POR EVA GASPAR © Jornal de Negócios
“A França está em guerra”. A afirmação do presidente da França, país fundador da União Europeia e da NATO no rescaldo dos atentados de Paris, sugere que se esteja a abrir um novo capítulo na vida dos franceses e dos demais europeus.
Mais controlos? É o fim de Schengen? Mais votos para a extrema-direita? Mais dinheiro e meios para armamento e serviços secretos? Novas alianças no plano internacional? “Botas no terreno” na Síria? Mudanças na política de acolhimentos de refugiados? O Negócios foi ouvir a opinião de quatro especialistas em assuntos internacionais para tentar perceber o que podemos esperar que mude depois de o terrorismo islâmico ter atacado o coração de Paris. Eis o que respondem, em discurso directo.
Francisco Seixas da Costa: “Se necessário, é preciso fazer uma aliança com o Diabo”
“A França está em guerra” é uma expressão forte que abre caminho a mudanças mais centradas no plano interno do que externo, até porque a França sempre foi um país muito preocupado e cuidadoso – muito mais do que os Estados Unidos – sobre o cumprimento dos compromissos de natureza multilateral. É uma expressão que ajudará a justificar uma acção mais musculada no plano interno perante um inimigo que, sendo externo, mora também no próprio país. Entre os cinco milhões de muçulmanos que o país acolhe há claramente pessoas que não têm a menor lealdade à França.
[pull_quote_left]Temos de saber qual é o inimigo principal e o secundário. Estar com preciosismos nesta matéria é politicamente irresponsável – Francisco Seixas da Costa[/pull_quote_left]
Mas mesmo no plano internacional não há muito mais que a França possa fazer: pôr tropas num terreno que é um lamaçal? O que pode é denunciar quem for culpado e complacente, por exemplo com que financia o “Estado islâmico” e exigir uma denúncia mais firme dos muçulmanos moderados contra esta agenda medieval.
No plano internacional, temos de saber qual é o inimigo principal e o secundário, e nessa hierarquia de prioridades é evidente que o “Estado islâmico” é o alvo a abater. Estar com preciosismos nesta matéria é politicamente irresponsável. É preciso fazer uma aliança com o Diabo: com Bashar, com o Irão e com a Rússia, se necessário.
A liberdade de circulação no espaço Schengen poderá ser condicionada e o próprio Tratado pode ter de ser ajustado, mas temos de defender tanto quanto possível este espaço.
Não sou defensor de que a Europa deva necessariamente abrir as portas a todos os que a procuram – refugiados económicos e humanitários incluídos – mas não posso deixar de lamentar que os atentados de Paris estejam a ser usados por alguns europeus para promover uma comparação miserável entre refugiados e terroristas. Quem nos procura são as vítimas do terrorismo, não quem o canaliza. Daí que a minha primeira preocupação seja relativamente ao destino dos refugiados que já se encontram em território europeu e que nem são muitos tendo em consideração que somos 500 milhões. No horizonte mais longo, é preciso pedir mais responsabilidades aos países árabes, à Arábia Saudita, ao Qatar, etc.
Ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus e antigo Embaixador de Portugal em França
Paulo Gorjão: “O clima político para o acolhimento dos refugiados vai mudar”
Começo pela ressalva do costume, isto é, verdadeiramente ninguém sabe o que vai mudar, muito possivelmente a começar pelos próprios ministros do Interior e/ou Administração Interna. Dito isto, parece-me evidente que haverá uma forte pressão no sentido de se reforçar os mecanismos de cooperação no âmbito da UE, em particular no que diz respeito aos serviços de informações, no sentido de se conseguir uma partilha mais efectiva de informação e de maior interligação entre agências.
Não me parece que, no essencial, haja muito mais para legislar. Não foi por falta de legislação e de instrumentos legais que este atentado ocorreu. Haverá, isso sim, pressão – em França, mas não só – no sentido de se reforçar os meios humanos e materiais dos serviços de informações (e de outras forças especiais, nomeadamente de natureza operacional). Há cada vez mais jihadistas a regressar à Europa, o que não tem sido acompanhado por um reforço claro de meios humanos e materiais nos países de acolhimento/regresso.
[pull_quote_left]Não creio que Schengen venha a ser um dano colateral dos atentados de Paris – Paulo Gorjão[/pull_quote_left]
Indiscutivelmente, os atentados de Paris introduziram, em teoria, mais espaço para a mensagem de extrema-direita, os tópicos do costume: nacionalismo, xenofobia, anti-islão, anti-emigrantes e refugiados, anti-multissecularismo, etc.
Creio que os Estados-membros tudo farão para preservar Schengen. Seria um duro golpe no processo de aprofundamento da integração europeia, um golpe que os principais Estados europeus não estão preparados para gerir politicamente nesta altura. Por outras palavras, não creio que Schengen venha a ser um dano colateral dos atentados de Paris. Admito, no entanto, que possa vir a existir uma reformulação de alguns aspectos das regras de Schengen.
Existirá muita pressão imediata para reagir e, nessa medida, é possível que possam ocorrer operações militares conjuntas, importantes sobretudo do ponto de vista político. Não creio que, no entanto, seja um aspecto muito relevante do ponto de vista militar. Era importante, por isso, uma articulação e uma estratégia comum entre os principais “players”, o que não existe.
A UE (Alemanha, França, Reino Unido) há muito que percebeu/perceberam que o dossier sírio não terá uma solução sem a Rússia. Aliás, não é o único dossier: Ucrânia é outro. Creio que será uma questão de tempo até que uma grande iniciativa diplomática conjunta procure uma saída para o imbróglio sírio. A minha única dúvida é se existem condições antes de 2017, altura da tomada de posse da nova administração norte-americana. Um novo “reset” das relações com a Rússia é fundamental e faz todo o sentido (tanto do ponto de vista dos EUA, como europeu), até para reequilibrar ou reformular o grande jogo de xadrez em que a China também participa.
Acrescentaria mais uma questão: goste-se ou não, o clima político para o acolhimento dos refugiados vai mudar, sem dúvida alguma. A disponibilidade para acolher largas centenas de milhar de refugiados vai evaporar-se muito rapidamente. Por pressão da opinião pública europeia. Por motivos mais paroquiais relacionados com a incapacidade de controlar em larga escala quem entra na UE e, porventura, até para preservar Schengen, em última instância.
Investigador do Instituto Português de Relações Internacionais e de Segurança (IPRIS)
Carlos Gaspar: “O ‘Estado islâmico’ quer provocar uma guerra civil em França”
Como fazer a balança entre a segurança e a liberdade é sempre a questão crucial. A boa regra é, na dúvida, preferir a defesa da liberdade, que tem riscos, à garantia da segurança, que também tem riscos. Até à data, mesmo depois dos atentados terríveis de Madrid (2004) e de Londres (2005) e depois do atentado em Paris contra o Charlie Hebdo (2015), o balanço europeu é positivo: a defesa do estado de direito e dos valores da liberdade tem prevalecido contra as tentações securitárias.
Mais força para as extremas-direitas na Europa? O perigo existe, desde logo em França, onde mesmo antes dos atentados o medo do terrorismo estava a aumentar nas sondagens (surge como a questão mais preocupante para os franceses depois do emprego), tal como o “Front National” estava já a subir nas sondagens, em vésperas de eleições locais.
[pull_quote_left]Não estão reunidas as condições para uma frente comum com a Rússia na guerra da Síria – Carlos Gaspar[/pull_quote_left]
A firmeza do Presidente da República e a unidade republicana são essenciais para conter os sentimentos de insegurança que dão força aos extremistas. No mesmo sentido, é preciso ter a coragem de lutar contra o isolamento das comunidades muçulmanas, nomeadamente em França, e dar voz política às personalidades e às correntes islâmicas moderadas dispostas a resistir aos jihadistas. O “Estado islâmico” quer provocar uma guerra civil em França.
Suspender Schengen parece ser uma má política, excepto numa emergência: os controlos de fronteira raramente travam terroristas profissionais e não servem para conter o contágio das ideologias totalitárias.
Quanto à intervenção na Síria, estão já em curso operações militares conjuntas – sobretudo ataques aéreos – da Coligação internacional, com a participação dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra, e também do Egipto, da Arabia Saudita, dos países do Golfo. Essas acções conseguiram travar a expansão territorial do “Estado Islâmico” na Síria e no Iraque que, doutro modo, podia estar às portas de Damasco ou de Bagdad. Esse sucesso está, aparentemente, na origem desta nova estratégia de atentados, nomeadamente contra as cidades europeias.
Mas a intervenção de forças militares em operações terrestres na Síria deve ser limitada às acções pontuais de forças especiais, se for indispensável apoiar as milícias locais em luta contra o “Exército Islâmico”.
Não estão reunidas as condições para uma frente comum com a Rússia na guerra da Síria. A prioridade absoluta da Rússia é garantir a sobrevivência do Presidente Bachar al-Assad, a prioridade da França e dos seus aliados, árabes e ocidentais, que defendem a deposição do Presidente sírio, é neutralizar o “Estado Islâmico”: as duas prioridades raramente se encontram no terreno concreto das acções militares.
Os serviços de informação dos Estados europeus têm meios muito consideráveis, sobretudo desde o “11 de Setembro”: mas nunca é possível garantir uma eficácia total na prevenção dos ataques terroristas.
Investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) e Professor de Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa
Bernardo Pires de Lima: “Estamos a viver uma fase absolutamente existencial para a Europa”
Este massacre em Paris faz parte da estratégia do ISIS de subversão absoluta da ordem regional e ocidental, a qual passa por três fases: (1) regional: expurgar os xiitas dos territórios destinados ao califado sunita e pôr curdos contra turcos e árabes contra persas em conflito permanente; (2) ocidental: concorrer com a Al-Qaeda na dinâmica de ataques cirúrgicos ao Ocidente, com a vantagem de ter células mais preparadas, coesas e sofisticadas nas capitais europeias; (3) global: alimentar, sem termo, um choque entre muçulmanos e o resto, sejam católicos, judeus, hindus ou ateus. Com a primeira, quer gerar o caos para oferecer ordem e proteção à comunidade sunita sob um manto de terror. Com a segunda, levar-nos a errar, a entrar em conflito político entre aliados e a alterar a nossa maneira de estar em sociedade.
[pull_quote_left]Vamos ser obrigados pelo menos a considerar medidas do tipo “Patriot Act” a nível comunitário – Bernardo Pires de Lima[/pull_quote_left]
De certa forma, é isso que cada ataque já representa, até porque vamos ser obrigados pelo menos a considerar medidas do tipo do
“Patriot Act” a nível comunitário; vamos radicalizar a perseguição no interior das comunidades muçulmanas nas nossas cidades, criando uma paranóia colectiva; vamos continuar a ouvir os nacionalismos xenófobos mais alto do que a moderação política; vamos ser tentados a enviar tropas para a Síria sem conhecer o terreno e sem data de regresso. A questão não é se isto vai tudo ser discutido, ponderado e decidido: já está a ser. A questão é definirmos os nossos próprios limites em cada uma dessas áreas de actuação. É um debate complexo que implica decisões sensatas e apoio político amplo. Estamos a viver uma fase absolutamente existencial para a Europa.
Investigador IPRI-UNL, analista de política internacional
© Jornal de Negócios, 16 de Novembro de 2015. Republicado com permissão.