POR MÁRIA POMBO
Se existe problema que a internet e o meio digital têm levantado – e que tem sido difícil de combater – é o da privacidade de dados dos cidadãos. E isso deve-se em grande parte ao facto de as empresas nem sempre garantirem a confidencialidade da informação que os seus clientes lhes disponibilizam, mas também devido a uma maior consciência, por parte dos indivíduos, de que as suas informações pessoas são valiosas e devem ser controladas.
De facto, têm vindo a aumentar as preocupações e as dúvidas em torno da temática da ética e da privacidade digital, tanto por parte dos indivíduos (que questionam de que modo é que as empresas asseguram a confidencialidade dos seus dados e a que ferramentas podem recorrer para garantir a privacidade ou denunciar uma violação deste tipo de direitos), como das organizações (que reconhecem o risco crescente de proteger e gerir dados pessoais dos seus clientes) e dos próprios governos (que estão a implementar medidas e a criar leis para garantir a protecção dos dados). Na Europa, o Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD) já entrou em vigor mas são ainda inúmeras as dúvidas que existem em torno dos riscos e das garantias no que respeita a esta matéria.
E a questão da privacidade de dados é tão relevante que é considerada, pela Gartner, como uma das Dez tendências estratégicas na tecnologia em 2019. Estas tendências têm como objectivo permitir aos líderes empresariais e promotores tecnológicos identificar oportunidades e combater ameaças, procurando novos caminhos e estratégias que melhorem os seus negócios.
No que à privacidade de dados diz respeito, e de acordo com o documento, o sector privado está dependente de uma legislação mais rigorosa e tem procurado respeitá-la e cumpri-la, informando – ou pelo menos fazendo esse esforço – os consumidores acerca das práticas adoptadas e garantindo-lhes que a confidencialidade dos seus dados é assegurada.
Porém, as normas não são tão exigentes para os serviços de segurança e para as forças policiais, que recorrem a sistemas de identificação facial e reconhecimento automático de matrículas para sinalizar cidadãos, não se privando de localizadores nem de outras técnicas “mais invasivas” para identificar e seguir suspeitos de crimes, o que permite levantar questões em torno de quem pode invadir a privacidade dos cidadãos, em que condições o pode fazer e que limites devem existir.
[quote_center]A confiança é “uma crença firme na confiabilidade, verdade ou capacidade de alguém ou algo”[/quote_center]
Independentemente de quem o faça, a verdade é que os cidadãos estão cada vez mais informados e atentos aos dados pessoais que partilham, compreendendo melhor que, mesmo ao fazê-lo, podem exigir que as empresas os mantenham em sigilo. Deste modo, assegurar a privacidade dos dados, para além de revelar o cumprimento da lei, é uma forma de as organizações demonstrarem aos seus clientes que são de confiança e que estão empenhadas em manter privados os dados pessoais de cada um.
Recorrendo ao Oxford Dictionaries, os autores do documento explicam que, mais do que o acto de assegurar a privacidade, a confiança é “uma crença firme na confiabilidade, verdade ou capacidade de alguém ou algo”, traduzindo-se também na “aceitação da verdade de uma declaração sem evidência ou investigação”.
Assim, espera-se que aquilo que actualmente resulta de um mero cumprimento da lei se transforme, progressivamente, na consciência de que se está a fazer “a coisa certa” – ou seja, que a privacidade deixe de ser uma mera questão legal e passe a ser o reflexo da ética que se pratica nas organizações.
Os quatro patamares para se ser realmente ético
De acordo com o documento da Gartner, existem quatro patamares que ajudam as organizações a atingir a meta da garantia de ética aos consumidores, sendo que os dois primeiros (e mais baixos) são externos e estão relacionados com a prevenção de problemas, e os dois últimos (e mais difíceis de alcançar) são internos e concentram-se mais na demonstração de valor e conquista de confiança.
O nível mais baixo é denominado de “Mind compliance” e está focado exclusivamente na ideia de que se devem evitar problemas. Neste sentido, as organizações tomam decisões com base no que é permitido, assumindo também que tudo o que não é expressamente proibido pode ser feito.
Segundo o RGPD, podem ser aplicadas sanções até 4% da receita anual das empresas ou 20 milhões de euros, prevendo-se que até 2021, sejam arrecadados mais de mil milhões de euros em multas por incumprimento das regras. E as normas que promovem o respeito pela privacidade ultrapassam as fronteiras europeias, estando a ser implementadas em outras partes do mundo. A China, a Rússia e Coreia do Sul são exemplos de países onde estão a ser aplicadas regras de protecção de dados, incentivando as organizações a serem mais responsáveis na utilização de informação pessoal e obrigando-as a procurar serviços de alojamento de dados – como as nuvens – que sejam pouco dispendiosos mas fidedignos, em simultâneo.
[quote_center]“Construir a confiança do cliente é difícil, mas perdê-la é muito fácil”[/quote_center]
A “Mitigação do risco” é o segundo patamar desta hierarquia e é difícil de compreender numa primeira análise. A mesma está relacionada com o risco que as organizações estão dispostas a assumir por prejudicarem outras organizações ou pessoas. Isto inclui a avaliação de risco por danos causados a terceiros – de forma voluntária e sem que sejam “apanhadas” – pondo em causa a reputação destes ou originando algum tipo de constrangimento público. Ou seja, neste patamar as empresas devem conseguir perceber se os danos que causam a terceiros compensam os riscos que correm no caso de serem descobertas.
Um bom exemplo que ilustra este patamar é o da Cambridge Analytica, que dispensa apresentações e que utilizou indevidamente dados do Facebook para influenciar o comportamento de um grupo de cidadãos.
A verdade é que incidentes desta natureza propiciam a que a população se sinta verdadeiramente preocupada com o uso e divulgação dos seus dados pessoais, o que resulta, por um lado, no facto de que muitos procurem as redes sociais e os meios de comunicação para apresentarem as suas queixas e denunciarem as empresas que violam os seus direitos, e por outro lado, que muitos cidadãos optem por desactivar serviços e deixem de fornecer as suas informações (ou passem a fornecer informações falsas). E estas atitudes têm consequências bastante indesejadas para as empresas e que vão desde a “mera” rotatividade de clientes, à desconfiança, passando pelos danos ao nível da sua reputação ou até à aplicação de sanções.
Assim, os autores do documento sublinham a ideia de que “construir a confiança do cliente é difícil, mas perdê-la é muito fácil”, salientando que, como a confiança gera receita, as organizações que a promovem junto dos seus clientes irão certamente prosperar. Os mesmos referem que, até 2020, é expectável que as organizações que são “digitalmente confiáveis” consigam obter lucros 20% acima daquelas que não o são.
O terceiro nível desta hierarquia está relacionado com a ideia de “fazer a diferença”. Após lidarem com os riscos de perderem clientes, é tempo de as organizações pensarem no modo como podem destacar-se face à concorrência, fazendo com que os clientes confiem mais nos seus produtos e serviços do que nos das restantes empresas.
Os autores do documento em análise explicam que 87% dos consumidores afirmam que não têm problemas em fazer negócio com outra empresa se notarem que aquela à qual recorreram inicialmente não está a tratar os seus dados de uma forma responsável. Isto significa que quanto mais uma empresa garantir e assegurar a privacidade e o correcto tratamento dos dados dos clientes, mais hipóteses tem de que estes queiram fazer negócio com ela. Ou seja, ter uma atitude e um serviço diferenciadores junto dos clientes é não só uma demonstração de ética como também uma estratégia que permite aumentar as receitas e criar mais valor para as empresas.
Por fim, o último patamar – e mais difícil de alcançar – denomina-se “Seguir os seus valores” e implica que todas as decisões da empresa sejam tomadas de acordo com uma “bússola moral”. Neste sentido, os gestores devem ter a certeza absoluta dos valores que a empresa segue e pratica, o que é que esta representa e de que modo deseja não apenas ser avaliada pelos consumidores, mas acima de tudo actuar.
Estando neste patamar, cada membro de uma organização deve ser capaz de se olhar ao espelho e saber que está a fazer a coisa certa, questionando-se constantemente se o modo como trata clientes, colaboradores e outros stakeholders é o mesmo modo como gostaria de ser tratado e se esse tratamento vai ao encontro daquilo que a sua organização defende. Neste sentido, os autores do documento explicam que, mais do que “maximizar a utilidade para a organização às custas dos clientes” o êxito da tecnologia verifica-se quando “é possível extrair dela o máximo valor tanto para a empresa como para todos aqueles dos quais esta depende ou com quem tem relação”.
O meio digital trouxe ao mundo novas formas de fazer e gerir os negócios, mas também demonstra o quão fácil é vender informação confidencial e utilizá-la de forma indevida para proveito das empresas. A criação de legislação relativa a este tema veio alertar os consumidores, dando-lhes ferramentas que combatem a violação dos seus direitos, mas também veio revelar às organizações que não vale tudo e que existem limites que devem ser respeitados.
Após a correcta aplicação da lei, espera-se então que as organizações “absorvam” tudo o que aprenderam e que, progressivamente, demonstrem aos consumidores e a si próprias que mais do que cumprir uma imposição, estão empenhadas em adoptar uma postura mais ética. É esta atitude que fará, num futuro próximo, a diferença entre ter lucro ou ver manchada a reputação.
Jornalista