Estará o povo português, aquele de brandos costumes, a alterar o seu “estado de alma”? Que tipo de cicatrizes poderá esta crise deixar nos cidadãos? Podemos estar a assistir a uma depressão colectiva? Estas e outras questões foram colocadas a Miguel Pereira Lopes, doutorado em Psicologia Aplicada e pós-doutorado em Economia, numa tentativa de aferir quais os principais fenómenos, sociais e colectivos, que estão a emergir numa sociedade abafada pela troika. Mas as respostas foram tudo menos pessimistas… Vivemos num Portugal incerto, com medo do futuro, revoltado e sem esperança. Sentimos o descontentamento nas ruas, nos cafés, nas conversas das crianças e nos desabafos dos jovens. Não se pode sonhar, planear ou ambicionar. Adiam-se filhos, projectos e mudanças. O consumo de antidepressivos está a aumentar e a sombra do desespero paira sobre a sociedade, sem olhar a grupos etários ou a classes profissionais. Com este pano de fundo, são muitas as questões que surgem e são poucas as respostas que emergem. Em conversa com Miguel Pereira Lopes, professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, o VER procurou “situar” as atitudes dos portugueses face à crise. Todavia e para o doutorado em Psicologia Aplicada e pós-doutorado em Economia, “nem tudo é, de facto, mau na crise”. A confiança nas instituições será, muito provavelmente abalada, mas poderá ser esse abalo “que tornará premente a necessidade das novas gerações em construírem um mundo diferente”. Um alerta, porém: só uma visão partilhada em torno de uma causa é que poderá mover as pessoas. E é absolutamente necessário “encontrar caminhos alternativos para se gerar vontade em agir” e sair da passividade. Para não entrarmos num beco sem saída.
Uma depressão económica pode ser definida por recessões severas e prolongadas, nas quais o rendimento, a produção e o emprego decaem, onde existe o declínio de novos projectos, o investimento é reduzido, etc. E é também um fenómeno colectivo, na medida em que induz o contágio ou o denominado efeito dominó. Podemos considerar esta definição como uma analogia útil para uma possível depressão colectiva? Uma das conclusões desse modelo, e que vai contra o que se tem escrito sobre ciclos económicos, é que quando a economia começa a definhar, manter uma perspectiva optimista é negativo, ao contrário do que há muito se pensava. Isto porque perante eventos que são percebidos como não controláveis, como as crises económicas ou até mesmo acontecimentos pessoais como o aparecimento de uma doença incurável, a investigação tem mostrado que o optimismo gerado nesses momentos é irrealista e pode conduzir a uma degradação do nosso estado. Foi isso que aconteceu entre 2008 e 2011, com uma negação irrealista do que estava a acontecer. Pelo contrário, para levar as pessoas a agirem nestas situações, é necessário um sentimento de pessimismo generalizado, que leva as pessoas a compreenderem que é necessário fazer alguma coisa. Claro que, tudo isto, partindo do pressuposto que existem planos alternativos de acção que dêem esperança às pessoas, tal como concluí num outro estudo meu publicado no Journal of Positive Psychology em 2008. Por isso, não vejo o pessimismo actual como algo de mau, mas como algo de necessário para iniciar a recuperação. Talvez a vida seja mesmo assim, feita de coisas positivas e negativas. Mas só se houver esperança… sem isso, nada de bom se poderá iniciar. É isso que acontece quando passamos por eventos traumáticos. Por exemplo, um estudo realizado pela investigadora norte-americana Amy Wrzesniewski logo após o “onze de Setembro” nos Estados Unidos, mostrou que houve uma acentuada tendência para os americanos voltarem a procurar um novo sentido de vida que se enquadrasse no momento que estavam a viver. Não parecem pois restar dúvidas que a vivência destes acontecimentos altera muito significativamente as crenças das pessoas em termos colectivos. Outro exemplo são os estudos do politólogo Ronald Inglehart, que estudou aprofundadamente a evolução diacrónica entre valores “materialistas” e valores “pós-materialistas” e concluiu que as gerações nascidas no pós segunda guerra mundial tinham de facto mudado os seus valores para aspectos menos materialistas, dando inclusive origem ao conhecido movimento hippie. Que vamos ser pessoas diferentes, não me parece haver dúvida. E são essas diferenças que vão forjar as novas instituições no futuro. Alguns estudos sugerem que aqueles que crescem durante épocas de recessão tendem a acreditar que o sucesso na vida depende mais da sorte do que do esforço ou do mérito, e são também mais propensos a confiarem muito menos nas instituições públicas. Esta recessão severa que estamos a viver poderá estar a incubar uma geração mais avessa ao risco e com particularidades distintas? Quando se tenta aferir quais são os grupos etários mais afectados pela presente situação, os jovens parecem ser os que mais “votados são”. O último relatório UN World Youth (Fevereiro de 2012) alertava para a dupla perturbação que a crise tem nos mais jovens, porque não são apenas os primeiros alvos para despedimentos, como também a sua transição do meio académico para o mercado de trabalho se torna impossível. Que cicatrizes poderá esta crise deixar como herança aos actuais jovens?
Outra das investigações que abordo com a minha colega Patrícia Jardim da Palma no livro Paixão e Talento no Trabalho mostrou que, em média, são necessários dez anos de prática de uma actividade para se alcançar um desempenho superior. Dez anos!!! Pensando que os nossos jovens entram no mercado de trabalho, na melhor das hipóteses pelos 21 ou 22 anos, só depois dos 30 anos de idade é que poderão chegar a esse patamar. Em outros países, como a Alemanha, a ligação às empresas começa muito mais cedo para a generalidade dos estudantes, por volta dos 13 ou 14 anos. É quase uma década de avanço! Uma década num período útil de 40 anos de trabalho é muito significativo. Enfim, nada deve ser por acaso, e as diferenças de produtividade têm também aqui uma justificação. É claro que tudo isto tem também o lado emocional e psicológico nos jovens, que nesse momento do seu desenvolvimento psicossocial, deveriam ter a oportunidade de construir o seu lugar na sociedade e que infelizmente nem todos estão a ter. Mas vejo mais uma vez o caso como uma oportunidade para pensarmos em termos estruturais como é que podemos aproximar as empresas das instituições de ensino e formação e proporcionar aos jovens experiências “profissionais” cada vez mais cedo no seu desenvolvimento. Nessa perspectiva mais optimista e pegando no duplo significado que a palavra “crise” tem, por exemplo, na língua japonesa, acredita que a “nossa” poderá gerar outras oportunidades e motivações? E também no que se refere a uma mudança na atitude produtiva, julgo que há oportunidades, mas que parecem estar a ser desperdiçadas. Por exemplo, no corte de salários na administração pública, poderia ser introduzida uma discriminação em função do desempenho. Cortar igual para todos dá a mensagem errada do costume, de que o esforço, a capacidade e a dedicação adicionais não são recompensados e valorizados. Por fim, a crise económica e social que vivemos mostra-nos que instituições como o Banco de Portugal ou o INE deveriam alargar os seus horizontes e incluir outros indicadores de progresso social e económico, como estão a experimentar países como a Inglaterra e a França, onde os governos passaram a exigir que se avaliem também a qualidade de vida e o bem-estar dos cidadãos. De facto, não me canso de confirmar que a escolha entre ver o copo “meio cheio ou meio vazio” é verdadeiramente nossa! A Grécia sinalizou, na passada semana, a sua 20ª greve em dois anos. O povo está continuamente nas ruas, a violência aumenta e, com ela, surgem também outros fantasmas do passado, nomeadamente os da segunda guerra mundial. Até que ponto esta situação poderá tornar-se incontrolável e ter consequências inesperadas? O povo português, por seu turno, continua a ser apelidado como “de brandos costumes”. Todavia, a tensão começa a notar-se e a alastrar. É possível que estejamos a assistir a uma nova faceta da “alma portuguesa” e, se sim, que cenários são possíveis vislumbrar a médio prazo? Os media sociais têm sido determinantes nas revoluções do século XXI. E, mesmo em Portugal, basta ter uma página no Facebook para se perceber que existem novos fenómenos a fermentar: os que compulsivamente publicam todas as notícias para descredibilizar (ainda mais) o governo, os que promovem as concentrações, os que escolhem símbolos culturais intemporais para se manifestarem, os que ostensivamente “escarafuncham”na ferida e apelam à acção. Que leitura faz desta população portuguesa virtual?
Por um lado, que os movimentos sociais não sejam vistos como tendo algum interesse particular, ou interesse de “classe”. Por outro lado, que girem em torno de uma visão comum do que pretendem para o futuro. O protesto só por si pode unir, mas não por muito tempo… é só até se descobrir que afinal não há acordo entre os contestatários quanto a uma alternativa de futuro. É a visão de futuro partilhada em torno de uma causa comum que move as pessoas. Mas é possível que haja uma nova cultura em construção neste novo mundo virtual. Uma tese de licenciatura de um aluno meu de ciências da comunicação, que procurou diferenças interculturais na utilização do Facebook entre Portugueses e Norte-Americanos concluiu que as semelhanças entre os internautas desta rede social virtual eram maiores do que as suas diferenças culturais. Talvez haja mesmo hoje uma “cultura de rede” que trespassa valores culturais nacionais, como os costumávamos conhecer. E talvez seja esta geração virtual que vai encontrar o novo paradigma social… A inexistência de esperança é um poderoso despoletador de estados de depressão e ansiedade. Em 2010, um Eurobarómetro divulgou que Portugal tinha registado, nesse ano, “um consumo médio de antidepressivos cinco vezes superior à média europeia”. Por outro lado, a própria Organização Mundial da Saúde já veio alertar para um possível aumento do suicídio entre os jovens adultos, precisamente devido ao desemprego. Até que ponto é que este fenómeno poderá atingir contornos preocupantes?
Esse estado de espírito está efectivamente muito associado à depressão. A esperança é precisamente o contrário. Mas não é uma questão de fé, como normalmente no senso comum a associamos! Em termos de investigação científica, a esperança tem sido conceptualizada como tendo duas facetas, a vontade (will) e os caminhos/estratégias (way). Aliás, os Americanos têm uma expressão que diz “onde há uma vontade, descobre-se um caminho”…! Mas o contrário também é verdade. É necessário encontrar caminhos alternativos para se gerar vontade em agir e sair dos estados passivos provocados pela depressão. Quando não vemos esses caminhos, individual ou colectivamente, vemo-nos num beco sem saída e é aí que muitas vezes as pessoas desistem de viver. Por isso, é fundamental dar esperança às pessoas, ou seja, ajudá-las a encontrarem caminhos alternativos para alcançarem os seus objectivos. E aqui, há um papel muito importante que as políticas públicas de emprego, educação e formação podem jogar. Mas também há outras soluções mais simples e económicas de nos mantermos positivos. Pegando em algumas investigações da psicologia, o mesmo Martin Seligman tem aplicado a pacientes com depressão um exercício muito simples a que chamou de “as três graças diárias” e que é muito simples. No final do dia, cada um de nós deveria pensar e “saborear” três coisas boas da vida que ocorreram nesse dia. Podem ser coisas simples, mas com um grande significado pessoal. Os resultados de se praticar este pequeno e grátis exercício têm-se mostrado surpreendentes nos estudos do Martin Seligman. Pacientes com depressão severa que deixaram de tomar os antidepressivos e começaram a realizar este exercício mostraram o mesmo grau de melhoria do que os que apenas tomaram os fármacos!!! Apenas foram suplantados em termos de melhoria por aqueles que continuaram a tomar os fármacos e em simultâneo praticaram o exercício. Fica pois claro que estes impactos estão, de facto, na nossa mão. E que os efeitos do “pensamento positivo” não são apenas um mito popular. Pelo contrário, esses efeitos confirmam-se na investigação científica sobre o assunto. Por isso temos de colocar a sua prática na agenda. E isso pode começar pelo leitor desta entrevista!
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Editora Executiva