Em Portugal (e não só), o destino de uma criança continua a ser fortemente moldado pela sua origem social. Um novo estudo do Banco de Portugal revela que a pobreza e a privação material e social se transmitem entre gerações com uma regularidade inquietante, comprometendo o futuro antes mesmo de ele começar. Ou seja, a promessa da mobilidade social está longe de ser uma realidade
POR HELENA OLIVEIRA
A pobreza não se herda por via genética, mas o seu legado transmite-se com rigor quase científico. Em Portugal, como noutros países da Europa, o lugar onde se nasce continua a ser um forte determinante do lugar onde se chega — em oportunidades, rendimentos, educação e bem-estar. A promessa da mobilidade social, que durante décadas alimentou expectativas de progresso, tem-se revelado frágil diante de uma realidade marcada pela reprodução da desigualdade entre gerações.
Um estudo recentemente publicado pelo Banco de Portugal, intitulado “A transmissão intergeracional da pobreza e da privação material e social em Portugal”, assinado por Nuno Alves e Cristina Manteu e incluído no Boletim Económico de Junho de 2025, lança uma nova luz sobre esta persistência estrutural. Através da análise longitudinal de dados socioeconómicos, o trabalho em causa confirma que a pobreza e a privação material e social se transmitem com frequência perturbadora de pais para filhos, comprometendo desde cedo as possibilidades de inclusão, autonomia e realização pessoal.
Mais do que um retrato estatístico, estas conclusões impõem um debate ético urgente: que responsabilidades colectivas temos face a uma pobreza que se perpetua, mesmo em sociedades desenvolvidas? Como romper este ciclo, num país que se quer justo, coeso e livre?
A pobreza que se instala desde o berço
O estudo do Banco de Portugal demonstra que quem vivenciou pobreza ou privação na infância tem uma probabilidade significativamente maior de continuar a viver em condições semelhantes na idade adulta. Apesar dos progressos sociais registados desde os anos de 1980, o ponto de partida económico e familiar continua a determinar demasiadas trajectórias de vida.
De forma mais concreta, e numa amostra que incluiu 4759 pessoas, o estudo revela que indivíduos hoje com idades entre os 39 e os 49 anos e que, aos 14 anos, viviam com uma situação financeira “má”, têm uma probabilidade de 19,5% de estarem em privação actualmente — contra apenas 5,8% daqueles que tinham uma situação “boa”. A diferença é de 13,7 pontos percentuais (pp), revelando uma persistência intergeracional marcante da privação. No caso do risco de pobreza, os valores são 19,2% contra 12,5%, resultando numa diferença de 6,7 pp.
Estes dados estão sistematizados no Gráfico 1 do estudo, que mostra de forma clara como a situação financeira do agregado familiar aos 14 anos influencia a probabilidade de viver actualmente em pobreza ou privação.
O estudo conclui assim que “25,8% dos indivíduos com idades entre 39 e 49 anos reportaram uma má situação financeira aos 14 anos. Por seu turno, a taxa de risco de pobreza dos indivíduos nesta faixa etária, no momento presente, situou-se em 14,2% e a taxa de privação material e social em 9,4%. O estudo revela ainda que “estes valores são inferiores aos da população total, reflectindo taxas de risco de pobreza superiores nas crianças e taxas de privação material e social superiores nos mais velhos”. A diferença acentuada nas percentagens é, por si só, um reflexo da continuidade das desvantagens ao longo do ciclo de vida.
O estudo ilustra igualmente como esta relação é mediada por factores como a escolaridade dos pais, a educação dos indivíduos inquiridos, o tipo de família e a inserção laboral. Ao comparar indivíduos com características semelhantes nestas dimensões, observa-se que o impacto da situação financeira negativa na adolescência sobre a privação reduz-se de 13,7 pp para 7,1 pp — ou seja, parte da transmissão é explicável por estas variáveis, mas não totalmente. A privação mantém-se parcialmente associada ao passado mesmo após controlar os factores do presente.
Educação: onde começa — ou termina — a mobilidade social
O investimento em educação é uma das formas mais eficazes de melhorar as perspectivas económicas e sociais de uma criança. Contudo, o estudo do Banco de Portugal demonstra que as qualificações dos pais continuam a condicionar fortemente o percurso educativo dos filhos, tornando a educação num canal privilegiado de reprodução social.
Os dados apresentados são claros: quando a escolaridade máxima dos pais é o 9.º ano (68% da amostra), 34,5% dos indivíduos vivia aos 14 anos em famílias com uma situação financeira má. Essa percentagem baixa para 14,8% quando os pais têm o ensino secundário e para apenas 1,7% quando têm o ensino superior.
Mas não se trata apenas de uma correlação entre escolaridade e pobreza: a educação transmite-se directamente entre gerações. Quando os pais têm apenas o 9.º ano, apenas 21,7% dos filhos completa o ensino superior. Essa percentagem sobe para 57,9% com pais com ensino secundário e para 79,7% com pais com ensino superior.
O estudo demonstra também como esta transmissão educativa é ainda mais sensível à situação financeira da família. Entre os filhos de pais com escolaridade até ao 9.º ano, apenas 10,9% dos que viviam com dificuldades financeiras conseguiu atingir o ensino superior. Já entre os que tinham uma situação económica mais confortável, essa taxa sobe para 31,1%. Quando os pais têm o ensino superior, a situação financeira já não influencia significativamente o percurso educativo dos filhos — sinal de que o capital educativo, por si só, protege contra os efeitos da pobreza.
Estes dados confirmam que a educação é simultaneamente uma alavanca de mobilidade e um espelho das desigualdades herdadas. E mostram que o combate à pobreza intergeracional passa, inevitavelmente, por políticas educativas que quebrem este determinismo de origem, dando condições reais a todas as crianças para aprender, crescer e superar o seu ponto de partida.
A marca persistente do passado: quando os números contam a história
O estudo do Banco de Portugal recorre a uma regressão multivariada e a uma decomposição estatística conhecida como decomposição de Gelbach, que permite quantificar o peso de cada factor observado na redução do efeito intergeracional da pobreza e da privação. Os resultados mostram que a educação desempenha o papel mais relevante, explicando entre 70% e 75% da diminuição do efeito da situação financeira na adolescência sobre a privação ou pobreza na idade adulta. A situação no mercado de trabalho contribui com 35% a 40%, enquanto a estrutura familiar, o sexo e a idade têm um impacto reduzido ou mesmo negativo.
Estes dados reforçam a ideia de que o investimento na educação e na inserção laboral tem um papel decisivo para contrariar a reprodução das desigualdades entre gerações. No entanto, o facto de o efeito não desaparecer totalmente, mesmo após controlar todos estes factores, mostra que o passado económico continua a deixar uma marca duradoura na biografia das pessoas.
O economista Miles Corak, referência no estudo da mobilidade social, destaca que “a relação entre os rendimentos dos pais e dos filhos é uma medida da ‘escada social’ — quanto mais forte a ligação, menos oportunidades há de subir.”
Portugal no espelho da Europa: um lugar desconfortável
Portugal surge, neste estudo, como um dos países europeus com maiores dificuldades em garantir mobilidade social ascendente. Segundo a OCDE, são necessárias cerca de cinco gerações para que os descendentes de famílias de baixos rendimentos atinjam o rendimento médio nacional. Este dado é agravado pela persistente pobreza infantil: em 2022, mais de 22% das crianças viviam em situação de pobreza, segundo a UNICEF. Dados mais recentes publicados no passado dia 1 de Junho – “A infância em números em Portugal”, no âmbito do Dia Mundial da Criança e no ano em que se celebram os 35 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança em Portugal, demonstram que houve uma descida na taxa de pobreza infantil em 2023, mas que uma em cada seis crianças continua a viver em situação de pobreza e uma em cada cinco famílias com crianças vive em casas sobrelotadas.
Num país onde se tem investido em educação, protecção social e habitação, este resultado revela uma falha de articulação política e estrutural. E como sublinham vários economistas, sem uma estratégia integrada de longo prazo, com indicadores claros e compromisso interpartidário, não se rompe a herança da pobreza em Portugal.
O sociólogo dinamarquês Gøsta Esping-Andersen defende que os diferentes modelos de Estado social explicam em grande medida a persistência da pobreza e da desigualdade. No seu livro The Three Worlds of Welfare Capitalism, refere que “os sistemas mais universalistas e inclusivos tendem a gerar maior mobilidade social, enquanto os modelos mais residuais cristalizam as desvantagens de origem.” Esta reflexão poderá ajudar a enquadrar o caso português no contexto europeu.
Pobreza como destino: o que diz a nossa consciência colectiva?
A transmissão da pobreza entre gerações levanta um dilema moral: é aceitável que o nascimento continue a definir o futuro? Se queremos uma sociedade livre e justa, esta herança silenciosa deve ser combatida com a mesma determinação com que enfrentamos outras formas de desigualdade.
É também reconhecido que sem direitos sociais garantidos desde cedo, nenhuma criança tem verdadeiras oportunidades de prosperar, o que reforça a visão da urgência de políticas centradas nos direitos sociais enquanto condição prévia para a mobilidade e a dignidade humana.
A responsabilidade é colectiva: do Estado, das empresas, das escolas, dos media. Políticas públicas são essenciais, mas não bastam. As empresas podem ter um papel activo na promoção da mobilidade (através de estágios, bolsas, inclusão laboral); as escolas precisam de mais meios para combater as desigualdades de origem; os media devem contrariar narrativas que culpabilizam os pobres pela sua condição.
Romper o ciclo da pobreza intergeracional é um imperativo ético e um desafio político de primeira ordem. Requer coragem, visão e continuidade. Requer investimento público, alianças sociais e liderança moral.
Porque nenhuma criança deve crescer com o peso do destino dos seus pais. Porque um país justo mede-se pela sua capacidade de garantir que o futuro não é uma repetição do passado.
Imagem: ©Arturo Esparza/Unsplash.com
Editora Executiva