O projecto Vela Sem Limites surgiu em Cascais, em 2005, e tem revelado as potencialidades da vela adaptada enquanto modalidade inclusiva e heterogénea, capaz de chegar a um grande número e variedade de pessoas, independentemente da sua incapacidade. Em entrevista ao VER, o seu mentor, Charles Lindley, faz um balanço do mesmo e explica a forma como surgiu e funciona, salientando que para o seu sucesso “é fundamental o empenho humano”
POR MÁRIA POMBO

Tratando-se de um desporto náutico em que as embarcações se deslocam na água através da força do vento, a vela é uma modalidade desportiva que permite aos seus participantes desenvolverem diversas capacidades, como a autonomia e a confiança, fundamentais para a resolução de problemas, dentro e fora de água.

Adaptar esta modalidade a indivíduos com limitações motoras e/ou intelectuais é possibilitar que a mesma possa ser praticada por um maior número de pessoas, permitindo que os seus benefícios (em termos de realização pessoal, superação de obstáculos e integração social, por exemplo) se multipliquem e cheguem a um maior número de indivíduos.

Em Cascais, existe um projecto que promove, gratuitamente, a prática de vela junto de pessoas com deficiência ou alguma limitação. Chama-se Vela Sem Limites e surgiu em 2005 com o grande objectivo de proporcionar a este grupo uma prática regular de uma modalidade náutica, em quatro dimensões complementares: lúdica, desportiva, terapêutica e competitiva.

Em entrevista ao VER, Charles Lindley, mentor do projecto (e condecorado recentemente pela Coroa Britânica, pelo trabalho já realizado em prol da vela adaptada em Portugal), explica que “um cidadão deficiente faz o mesmo que um cidadão não portador de deficiência; precisa apenas de mais tempo”, residindo, neste caso, a única diferença “nos meios que são postos à [sua] disposição, principalmente para facilitar o acesso e evitar impedimentos”.

O grupo de participantes neste projecto é bastante vasto, sendo possível encontrar pessoas com limitações a nível motor ou cognitivo, invisuais ou indivíduos em fase de recuperação de acidentes ou de AVC. No fundo, qualquer pessoa pode participar “independentemente da tipologia da deficiência” ou da idade, como salienta Lindley.

Ao fim de 10 anos de actividade e mais de mil sessões realizadas, o balanço que faz só podia ser positivo.

Quais foram as grandes necessidades encontradas “no terreno” que originaram o surgimento deste projecto?

A ideia chegou num barco vindo da Galiza e tripulado por deficientes motores, em 2004. Era necessário desenvolver esta actividade em Portugal pelo seu potencial lúdico, terapêutico e desportivo seguindo na esteira do que já se fazia em Inglaterra, Estados Unidos e Austrália e que começava a ter alguma expressão na Europa. O Clube Naval de Cascais, que organizou um convívio para as visitas nas suas instalações, a CERCICA e a Câmara Municipal de Cascais acolheram a ideia de imediato e permitiram dar vida a este projecto. Actualmente, todas as Segundas, Quartas, Quintas e Sábados, o cais Norte do Clube Naval de Cascais prepara mais um dia em que os cidadãos portadores de deficiência podem praticar vela.

De que forma é que estas dimensões são trabalhadas e quais são as principais “competências” que se pretende desenvolver? Ou seja, como é que esta modalidade pode melhorar a vida dos seus praticantes?

Por definição, um cidadão deficiente faz o mesmo que um cidadão não portador de deficiência; precisa apenas de mais tempo. Decidimos atribuir ao projecto o nome “Vela sem Limites”, até porque se estima que 10% da população dos países da Europa tem alguma deficiência. As pessoas são tratadas como se fossem “normais”. A diferença reside nos meios que são postos à disposição, principalmente para facilitar o acesso e evitar impedimentos. Os melhores exemplos são o pontão de acesso à água, concebido especialmente para esse efeito, e os barcos Access com uma série de características que os tornam facilmente utilizáveis e muito seguros para que qualquer pessoa – quer seja deficiente, idosa ou criança – possa utilizá-los sem receio.

Como é constituída a equipa do Vela Sem Limites e quais são as mais-valias dos seus elementos?

A equipa do Vela sem Limites é composta por, aproximadamente, 25 voluntários, seis monitores de vela e pessoal técnico, todos do Clube Naval de Cascais. A função administrativa é assegurada pela secretaria do Clube Naval de Cascais. Muitos dos voluntários são reformados, têm uma grande vontade de apoiar o próximo, e apreciam não só a actividade ao ar livre como também a camaradagem que resulta do trabalho, quase diário, a que nos comprometemos.

Podem participar todas as pessoas, independentemente da tipologia da deficiência? Em que circunstâncias é que as pessoas mais recorrem a esta modalidade e como decorre o processo, desde o momento em que alguém se dirige a vós para praticar a modalidade?

Qualquer pessoa residente no Concelho de Cascais pode participar, independentemente da tipologia da deficiência, sendo a actividade gratuita. Recebemos cidadãos com limitações ao nível motor, incluindo tetraplégicos que utilizam o nosso barco com comandos elétricos, mas também intelectuais (são o maior grupo). Temos ainda invisuais (um deles faz parte da nossa equipa de competição), e também pessoas em reabilitação de acidentes do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.

Em que moldes é feita a parceria entre a Câmara Municipal de Cascais, o Clube Naval de Cascais e a CERCICA?

A Câmara Municipal de Cascais deu apoio institucional e financeiro estável; a CERCICA ofereceu as coordenadas técnicas aplicáveis e emprestou dois barcos semi-rígidos que estavam parados e que agora servem de embarcações de apoio e segurança; o Clube Naval de Cascais tratou da parte técnica e monitorizou e formou os nautas, recorrendo a muitos voluntários e alguns profissionais, além de conceber o pontão de apoio e adquirir as embarcações Access, depois de recolher informações de clubes durante visitas a Inglaterra.

Que balanço faz destes anos de actividade e como vislumbra o futuro do projecto?

Um balanço em números: 10 anos de actividade, mais de mil sessões realizadas, com cerca de 10300 presenças de velejadores, 6700 presenças de voluntários e 3600 presenças de profissionais, com nove barcos Access e dois semi-rígidos.

Um balanço desportivo: organizámos um Campeonato do Mundo em 2008, um Campeonato Nacional, duas Provas de Apuramento Nacional, oito Encontros, cinco Troféus Brisa, três Troféus Saúde Prime. Fomos Campeões Europeus da Classe Access, em 2009 e 2011, fomos Campeões Nacionais variadas vezes e alcançámos um 3º lugar num Campeonato do Mundo.

E o que considera fundamental para que o mesmo continue a evoluir?

Para a continuação deste projecto é fundamental o empenho humano acima mencionado e, visto que a sua prática é gratuita, a continuação do apoio dos nossos patrocinadores.

Aproximadamente metade do nosso orçamento anual é coberto pela Autarquia, sendo a outra metade coberta pelo sector privado, em especial por empresas com um grande sentido de Responsabilidade Social, das quais destaco a OZ Energia que tem sido um apoio fundamental para a concretização e continuação deste projecto. A título exemplificativo, quando precisamos de material adaptado é, muitas vezes, o investimento desta empresa que nos permite suprir essa necessidade.


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Adaptar para integrar

Tal como a vela adaptada, existem diversas modalidades que podem ser praticadas por qualquer pessoa, independentemente da sua incapacidade, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e para a sua inclusão social. Deixamos alguns exemplos de outras modalidades adaptadas, conscientes de que ficamos muito aquém – e ainda bem! – do que se pratica em Portugal.

O atletismo adaptado, o qual faz parte dos Jogos Paralímpicos desde a sua primeira edição (decorrida em Roma, em 1960), é promovido em Portugal pela Federação Portuguesa de Atletismo (FPA). Esta é uma modalidade bastante abrangente, que pode ser praticada por anões, deficientes visuais e intelectuais, atletas com paralisia cerebral, mas também por amputados e pessoas em cadeiras de rodas.

O golfe adaptado é outro exemplo de uma prática desportiva adaptada e inclusiva – que em Lisboa pode ser praticado com o apoio da clínica Lisboa Physio e do clube Golfe Lisboa – e contribui para o aumento da resistência cardiovascular, da força e resistência muscular, sendo ainda benéfico em termos de flexibilidade, equilíbrio e coordenação motora. Adicionalmente, promove a interacção com a natureza e com a comunidade.

Dentro desta modalidade, existem três categorias:

  • A categoria A ou deficiência cognitiva: por ser uma modalidade “divertida”, contribui para a integração social e para o desenvolvimento de capacidades psicomotoras (como coordenação, equilíbrio, e controlo postural e cardiovascular);
  • A categoria B, que corresponde à deficiência motora e visual: esta revela-se bastante abrangente, tendo em conta que existem diversas formas de a praticar – na posição sentada ou com apoio de um só membro inferior ou superior, sendo ainda possível conjugá-las conforme as necessidades (por exemplo, jogar sentado e com um só membro superior);
  • A categoria C ou deficiência auditiva: neste “nível” recorre-se a imagens e língua gestual, mas todas as regras se mantêm iguais às do golfe “tradicional”.

Adicionalmente, a Associação Nacional de Desporto para a Deficiência Intelectual (ANDDI) promove a prática de diversas actividades desportivas junto de atletas com deficiência mental ou incapacidade intelectual, com vista à sua reabilitação e total integração na sociedade. De norte a sul do País, estão a ser desenvolvidos diversos eventos para atletas com estas características, em modalidades tão distintas como o hóquei, ténis de mesa, orientação, atletismo, judo, ciclismo, futsal e outros desportos colectivos, todos eles adaptados a pessoas com algum tipo de limitação.

O desporto e a cultura para todos é um direito consagrado no artigo 79º da Constituição da República Portuguesa. A este, o Instituto Português do Desporto e Juventude acrescenta que a actividade física oferece diversos benefícios, quer aos portadores de deficiência, quer à sociedade em geral.

Para os próprios, aumenta a força e a resistência física, reduz a irritabilidade e previne estados depressivos, estimulando ainda a comunicação e o desenvolvimento intelectual, para além de ser um forte impulsionador da integração social.

Já para a sociedade, é fundamental na diminuição de barreiras comunicativas entre os que têm e os que não têm limitações, e também na difusão da informação acerca da deficiência; para além disso, desperta o interesse da comunidade científica para o estudo da deficiência e promove o desenvolvimento de soluções ou mecanismos que minimizem as desvantagens das incapacidades e tornem os seus portadores mais autónomos e capazes.


Jornalista