As recentes medidas fiscais aprovadas em Conselho de Ministros – o Regime de IVA de Caixa e a Lei que impõe a redução dos prazos de pagamento a fornecedores, foram matéria de análise num Encontro promovido pela ACEGE, que reuniu o Bastonário da Ordem dos TOC com um fiscalista e uma economista. Ambas as medidas são primeiros, mas importantes passos, para quebrar o ciclo vicioso de um Portugal “mau pagador” e vêm, na actual conjuntura, aliviar os esforços de tesouraria e a falta de financiamento das empresas A ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores, promoveu a 10 de Julho, em Lisboa, um Encontro dedicado à análise da importância das recentes medidas fiscais aprovadas em Conselho de Ministros: o Regime de Contabilidade de Caixa em sede de IVA e a Lei relativa aos atrasos de pagamento nas transacções comerciais. O primeiro, aprovado em Maio, é um regime especial e facultativo que permite a todas as empresas que tenham um volume de negócios anual até 500 mil Euros retardar para o momento do efectivo recebimento a entrega do IVA que liquidam aos seus clientes, até um prazo máximo de 12 meses (isto é, esperar pelo pagamento de uma factura sem terem de pagar o correspondente IVA ao Estado, enquanto no regime geral do IVA os sujeitos passivos são obrigados a entregar ao Estado o imposto que liquidam aos seus clientes, independentemente de o terem conseguido cobrar). O novo regime entrará em vigor no último trimestre de 2013. A segunda resulta da transposição, através do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, da Directiva Europeia 2011/7/EU, que estabelece medidas contra os pagamentos em atraso, impondo a redução dos prazos de pagamento a fornecedores: a 60 dias, entre empresas privadas, ou entre 30 a 60 dias, entre empresas públicas e outros organismos estatais. E entrou em vigor no dia 1 de Julho. Reunindo três reconhecidos especialistas na matéria, o Bastonário da Ordem dos TOC (Técnicos Oficiais de Contas), António Domingues Azevedo, o fiscalista e partner da Deloitte, Afonso Arnaldo e a Economista Sofia Santos, o Encontro visou dar a conhecer as implicações que estas medidas terão no tecido empresarial português, como se sabe, constituído maioritariamente por PME.
Na presença do seu secretário-geral, Jorge Líbano Monteiro, a Associação Cristã lançou assim, mais uma vez, a discussão sobre um tema que vem defendendo nos últimos três anos, no âmbito do Programa AconteSer e dos temas da Gestão Responsável: o cumprimento do pagamento atempado a fornecedores como medida essencial para aliviar o esforço de tesouraria das PME, e a adopção de medidas para a melhoria da gestão de cobranças e para o combate aos problemas de liquidez e de falta de financiamento destas empresas, os quais têm vindo a causar ‘estrangulamentos’ em algumas delas, agravados pela actual conjuntura económica do País. Sob o mote “O IVA de Caixa e a obrigatoriedade de pagar a fornecedores em 60 dias – Qual será o efectivo impacto na Economia”, os especialistas analisaram todo o contexto em que surgem as novas medidas fiscais, e debateram as principais implicações que as mesmas poderão ter para as empresas, matéria de interesse para os gestores em geral, porquanto é ainda bastante desconhecida, segundo indica o último Barómetro do Acege e se conclui, também, neste Debate. IVA de Caixa obriga a exigir recibo
Embora pouco antes de o IVA ser introduzido, o imposto que mais rendia no País ser o imposto profissional (IRS e IRC), que em 1985 rendia 394 milhões de Contos, “logo que o IVA entrou em vigor, em 1986, triplicou este montante”, com bastante sucesso. “Este é um imposto que tem uma característica de neutralidade, na medida em que permite deduzir o imposto suportado a montante, e só se paga a diferença entre o IVA suportado a montante e o IVA liquidado a jusante. Isto no pressuposto de que as operações que estão na base da liquidação do IVA são operações que fecham o seu ciclo antes do termo do prazo do cumprimento da obrigação”. Ora, se o IVA passa a funcionar como um imposto financeiro, isto é, se uma pessoa não recebeu do seu cliente o valor do imposto, mas “se vê na contingência de ter de pagar o IVA que liquidou, facturou aos seus clientes e não recebeu”, então perde essa característica de neutralidade, conclui o Bastonário. O responsável máximo pela OTOC destaca a “grande incidência” que este imposto tem nas grandes superfícies que “recebem em cash o que vendem, fazendo um encaixe de tesouraria do IVA incidente sobre os produtos que cobram aos seus clientes no caixa, o que na sua opinião “pode perverter a própria Lei”. É ainda importante sublinhar que “não foram tomadas medidas de salvaguarda no sentido de garantir a pureza de funcionamento da Lei”, diz. Domingues Azevedo defende mesmo que há muitas PME que só sobrevivem pelas características dos seus produtos, ou pela tradição da sua marca “se estiverem ligadas a estas grandes superfícies”. O fiscalista Afonso Arnaldo explicou então que uma das questões apontadas neste Regime de IVA “é a sua grande inflexão face ao três regimes de Caixa” que estão actualmente em vigor (para os sectores das Obras Públicas, Transportes e Cooperativas Agrícolas), no sentido de evitar que os clientes optam por apenas comprar aos fornecedores que queiram ficar fora do Regime e não que aos que escolhem integrá-lo, temendo “ter nisso uma desvantagem”. Em suma, importa reter que no novo Regime de Caixa, o IVA constante da factura de um fornecedor que por ele opta pode ser deduzido pela empresa cliente, independentemente de esta o ter pago. “O que está contido no Regime é a impossibilidade de as empresas (com uma facturação anual de, no máximo, 500 mil Euros) que optaram segui-lo poderem receber o IVA das facturas dos seus fornecedores, enquanto não pagarem essas facturas. Portanto, é uma questão “de fazer as contas”, conclui, acrescentando: devo dizer, aliás, que uma das críticas ao Regime é esta obrigação de que todos os operadores de mercado passem a ter sempre disponível a emissão de recibo, porque se um dos seus clientes for um sujeito passivo dentro deste Regime, ele só poderá deduzir o IVA se estiver na posse de um recibo. Certo é que “a exigência de recibo é e sempre foi uma obrigação legal”, como lembra o Bastonário, para quem esta é uma questão que não se pode ignorar. Em todos os casos, trata-se, no seu entender, de uma importante medida que “venceu uma barreira que se dizia não ser possível ultrapassar”.
Melhorar gestão de tesouraria Mas que impacto poderá afinal ter o IVA de Caixa nas PME, tratando-se de um regime facultativo? Para Sofia Santos este regime, que “não vem necessariamente promover o acesso a financiamento”, irá permitir que as empresas melhorem a sua gestão de tesouraria. E “indirectamente essa melhoria permite aumentar algum acesso a financiamento, porque no passado teriam de ir pedir ao sector financeiro, para conseguir pagar o IVA liquidado”. Para a economista, “é esperado um impacto positivo nas empresas que adiram ao regime”, porque “um dos maiores estrangulamentos das empresas são os atrasos nos pagamentos, já que Portugal é um dos países europeus onde se demora mais a pagar, o Estado é o pior pagador comparativamente aos outros países, e, entre empresas, depois de cumprido o prazo de pagamento das facturas, “espera-se em média mais dois meses” (havendo casos conhecidos em que as empresas tiveram de esperar seis meses ou até mesmo um ano, alerta). Quanto ao limite de 500 mil Euros de volume de negócios imposto na adesão ao novo regime, Sofia Santos considera que “é melhor do que nada, mas possivelmente limita o potencial desta medida”, embora abranja “uma quantidade significativa de empresas”. Como esclarece Afonso Arnaldo, “os cálculos estão feitos e este limite abrange 85% do tecido empresarial português”.
Por outro lado, a economista teme o desconhecimento desta medida por parte da maioria das microempresas e PME nacionais, apesar da divulgação que teve nos meios de comunicação: “não posso prever a adesão que o regime terá, mas acredito que as empresas que souberem da sua existência e que tiverem uma facturação dentro do limite exigido vão querer aderir”. Relativamente ao interesse na adesão ao IVA de Caixa, o Bastonário da OTOC defende que “quanto mais elevado for o valor acrescentado da empresa, mais interesse haverá em aderir ao sistema “ (pois com este regime a empresa acaba por suportar apenas o valor que está na base, em caso de incumprimento, diz). Neste ponto, Afonso Arnaldo ressalva que “ninguém deve aderir ao regime sem olhar primeiro a uma análise das suas contas. Pode ser sobre o último ano ou até sobre os últimos dois ou três meses, se não tiver tempo ou capacidade para mais. O importante é pensar: se eu estivesse no regime como é que a minha actividade teria funcionado mês a mês. Com vista a concluir se será vantajoso aplicá-lo no seu caso. Esta é a minha recomendação”, afirma o fiscalista. Corroborando a sua preocupação face à falta de publicitação do Regime, Afonso Arnaldo sugere que sejam os TOC a fazer alguma ‘educação’ sobre esta matéria, levando aos empresários a informação de que existe este novo regime: “é muito importante manter os TOC bem informados, a fazer estas contas e a propor, eventualmente, aos seus clientes o novo regime”. Um regime que incentiva o bom pagador Concordando, Sofia Santos destaca que este é um regime que “está ao lado das empresas que geram maior valor para o País, que pode catalisar os negócios de maior valor acrescentado. Ora, este regime não resolve, por si, o problema dos atrasos no pagamento das facturas, mas “premeia aqueles que têm os pagamentos em dia”, insiste o fiscalista, e incentiva a obrigatória emissão de recibo, contribuindo para o combate à fraude fiscal, no que à “grande fuga ao IVA” diz respeito, adianta então o Bastonário. Por isso mesmo, e “independentemente das análises que possamos fazer”, para Domingues Azevedo venceu-se um tabu com esta lei. Embora a Lei dos pagamentos em atraso não seja uma novidade – há cerca de seis anos a Comissão Europeia aprovou uma Directiva sobre esta matéria que nunca chegou a ser aplicada em Portugal, como recorda, certo é que a Directiva 2011/7/EU foi já transposta para Portugal por Decreto-Lei, e portanto, “à partida, é para ser cumprida”, espera Sofia Santos. Antes de mais, pagar atempadamente “é uma questão cultural”, defende Afonso Arnaldo. Consequentemente, a eficácia da nova Lei depende da existência “de algum mecanismo penalizador em paralelo”, alerta Domingues Azevedo. Em 2012, segundo a Intrum Justitia, o número de facturas que não foram pagas em Portugal é de seis mil milhões. Este valor representa cerca de 4% do PIB. Como conclui Sofia Santos, “foram serviços realizados, facturas emitidas que não foram pagas. O que significa que este montante foi retirado da economia e que existem 6 mil milhões nas contabilidades das entidades que estão lá ‘a haver’”. Também um estudo feito pelo professor Augusto Mateus em 2011 estima que, se no primeiro ano da nova Lei as empresas privadas cumprissem o pagamento a 60 dias, o PIB nesse ano aumentava 3% e criavam-se 120 mil postos de trabalho. E “estas contas não abrangem o Estado”, nota Sofia Santos, concluindo: “mesmo considerando uma margem de erro, é significativo!” Portanto é fácil perceber que “não pagar é realmente um problema cultural. Mas pior, ensina-se nas escolas de Gestão, nas áreas de análise financeira, que devemos pagar aos nossos fornecedores o mais tarde possível. E que devemos exercer o maior poder possível sobre os nossos fornecedores, para termos preços mais baixos… Imagine-se se toda a gente fizer isto, num mercado como Portugal, que não tem muitas grandes empresas”, diz. A economista acredita hoje, como há sete anos atrás, “quando se começou a discutir a questão do IVA de Caixa”, que as empresas querem praticar uma cultura de pagamentos atempados, só que muitas “não conseguem”.
E facilmente se gera “um ciclo vicioso, que alguém vai ter de quebrar”, como explica o Bastonário: “o ciclo está viciado e é vicioso – não me pagam a mim, eu não pago aos outros. Para ser quebrado, ou se criam medidas que realmente o desincentivam, como um sistema simples penalizador dos incumpridores, por exemplo, ou alguém terá de dar o exemplo”. Sendo o Estado a maior empresa do País, não deverá ser ele a dar o exemplo? A pergunta impõe-se e a resposta é consensual: “o exemplo tem de partir, em particular, de quem faz a gestão da causa pública”, afirma Domingues Azevedo. “Pelo menos o Estado vai ter de cumprir o que está definido na Lei. Ele é que a aprovou e é ele o legislador. Tem de ser cumpridor”, reforça Afonso Arnaldo, admitindo contudo que na prática não é isso que sucede, muitas vezes. Já Sofia Santos sugere que também as empresas que são cotadas em Bolsa deveriam dar esse exemplo, lembrando que, afinal, “para o serem, têm que ter alguma autonomia financeira e lucro”. A Lei que promove os pagamentos atempados é aplicável desde o dia 1 de Julho, quando entrou em vigor, mas “somente aos contratos celebrados a partir dessa data”. Nestes contratos, como nos anteriores, sempre que não se verifica o cumprimento do prazo acordado, está prevista a aplicação de uma taxa de juro, actualmente de 7,75%, e que é definida duas vezes por ano (em Janeiro e em Julho). Por outro lado, está prevista a possibilidade de cobrança de 40 euros, “que são imediatos”, pelo processo de atraso no pagamento da factura, explica o fiscalista. Finalmente, pode-se ainda pedir uma indemnização adicional a esses 40 euros, na medida de custos gerados com advogados, solicitadores, etc. para fazer a cobrança dessa dívida. E mais a Lei não diz. O resto, prende-se com a mudança de atitudes com vista à prática de uma cultura de cumprimento. A pensar nisso, a União Europeia está a desenvolver uma campanha de divulgação da Directiva que impõe a redução dos prazos de pagamento a fornecedores, e que chegará a Portugal no 1º semestre de 2014. |
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Jornalista