POR GABRIELA COSTA
O ano lectivo arranca com as habituais perturbações para escolas, professores e pais. As primeiras gerem como conseguem as determinações do Ministério da Educação e Ciência (MEC). Os segundos batalham como sempre por um lugar nas listas de colocação, que na 1ª fase deixaram de fora mais de 22 mil pessoas, e por se adaptarem a eventuais mudanças de escola ou zona geográfica e às novas regras e necessidades que surgem a cada experiência na docência.
Os últimos ocupam como podem os seus filhos até ao início das aulas, este ano adiado uma semana (entre 15 e 21 de Setembro) naquela que, sendo a proposta do Ministério da Educação mais tardia da última década, não gerou controvérsia. E desesperam, também como habitualmente, com a despesa extra e muito significativa que são obrigados a fazer nesta altura do ano: em média, as famílias portuguesas tencionam gastar 528 Euros na preparação do regresso às aulas, mais 19 Euros do que em 2014.
Apesar de a grande maioria das famílias (94%) preferir comprar manuais escolares novos, 33% optam por comprar em segunda mão, mais 10% do que em 2014, conclui um estudo do Observador Cetelem sobre as intenções de compras para o ano lectivo 2015/16, que revela ainda que 27% de portugueses pretendem pedir livros emprestados a familiares ou amigos.
[pull_quote_left]Face à despesa das famílias com os manuais escolares, cresce a tendência para recorrer a bancos de partilha, mas o acesso é condicionado por pressões a escolas e alunos[/pull_quote_left]
Já uma recente projecção da Wook com base nos manuais adoptados por escolas do distrito de Lisboa confirma que o ensino secundário sai mais caro do que o básico, mas o 7º ano de escolaridade, com dez manuais adoptados, é o que custa mais dinheiro às famílias com filhos em idade escolar: 252 Euros em média, só para os blocos pedagógicos das disciplinas obrigatórias (71 Euros para o 3º ano, o mais dispendioso do 1º ciclo do ensino básico, incluindo manual de Inglês, agora obrigatório; e 251 Euros para o 10º, o mais caro do ensino Secundário).
Face às dificuldades que as famílias têm em acumular no seu orçamento valores tão elevados, mesmo aproveitando as promoções propostas pelas editoras para o arranque do ano lectivo, a opção de encontrar manuais usados em bancos de livros e nos grupos de partilha que proliferam nas redes sociais fará todo o sentido.
Mas os obstáculos ao acesso a estes bancos por parte de pais e encarregados de educação e as pressões sobre escolas e alunos que querem reutilizar parecem ser das questões mais contestadas, neste ano lectivo. O problema vai inclusivamente chegar, em forma de queixa, à Provedoria da Justiça a 15 de Setembro, pela mão do Movimento pela Reutilização dos Livros Escolares (Reutilizar.org) o qual promove, desde 2011 e por iniciativa dos cidadãos, a criação de bancos de recolha e partilha gratuita de livros escolares em Portugal.
Prática europeia de reutilização não passa do papel em Portugal
A crescente tendência para a reutilização dos manuais escolares, que já é prática durante a escolaridade obrigatória em muitos países europeus, como a Dinamarca, Finlândia, França Noruega, Reino Unido e Suécia, onde os manuais escolares são distribuídos gratuitamente pelos governos ou escolas a todos os alunos, que os têm de devolver no final do ano lectivo (e onde o prazo de vigência dos manuais varia entre os seis e os dez anos), encontra no nosso País inúmeros constrangimentos. Desde logo, ao nível da interpretação e cumprimento da própria Lei.
A criação de um sistema de empréstimo e reutilização de manuais escolares em todas as escolas e acessível a todos os alunos está prevista em Portugal há já nove anos, no DL n.º 47/2006, mas não existe regulamentação para o Artigo 29.º do Decreto, que estipula a definição, no prazo de um ano, dos princípios e regras gerais a que deve obedecer este sistema. Só em 2012, e para contornar esta lacuna, o ministro Nuno Crato criou as bolsas de livros do SASE (Serviço de Apoio Social Escolar), medida que o porta-voz do Movimento Reutilizar, à conversa com o VER, considera “particularmente infeliz e altamente discriminatória”, porquanto “associa reutilização a pobreza”.
Por outro lado, o documento define um período de vigência de seis anos para os manuais escolares dos ensinos básico e secundário, mas este pode ser reduzido em função da revisão dos programas curriculares, por determinação do MEC. E a verdade é que o ano lectivo 2015/16 é o terceiro consecutivo em que são impostas mudanças obrigatórias de manuais escolares.
[pull_quote_left]Todos os Governos ignoraram as recomendações encomendadas ao CNE, incumprindo frontalmente a Lei e obrigando os pais a pagar centenas de euros para ter os seus filhos na escola – Henrique Cunha, Movimento Reutilizar[/pull_quote_left]
Só este ano, “devido às metas curriculares e à revisão dos programas a maioria dos livros do 9.º ano irá para o lixo, mesmo aqueles que foram substituídos há apenas dois ou três anos”, acusa Henrique Trigueiros Cunha. E a maioria são todos, à excepção do de Português, já que afinal, e ao contrário do que o Ministério anunciou anteriormente, o manual de Matemática também tem de ser substituído. No 12.º ano serão adoptados novos livros para a larga maioria das disciplinas; e no 10.º para as disciplinas de Português, Física e Química A, Matemática A, Matemática B e Matemática Aplicada às Ciências Sociais. Sucede que “as novas metas curriculares não são uma alteração de programa pelo que não implicam novos livros”.
Para o responsável, o incumprimento é anterior à própria Lei, pois começa logo na Constituição da República, que prevê o ensino gratuito para todos. Sendo os manuais e outros recursos pedagógicos não só essenciais à aprendizagem como obrigatórios, “se não são grátis, então o ensino não é gratuito!”, remata. E cumprir com a Constituição “não significa que deva ser o Estado a comprar livros novos todos os anos, para todos os alunos”. Na perspectiva do também professor de Matemática a criação de um sistema de partilha de livros em cada escola e acessível a todos os alunos, tal como está previsto na Lei desde 2006, “acabaria com o encargo para as famílias sem custos adicionais para o Estado”.
Mas, diz Henrique Cunha, os partidos políticos, que se mostram “todos favoráveis à criação de um banco de livros em cada escola”, quando são governo aparentemente “não querem resolver o problema”, a avaliar pela falta de regulamentação e incumprimento da legislação existente, e pelos vários Projectos-Lei sobre esta matéria chumbados pela oposição, ao longo de várias legislaturas. E os parceiros da acção educativa, “todos os parceiros, de dirigentes escolares a associações de pais, estão contra a reutilização” e aceitam com uma “passividade cúmplice” a situação instalada.
“O problema e a solução estão na Escola”, mas nela reina “a disparidade de situações” e o “incumprimento da lei” relativamente aos manuais aceites nas salas de aula. Concretamente em relação à posição das editoras sobre a matéria, estas “são contrárias à reutilização e à existência de bancos de livros, tendo inclusivamente encerrado recentemente, por sua ordem, um importante banco na cidade do Porto”, avança em primeira mão ao VER o porta-voz do Movimento Reutilizar.
Um imposto sobre as famílias que reverte para as editoras
A reutilização de manuais escolares é defendida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) desde 1989. Este órgão consultivo do Governo e da Assembleia da República já por três vezes (também em 2006 e em 2011) se pronunciou a pedido dos sucessivos Executivos, recomendando a criação de um sistema de partilha de livros escolares em todos os estabelecimentos de ensino, acessível a todos os alunos e sem custos para o Estado, a exemplo do que sucede na maioria dos países europeus. Porém, “todos os Governos ignoraram as recomendações por si encomendadas ao CNE, incumprindo frontalmente a Lei e obrigando os pais a pagar centenas de euros para ter os seus filhos na escola”.
Para o Movimento Reutilizar, “a manutenção desta injustiça ao longo dos últimos 25 anos” obriga a concluir que “na prática, os livros escolares mais não são que um imposto encapotado sobre as famílias para financiar as três poderosas empresas (leia-se Porto Editora, Santillana e grupo Leya) a que chamam indústria livreira”.
[pull_quote_left]Há uma instrumentalização dos movimentos em prol da reutilização para que o Estado poupe uns cobres, economizando à custa do SASE e das crianças mais desfavorecidas – Graça Margarido, AEEFL[/pull_quote_left]
Determinado a acabar com esta “vergonhosa realidade” o movimento de cidadãos adoptou o último parecer do CNE (Parecer n.º 8/2011) como seu manifesto, lançou uma petição que recolheu, à data de fecho desta edição, mais de 3800 assinaturas, e vai entregar ao Provedor de Justiça, na próxima 3ª feira, uma queixa que reúne centenas de denúncias e reclamações “relatando as mais infames histórias de pressões sobre as escolas e autarquias que desejam abrir bancos de livros, e sobre alunos a quem não é permitido reutilizar os seus livros”.
Nos últimos quatro anos, mais de 200 bancos de recolha e partilha de livros associaram-se ao movimento reutilizar.org e dezenas de milhares de alunos aderiram à reutilização dos manuais, “num movimento de cidadãos sem precedentes”. Agora, e perante as pressões e obstáculos crescentes à prática de “um direito constitucional”, o movimento diz que “está na hora de reclamar” e colocar um ponto final sobre essa situação. “ Nós só queremos fazer cumprir a Lei, conclui o porta-voz do movimento.
Afinal, e como recomenda o CNE no seu último parecer sobre esta matéria, independentemente das diversas modalidades em que os bancos de livros escolares possam ser geridos, “a tendência é para considerar que a devolução e reutilização dos manuais não só diminui a despesa do Estado como é educativa por ensinar a cuidar dos livros, a partilhá-los com os outros e a evitar o desperdício”. E o princípio da gratuitidade da escolaridade obrigatória até aos 18 anos, consagrado na Lei, implica “que a escola não deva exigir o que não possa disponibilizar gratuitamente aos alunos”.
Bancos de livros para todos e não para pobres
Para além da legislação que, desde 2006, prevê a criação de um sistema de empréstimo e reutilização de manuais escolares, o Estado decretou, em 2012 (Artigo 7º do Despacho 11886 A/2012), que “o apoio a conceder ao aluno para manuais escolares, no âmbito da Acção Social Escolar (ASE) e de acordo com o escalão que integra, é sempre feito a título de empréstimo, ocorrendo a comparticipação para a aquisição de novos manuais só depois de esgotado o recurso à bolsa de manuais escolares”.
Desde então, ao invés de os encarregados de educação dos alunos abrangidos pela ASE serem reembolsados pelos livros escolares que adquiriram, entregando na escola o respectivo recibo e gerindo assim as suas necessidades em função dos manuais que conseguiam arranjar em segunda mão, “agora é a escola que dá os livros que decide”, como alerta, em declarações ao VER, Graça Margarido, responsável pelo banco de troca de livros da associação de pais da escola D. Filipa de Lencastre (APEEFL), em Lisboa.
[pull_quote_left]Os livros escolares mais não são que um imposto encapotado sobre as famílias para financiar as três poderosas empresas a que chamam indústria livreira – Henrique Cunha, Movimento Reutilizar[/pull_quote_left]
A medida, regulamentada pela última vez no Artigo 8º do Capítulo IV do Despacho n.º 8452-A/2015, do MEC, prevê que os livros não pertencem aos alunos a quem são atribuídos (antes, estes têm de os devolver nas mesmas condições em que os receberam, para não perderem o direito ao apoio); e que cada escola tem de ter um banco de livros do SASE e gerir a quantia atribuída a cada aluno, entregando-lhe livros dentro do montante do apoio a que tem direito, prioritariamente usados, e apenas novos quando esgotados neste banco de livros.
Na prática, e segundo testemunha constantemente Graça Margarido, as novas regras do SASE para atribuição de manuais escolares e material didáctico trazem consigo várias consequências negativas, que a responsável considera derivarem de “uma situação escandalosa de poupança do Estado à custa dos mais desfavorecidos”, que faz regressar o sistema à “caridadezinha do tempo do Salazar” e ao “estigma do livro usado, que tanto tentamos combater”: dado que estes livros são emprestados e já não pertencem aos estudantes (que dantes os passavam normalmente a outras crianças e jovens, incluindo irmãos), estes passam a ser responsáveis pela sua devolução no final do ano lectivo, nas exactas condições em que os receberam.
Significa isto que se o aluno “perder ou estragar um livro, tirar nele algum apontamento ou preencher as fichas de trabalho, poderá perder a ASE”. Ora, face a manuais de capa mole e produzidos com papel de pouca gramagem, como é a norma em Portugal, “um segundo ano de utilização responsável termina com um livro em péssimo estado”, ou seja, ao contrário do que sucede noutros países europeus, a sua reutilização “é fisicamente limitada”, explica.
Na opinião de Graça Margarido, desde logo seria preciso um “grande investimento inicial” para implementar a nível nacional um sistema de bancos de recolha e partilha de livros usados funcional para todos, a exemplo de outros países onde os livros, que “pertencem à escola, são “de capa dura e papel com uma gramagem superior, logo mais caros”.
Neste contexto, os alunos em situação económica difícil abrangidos pelo SASE, já discriminados por “verem o seu nome e lista de livros atribuídos publicitados num dos placards da escola”, receiam agora estragar estes manuais, e ficam em desvantagem em relação aos colegas, já que nem os cadernos de exercícios que os mesmos integram podem preencher. E os pais receiam perder o apoio da ASE, se os seus filhos danificarem ou perderem os livros que lhe foram atribuídos.
Da experiência que tem “no terreno’, Graça Margarido relata que “um menino pediu à mãe que prescindisse dos livros do SASE e fosse antes buscá-los a um banco de livros, porque assim estes são dele e não precisa de se preocupar com qualquer percalço”. E essa é outra consequência dos bancos de livros do SASE nas escolas: a sobreposição com o trabalho desenvolvido pelos bancos de livros das associações de pais, destinados “a todos os alunos” e não aos pobres, sublinha, e “incentivados pelos pais como forma de consciencialização para a educação ambiental e a sustentabilidade de recursos”.
[pull_quote_left]Só para este ano lectivo, o terceiro consecutivo com mudanças obrigatórias, já recolhemos milhares de manuais, mas a maior parte não é reutilizável por não serem os adoptados -Graça Margarido, AEEFL[/pull_quote_left]
De resto, para as próprias escolas, a gestão dos bancos do SASE (que implica organizar pacotes equivalentes à quantia a que cada aluno tem direito) representam também um trabalho acrescido, face ao qual “claro que não foram atribuídos mais recursos humanos”, já antes escassos, conclui a responsável pelo banco de livros da APEEFL, a funcionar há quatro anos.
Outro aspecto, que decorre do facto de o DL nº 47/2006 especificar que o período de vigência de seis anos que os livros escolares passaram a ter pode ser reduzido na sequência da revisão dos programas curriculares que tenha aprovado, é a alteração constante dos manuais adoptados – o próximo ano lectivo é o terceiro consecutivo com mudanças obrigatórias – o que gera situações limite de “pais aflitos” a devolverem livros no banco de livros da escola, “porque iam receber os mesmos da ASE e não sabiam como comprar os restantes”. Só para este ano lectivo a APAEFL já recolheu “milhares de manuais, mas a maior parte não é reutilizável por não serem os adoptados para este ano”, lamenta Graça Margarido.
Perante todos estes constrangimentos, “há alguma discrepância na forma como as escolas entendem a legislação” relativa às regras de funcionamento do SASE para a atribuição de apoios para manuais escolares e recursos pedagógicos, conclui a responsável.
Face à realidade dos bancos de livros em Portugal, Graça Margarido considera mesmo que estamos perante uma “instrumentalização dos movimentos em prol da reutilização e sustentabilidade para que o Estado poupe uns cobres”, economizando à custa do SASE e das crianças mais desfavorecidas”, e assim “retirando de casa de muitos alunos os únicos livros que tinham”.
Jornalista