A devastação económica causada pela pandemia da COVID-19 não mostra sinais de abrandamento. Sem uma acção urgente, a pobreza e a desigualdade globais aprofundar-se-ão dramaticamente. Centenas de milhões de pessoas já perderam os seus empregos, endividaram-se ainda mais e a fome já espreita. Se o problema é uma realidade nos países desenvolvidos, qual a sua dimensão nas economias de baixo e médio rendimento onde a protecção social é mínima ou inexistente?
POR HELENA OLIVEIRA
Um novo relatório intitulado “Shelter from the Storm“, realizado pela OXFAM International em parceria com a Development Pathways , teve como base a revisão dos programas governamentais utilizados para injectar dinheiro adicional para o combate aos efeitos colaterais da pandemia em 126 países de baixo e médio rendimento. O principal resultado? Nenhum deles é adequado para satisfazer as necessidades dos que mais precisam.
A pesquisa realizada mostra que mais de 2,7 mil milhões de pessoas não tiveram qualquer apoio financeiro por parte dos seus governos nestes tempos de necessidade extrema. A análise comprova igualmente que 97% do apoio de protecção social aos desempregados, aos idosos, às crianças e às famílias, prestado em países de baixo e médio rendimento, foi inadequado para satisfazer as suas necessidades básicas. Cerca de 40% do apoio governamental decorreu apenas de um pagamento único, sem outros apoios subsequentes. Décadas de política social centrada em níveis mínimos de apoio deixaram a maioria dos países completamente despreparados para a crise económica decorrente da Covid-19. No entanto, países como a África do Sul e a Bolívia, por exemplo, demonstraram que uma abordagem universal à protecção social é possível e que tem um impacto profundo na redução da desigualdade e no auxílio daqueles que mais precisam dela.
Como sabemos, a pandemia da Covid-19 está a causar uma enorme perda de vidas e de meios de subsistência. O vírus em si, e as medidas de bloqueio para o conter, têm atingido duramente milhões de pessoas. Muitas já perderam os seus empregos e rendimentos e, de acordo com a pesquisa em causa, o tempo de trabalho perdido devido ao confinamento apenas no segundo trimestre de 2020 foi equivalente a 495 milhões de empregos a tempo inteiro.
As mulheres em vida activa nos países de baixo e médio rendimento, em particular, estão a sofrer mais duramente, pois trabalham nos sectores mais afectados, tais como o vestuário, os serviços e o trabalho doméstico. O rendimento das mulheres trabalhadoras informais diminuiu 60% durante o primeiro mês da pandemia.
Em quase todos os países, e a não ser que sejam tomadas medidas no imediato – o que não parece possível de acontecer -, a pobreza deverá aumentar acentuadamente pela primeira vez em décadas. Embora os países ricos tenham injectado 9,8 biliões de dólares nas suas economias, incluindo medidas significativas de apoio aos trabalhadores e à população em geral, a maioria dos países de baixo e médio rendimento não conseguiu implementar a mesma “abordagem do que quer que seja necessário” para proteger as suas populações e economias.
De acordo com o Banco Mundial, quando se trata de dinheiro adicional utilizado especificamente em programas de protecção social (incluindo intervenções laborais, assistência social e seguro social), 28 países ricos gastaram 695 dólares por pessoa. Em contraste, as economias de baixo e médio rendimento investiram apenas entre 28 e quatro dólares per capita.
Neste momento, quase metade da população mundial – cerca de 3,3 mil milhões de pessoas -, vive com menos de 5,50 dólares por pessoa por dia, e 1,8 mil milhões vivem com menos de 3,20 dólares. Foram perdidos globalmente cerca de 10% dos rendimentos, com as maiores perdas a terem lugar nos países de rendimento médio, valor que poderá conduzir a um acréscimo de mais 250 milhões de pessoas a viver com menos de 5,50 dólares por dia, e mais 290 milhões a viver com menos de 3,20 dólares por dia. Assim, é impossível ignorar o risco extraordinário a que estão expostas as pessoas em países de baixo e médio rendimento.
A urgência de mais protecção social universal
A protecção social universal (USP, na sigla em inglês) é um dos instrumentos mais poderosos para os governos reduzirem a desigualdade, a pobreza e as necessidades básicas das populações mais vulneráveis. E é também um pilar essencial das políticas redistributivas quando coloca nas mãos daqueles que têm menos dinheiro o que foi recolhido através da tributação progressiva. Se concebida tendo em conta a perspectiva de género, a protecção social pode conferir também um contributo substancial para a igualdade de género e para o empowerment das mulheres.
A OXFAM sublinha que construir um programa USP não é apenas um meio acessível e eficaz de proteger o bem-estar dos cidadãos e salvar economias a curto prazo, mantendo ou aumentando o nível de consumo, como é também um investimento inteligente e susceptível de impulsionar o desenvolvimento económico a médio e longo prazo. O investimento na protecção social torna-se ainda mais frutuoso ao longo do tempo, uma vez que os países iniciam o círculo virtuoso de investimentos em USP e serviços públicos de boa qualidade, resultando em receitas governamentais mais elevadas a longo prazo.
Antes do surgimento abrupto da pandemia, mais de 4 mil milhões de pessoas não tinham acesso a qualquer forma de protecção social. Muitos governos, incluindo os de alguns pertencentes a países de baixo e médio rendimento, tomaram a decisão de investir na expansão da protecção social. De acordo com o Banco Mundial, a expansão das transferências de protecção social relacionadas com a pandemia chegou a 1,3 mil milhões de pessoas em todo o mundo, o que exigiu que os governos mergulhassem profundamente nos seus recursos internos ou que contraíssem empréstimos de bancos privados ou públicos. Mas terá sido esta decisão suficiente para evitar o agravamento da pobreza e da desigualdade?
A Oxfam e a Development Pathways investigaram as transferências monetárias de protecção social para responder à crise da Covid-19 em 126 países de baixo e médio rendimento entre Abril e Setembro de 2020. Os resultados desta análise podem ser resumidos nas seguintes conclusões:
• A expansão é possível. 75% dos países analisados introduziram uma protecção social de emergência através de uma expansão “horizontal” dos seus programas de protecção social (isto é, atingindo mais pessoas), ou através de uma expansão “vertical” (aumentando o valor dos benefícios).
• Ter sistemas de protecção social em vigor é imperativo, particularmente em crises como a que estamos a viver. Países com sistemas de protecção social mais robustos, como a África do Sul, têm sido capazes de proteger melhor as suas populações e as suas economias, embora muito mais pudesse ter sido feito.
• Todavia, o investimento global é reduzido. Em todos os países de baixo e médio rendimento que introduziram protecções sociais de emergência, o investimento médio tem sido de apenas 0,46% do PIB. Apenas dois dos países analisados procederam a investimentos na ordem dos 2%, o parâmetro de referência para evitar recessões profundas.
• São demasiadas as pessoas que não têm acesso a qualquer tipo de protecção. Os regimes de apoio em caso de desemprego não existem na maioria dos países analisados, ou seja, faltam-lhes mecanismos automáticos que protejam as pessoas que perdem os seus rendimentos. Por outro lado, as respostas de emergência em 81% dos países analisados cobrem menos de metade das suas populações. Em 29% dos países, menos de uma em cada 10 pessoas teve acesso a algum tipo de protecção.
• As mulheres são as que menos beneficiam. Foram muito escassas as medidas que tiveram em conta as necessidades específicas das mulheres, embora 49% da protecção social atribuída tivesse como objectivo atenuar as perdas de rendimento ou de emprego das pessoas que não beneficiam de seguro de desemprego, o que poderia beneficiar as muitas mulheres em empregos precários e informais. Complementarmente, o apoio directo aos encargos com os cuidados de saúde raramente é integrado nas respostas nacionais. As mulheres podem beneficiar indirectamente de apoio financeiro concedido a crianças ou a pessoas com deficiência. No entanto, estes apoios são geralmente dirigidos a situações de pobreza extrema, excluindo muitas mulheres necessitadas.
• Protecção insuficiente. Há pouco que uma família possa fazer se os apoios sociais forem demasiado limitados, irregulares ou não durarem o tempo suficiente. No seguimento da análise da OXFAM, todos os benefícios analisados fornecidos às famílias são de curta duração e demasiado reduzidos para cobrir mesmo as necessidades mais básicas. Na Colômbia, um apoio recentemente criado para 3 milhões de famílias de trabalhadores informais conta com uma transferência mensal equivalente a apenas 2,5 dias do salário mínimo nacional.
• O financiamento da dívida da protecção social cria riscos. Dos 59 países para os quais existe informação disponível, 41% estão a financiar as suas respostas de protecção social através de receitas internas apoiadas por auxílio financeiro proveniente de instituições financeiras internacionais através de empréstimos e/ou suspensão temporária da dívida. Enquanto a suspensão desta última significa adiar os reembolsos para o futuro, os empréstimos significam um aumento da dívida. Ambos acabarão por ter de ser reembolsados, levando possivelmente a cortes profundos na despesa pública futura.
• A ajuda pública ao desenvolvimento (APD) para a protecção social fica aquém das expectativas. Antes da pandemia, o apoio ao desenvolvimento de políticas de protecção social constituía apenas 0,7% da APD global dos países doadores da OCDE em 2018. Durante a pandemia, a despesa da APD para protecção social aumentaram rapidamente, particularmente a que é canalizada através dos principais doadores multilaterais. Os dados de acompanhamento da ajuda em tempo real da Iniciativa Internacional para a Transparência da Ajuda (IATI) mostram que os compromissos de ajuda à protecção social aumentaram 182% nos primeiros seis meses de 2020 (cerca de nove mil milhões de dólares) em comparação com 2019 (3,2 mil milhões de dólares). No entanto, este montante é ainda muito incipiente. Os países ricos apenas aumentaram a sua ajuda aos países de baixo e médio rendimento para a protecção social em 5,8 mil milhões de dólares – o equivalente a menos de nove cêntimos por cada 100 dólares angariados para fazer face à COVID-19.
Países podem fazer mais e melhor, diz a OXFAM
Quase um ano após o surgimento da crise – e uma vez que muitos países enfrentam uma recessão económica brutal contínua e uma segunda ou terceira vaga da pandemia – é urgente que cada governo implemente medidas universais de protecção social para apoiar a sua população. Cada nação pode fazer muito mais para ajudar o seu povo e a investigação realizada pela OXFAM mostra que isso é possível. Assim, o que devem fazer os países de baixo e médio rendimento?
Aumentar os seus orçamentos para a protecção social em 2% do PIB em média, para colmatar as lacunas financeiras existentes e assegurar um pacote de rendimento mínimo para crianças, idosos, mães e pessoas com deficiência. Esta é uma lição comprovada resultante dos países com melhor desempenho. Só um investimento a este nível poderá actuar como um estabilizador automático com vista ao apoio de uma recuperação económica mais rápida.
Maximizar os efeitos de redução da pobreza e da desigualdade da protecção social, visando atingir todas as pessoas com um ou mais benefícios; proporcionar benefícios às mulheres, trabalhadores informais, migrantes, refugiados, jovens e outros grupos frequentemente excluídos; proporcionar uma cobertura universal a todos os que se enquadrem numa destas contingências (por exemplo, pessoas desempregadas, pessoas que vivem com deficiência, maternidade, etc.). Com o objectivo de uma maior adequação das prestações, aproximar o rendimento de substituição das prestações de assistência social para pelo menos 15% do PIB per capita, valor que constitui um valor de referência.
Promover uma abordagem “transformativa de género” no que respeita à protecção social, que permita às mulheres lidar melhor com a escassez excessiva de tempo, com os encargos resultantes dos cuidados prestados nos agregados, com a violência doméstica e com a sua posição enfraquecida no mercado de trabalho. O reconhecimento dos cuidados não remunerados e do trabalho doméstico como uma contribuição crucial para a economia em conjunto com uma responsabilidade partilhada é um ponto de partida necessário.
Aumentar os impostos sobre os cidadãos e empresas mais ricos para possibilitar um amento da protecção social universal. Novos impostos sobre a riqueza devem ser introduzidos para responder à pandemia, como está a acontecer, por exemplo, na Argentina. Os países ricos têm um papel a desempenhar para garantir que todos tenham acesso à protecção social universal, incluindo:
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- A criação de um Fundo Global de Protecção Social que apoie os países de baixo e médio rendimento na realização da protecção social para todos, através de uma melhor e maior cooperação técnica, a par de uma provisão de co-financiamento para incentivar em particular os países de baixo rendimento a investir mais na protecção social.
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- Aumento significativo da quantidade de ajuda internacional para apoio à protecção social por parte das economias ricas do G20 e de outros membros do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento da OCDE. Os países ricos apenas aumentaram a sua ajuda aos países em desenvolvimento para a protecção social em 5,8 mil milhões de dólares – o equivalente a menos de cinco cêntimos por cada 100 dólares angariados para fazer face à Covid-19.
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- Cancelamento da dívida, revisão profunda da Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida e alargamento do alívio da dívida. Um cancelamento faria uma enorme diferença, particularmente para países altamente endividados. A investigação da OXFAM mostra que se os recursos economizados com o alívio da dívida fossem canalizados para a protecção social, 26 países poderiam proporcionar uma transferência pública de seis meses a todas as pessoas acima dos 60 anos de idade capaz de cobrir necessidades básicas, bem como o apoio a todas as pessoas com deficiência e a todas as crianças.
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- Atribuição de 3 biliões de dólares em direitos de saque especiais através do FMI, juntamente com um compromisso de este último e do Banco Mundial para a concessão de empréstimos e subsídios imediatos sem impor condições para futuras despesas sociais, tais como a austeridade.
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