A afirmação é de Muel Kaptein, reconhecido especialista em ética empresarial e orador convidado para a conferência anual “Ética e Trabalho Híbrido”promovida pelo Fórum de Ética da Católica Porto Business School. Em entrevista ao VER, que teve como base o mesmo tema, Kaptein analisa os prós e os contras deste novo modelo de trabalho, o qual considera benéfico para a cultura organizacional desde que seja bem implementado. Caso contrário, são vários os perigos que o mesmo pode originar, como por exemplo a diminuição da transparência no seio das empresas e o aumento significativo das fraudes em muitas organizações
POR HELENA OLIVEIRA

Professor de Ética Empresarial na Rotterdam School of Business Erasmus University e partner na KPMG onde é responsável pela unidade de Integridade & Compliance, o holandês Muel Kaptein acredita veementemente que a ética faz uma diferença significativa na vida das pessoas e na performance organizacional. Tendo como propósito ajudar as organizações a melhorar as suas culturas e politicas no que à ética diz respeito, afiança ainda que a definição e mensurabilidade desta última não só a torna mais gerível, como também passível de ser melhorada e aperfeiçoada. 

Autor de vários livros e de centenas de papers, Kaptein desenvolveu igualmente ferramentas e métodos inovadores para medir a ética e a integridade nas organizações. O seu conhecido Termómetro da Integridade, um questionário desenvolvido como parte do seu doutoramento e que tem como objectivo medir o conteúdo ético de várias entidades, tem sido utilizado em todo o mundo. 

Em entrevista ao VER, considera o tema da ética e do trabalho híbrido como algo ambivalente, ou seja, como um misto de benefícios e malefícios que depende significativamente da forma como o mesmo é implementado e gerido nas organizações.

Qual o impacto do trabalho híbrido na cultura das organizações?

O impacto é enorme. E vejo várias organizações nas quais a sua cultura melhorou substancialmente devido à introdução do trabalho híbrido. Todavia, o inverso também acontece. Ou seja, existem muitas organizações nas quais a cultura se deteriorou com a adopção do trabalho híbrido. E a explicação para esta diferença reside na forma como este é implementado.  

Na apresentação que fez na conferência “Ética e Trabalho Híbrido” promovida pelo Fórum de Ética da Católica Porto Business School, refere-se ao modelo Corporate Ethical Virtues  ( Virtudes Éticas Empresariais – CEV na sigla em inglês)  que foi por si desenvolvido em 2008. Existem algumas diferenças significativas nos princípios então estabelecidos quando falamos agora em trabalho híbrido?

O modelo das Virtudes Éticas Empresariais contém critérios que uma boa e excelente cultura de uma organização deve satisfazer. E esses critérios incluem, entre outros, a importância da clareza de valores e normas, a conduta exemplar dos gestores, a discussão de dilemas e o espaço necessário para se abordar comportamentos. Todavia, o trabalho híbrido pode influenciar positivamente, mas também negativamente, estas dimensões da cultura. Por exemplo, pode dar às pessoas uma maior responsabilidade pessoal ao determinar quando e como trabalham. Mas também pode reduzir o sentido de responsabilidade caso os empregados acreditem que não estão a ser supervisionados, que estão agora por sua conta e risco e que existe uma menor ligação/vinculação com a sua organização, na medida em que o trabalho é feito de forma mais remota”.

Estamos habituados a assumir que os locais de trabalho presenciais são mais amistosos e mais propícios à cultura organizacional do que os virtuais. Contudo, e como sabemos, existem igualmente ambientes presenciais tóxicos. Poderá o trabalho híbrido promover espaços físicos de trabalho mais saudáveis?

Sim, na verdade pode promover espaços físicos de trabalho mais saudáveis. Em muitas organizações, o número de incidentes de assédio sexual, abuso de poder e outros comportamentos transgressores, diminuíram significativamente graças a mais práticas de trabalho híbrido. Não só a oportunidade é mais reduzida, pois as pessoas estão menos frequentemente juntas, como é mais fácil evitarem-se mutuamente, sendo igualmente mais simples distanciarem-se umas das outras e colocar as coisas em perspectiva.

Ao mesmo tempo, o comportamento inadequado ocorre agora com mais frequência noutros locais. Por exemplo, os empregados, por razões de trabalho, visitam-se agora com maior frequência, seja nas suas casas ou em saídas com os colegas de equipa. E se, no caso das festas, for servido muito álcool e se estas continuarem até altas horas da noite, podem ocorrer comportamentos indesejáveis”.

Na sua opinião, as relações online oferecem mais protecção e maior segurança aos whistleblowers? Ou ocorre o oposto?

O trabalho híbrido tem efeitos diferentes no whistleblowing [denúncia de irregularidades]. Conduz a menos delações, porque os empregados observam menos o comportamento uns dos outros quando trabalham a partir de casa e podem mais facilmente distanciarem-se do comportamento antiético observado, desligando literalmente o computador. Mas, ao mesmo tempo, o trabalho híbrido pode dar origem também a mais denúncias na medida em que os empregados começam a olhar para o trabalho numa perspectiva de moralidade privada, ficando assim mais despertos para encontrar algo que consideram inaceitável no trabalho. Em simultâneo, e ao discutirem o comportamento de trabalho observado com aqueles que consigo vivem, podem sentir-se mais apoiados para denunciar uma transgressão. O que também temos vindo a testemunhar é que as pessoas que estão em casa a trabalhar sentem-se mais à vontade para denunciar, pois não têm de se preocupar que um colega ou chefe esteja a ouvir. 

Sabemos que comportamentos não éticos são frequentemente observados nas organizações. É possível esperar alguma alteração, para melhor ou para pior, numa força de trabalho híbrida?

Na verdade, receio que o trabalho híbrido conduza a mais comportamento antiéticos. E a razão para este temor deve-se ao facto de a transparência nas organizações estar a diminuir exactamente devido ao mesmo. As pessoas que querem fazer mal podem fazê-lo mais facilmente porque ninguém está a ver. Por exemplo, a fraude tem aumentado significativamente em muitas organizações após a introdução deste modelo de trabalho. 

Irá o trabalho híbrido desafiar o nosso foco no sucesso exclusivamente medido pelo cumprimento dos nossos projectos de trabalho ou, pelo contrário, far-nos-á concentrar no que realmente importa na vida? Será que irá contribuir para uma mudança mais profunda na relação entre o ser humano e o trabalho?

A esse respeito sinto-me mais positivo. O trabalho híbrido tem o potencial para proporcionar um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional, na medida em que as pessoas estão em casa quando precisam de estar lá. Ao mesmo tempo, não nos podemos esquecer que existem muitas profissões nas quais trabalhar remotamente não é possível, de que é exemplo a enfermagem. Adicionalmente, o inverso também pode acontecer. Trabalhar a partir de casa significa que o trabalho invade crescentemente o nosso lar e a nossa vida privada, correndo assim o risco de estarmos sempre ou quase sempre preocupados e ocupados com o mesmo. 

Estando consciente de que esta é a “pergunta que vale um milhão de dólares”, o que leva as organizações bem-intencionadas a enganar os seus clientes, empregados e accionistas? Ou porque é que as pessoas boas às vezes fazem coisas más?

Todos os tipos de pesquisa que fiz reiteram que a cultura de uma organização explica em grande parte o comportamento antiético e ético de gestores e trabalhadores. E é apenas de forma limitada que determinado comportamento pode ser explicado pela integridade individual das pessoas. Depende substancialmente da capacidade de uma organização criar uma cultura na qual, por exemplo, os valores e as normas são claros, os dilemas podem ser discutidos e onde exista espaço para falarmos uns com os outros. Desejo isto para cada organização. E, claro, também para todas as pessoas no seu trabalho.

Editora Executiva