficou reservado para os nascidos a partir último terço do século XX. Como foi o meu caso, possivelmente o caso de boa parte das 23 pessoas que vão ler este artigo, e o caso do nosso herói escolhido para fechar a newsletter VER para irmos a banhos. Estou a falar, é claro, do grande Ferris Bueller.

Ora, para quem não sabe, não se lembra, ou não se interessa, o Bueller é uma personagem inventada pelo genialmente criativo (que nos deixou demasiado cedo) John Hughes, realizador norte-americano, autor de outros filmes de culto como ‘Breakfast Club’, ‘Pretty in Pink’ ou ‘Uncle Buck’. Em 1986 saia ‘Ferris Bueller´s Day Off’, traduzido em Portugal como ‘O Rei dos Gazeteiros’, mais um ‘feel-good teen-oriented movie’ de uma era em que fatores como o guião, as personagens, a interpretação e a banda sonora delicadamente curada ainda não tinham sido devoradas pelo hipnotizante monstro do CGI. Ferris era interpretado pelo jovem talentoso Matthew Broderick, que já tinha brilhado em filmes também icónicos dos anos 80 como ‘Ladyhawke’ e ‘War Games’ e representava um misto de bom rapaz com oportunista manipulador, dedicado a ‘baldar-se’ do tédio escolar para se dedicar a experiências de uma vida que valha a pena viver, envolvendo, pelo meio, o seu melhor amigo e a sua amiga especial. Em casa, Ferris convence os pais que é um menino d’ouro e mimado, que faz tudo certinho e que precisa de ficar em casa porque está ‘doentinho’. Já a sua irmã vê, com toda a transparência, a ‘chico-espertice’ do irmão e está dedicada em o revelar como ele é.

Enfim, sem grandes spoilers, até porque o filme já tem 37 anos, Bueller consegue o seu plano de gazeta perfeito, diverte-se intensamente, leva os seus amigos – e a sua irmã – a viverem emoções inesquecíveis e, ainda que seja quase apanhado, deixa para referência futura ‘a frase’ que marca o filme: “Life moves pretty fast. If you don’t stop and look around once in a while, you could miss it.”, como quem diz, a vida passa num ápice e, se não tomarmos atenção, podemos perder os melhores momentos. E para sempre, esta frase marcou-me e fez-me refletir milhares de vezes sobre o que estamos a viver. Seja almoçarmos com amigos, ver filmes icónicos dos 90’s com os filhos, respirar fundo quando estamos sós num lugar maravilhoso ou ler um livro que nos enche a alma ou nos destroça o coração.

E é aqui que eu quero chegar, ao momento mágico e impreciso em que vivemos intensamente os bons momentos, mas também aquele em que dizemos basta! e acreditamos que tudo vale a pena pela luta contra a tirania, o medo, o abuso seja de que natureza for, e o fim da paciência para aqueles que, displicentemente, contribuem para degradar um pouco mais a nossa casa comum e os nossos valores que nos fazem (ainda, e apesar de tudo) acreditar no progresso da humanidade. Este não pode ser o último verão do Ferris Bueller, não podemos simplesmente deixar que a vida passe a toda a velocidade pelos nossos olhos sem que demos sinal de que estamos aqui e não vamos simplesmente deixar que, como o Walt Whitman dizia, a luz se extinga numa noute escura. Ou, ‘torturando’ as palavras de Pessoa, tudo vale a pena quando a nossa alma não se apequena!

Bom verão, vemo-nos por aí, entre grãos de areia e ondas de esperança.

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence