POR MÁRIA POMBO
Portugal é o 24º país da Europa com a maior sobrelotação dos estabelecimentos prisionais, entre 56 países analisados. Ocupando a 76ª posição a nível global, entre 221 nações, o País apresenta uma taxa de ocupação prisional de 137 prisioneiros por cada 100 mil habitantes. Estes são os dados apresentados pelo World Prison Brief (WPB), uma plataforma que reúne e analisa dados sobre estabelecimentos prisionais – como o volume de ocupação, as características da população e também outras questões, como as condições de saúde e as taxas de homicídio e suicídio – a nível mundial. Os dados mais recentes apurados por este organismo são de Setembro do presente ano e indicam que o nosso país tem actualmente mais de 14 mil presos em prisão efectiva e cerca de 2160 em prisão preventiva. Embora revele oscilações, o mesmo documento indica que a taxa de reclusos efectivos tem vindo a aumentar desde 2008, após vários anos em que se verificou uma tendência decrescente no que a este tema diz respeito.
Complementarmente, e mais preocupantes ainda, são os dados lançados pelo Conselho da Europa, no ano passado. De acordo com este organismo e há cerca de um ano, Portugal registava cerca de 50 mortes por cada 10 mil reclusos – um valor que quase duplicava a média europeia, que era, à data, de 26,3. Apesar de as doenças (provocadas, em grande parte, pela falta de higiene verificada em vários estabelecimentos) e de os suicídios serem apontados como as principais causas de morte nas prisões portuguesas, o mesmo organismo revelou também que o maior número de homicídios, verificado em 2015, contribuiu para que este fosse considerado como o terceiro principal factor a ter em conta, em Portugal, no que à mortalidade da população reclusa diz respeito. Este facto coloca, assim, o nosso país ao lado de vários outros da Europa de Leste (nomeadamente da Ucrânia e da Bulgária), os quais registam uma igualmente elevada taxa de mortalidade nas cadeias.
Vendo-se sem apoios e sem um plano de reintegração social, muitos reclusos e ex-reclusos consideram a possibilidade de voltar a ter uma vida normal como uma realidade longínqua e inalcançável, acreditando que mais fácil do que procurar forças para encontrar a luz ao fundo do túnel escuro onde acabam por se deixar ficar, será provocar a própria morte ou voltar ao mundo da criminalidade. Os motivos de detenção podem ser diversos, e a pena é o preço que pagam pelo crime que cometeram. Contudo, as dificuldades que encontram “cá fora” podem ser o seu maior pesadelo, tendo em conta o julgamento constante de que muitos são alvo e a quantidade de portas que acabam por se fechar.
Conseguir ter novamente uma rotina, um emprego e um salário, num ambiente saudável e onde impere a confiança, e, no fundo, voltar a fazer parte da sociedade, na qualidade de cidadãos livres e plenos de direitos, são alguns dos principais objectivos – e também dificuldades – de muitos reclusos e ex-reclusos. E é por isso que precisam de pessoas que sejam capazes de lhes estender a mão, promovendo a sua reabilitação e reintegração social. Dar uma oportunidade em termos de trabalho, despender algumas horas para motivar o regresso às aulas ou estimular a valorização pessoal através da descoberta de competências “escondidas” são algumas formas de ajudar esta população enfraquecida e desacreditada.
Para Peter Frankental, da Amnistia Internacional (AI), as oportunidades de trabalho “podem [mesmo] ter um papel positivo na reabilitação dos prisioneiros”. Complementarmente, o director do programa de relações económicas da AI explica que “em nenhumas circunstâncias, os interesses comerciais devem prevalecer sobre os seus direitos”. Contudo, a realidade tende a mostrar que existe uma – grande – diferença entre o ideal e o real.
O caso de um país – controverso – cuja população reclusa é muitas vezes aproveitada pelas empresas como mão-de-obra barata é, por exemplo, o México, que ocupa a sétima posição a nível mundial no índice do WPB, com cerca de 250 mil reclusos – 204 por cada 100 mil habitantes. Neste país, para além de existirem várias iniciativas de apoio aos reclusos, são também diversas as empresas que recorrem a esta comunidade para exercer algumas tarefas mais elementares e mecânicas. E as vagas que as organizações disponibilizam para este tipo de população são, na mesma medida, criticadas por uns e elogiadas por outros, tendo em conta que, regra geral, se trata de trabalho mal remunerado e que facilmente é considerado exploração, mas que ao mesmo tempo permite a valorização pessoal dos prisioneiros, ocupando o muito tempo livre de que dispõem e dando-lhes esperança para que, um dia cá fora, possam continuar a exercer a função que exercem na prisão.
De bons exemplos pode estar Portugal cheio
Portugal é ainda um país “pequenino” no que respeita à existência de respostas sociais que apostem na reabilitação e reintegração deste segmento populacional. As oportunidades que existem são geralmente promovidas por IPSS ou grupos de voluntários, os quais formalizam protocolos com o Estado e com alguns estabelecimentos prisionais, no sentido de apoiar a reintegração social de reclusos e ex-reclusos, através de formações, (ainda parcas) oportunidades de trabalho e outras actividades. Dar aos reclusos a oportunidade de investir nas suas qualificações académicas e promover, junto destes, a vontade de desenvolver algumas aptidões e descobrir novas paixões são os principais objectivos da maioria das iniciativas que apoiam a comunidade reclusa. Para além das componentes teóricas e práticas (essenciais, por exemplo, para aprenderem um ofício), estes projectos devolvem a esta população marginalizada a auto-estima e a esperança num futuro melhor e longe da criminalidade, essenciais para a reintegração social.
Um projecto que tem sido bastante mediatizado é o Reklusa, que nasceu, em 2010, como resultado da vontade de duas voluntárias do estabelecimento prisional de Tires, constituindo um dos melhores exemplos, em Portugal, de como é possível recorrer à população reclusa para criar uma marca, beneficiando os trabalhadores (que ganham um vencimento), a própria marca (que aliás tem vindo a crescer) e também a sociedade. Tendo sido constituída IPSS em 2012, esta organização demonstra que, de facto, é possível apostar no desenvolvimento sustentável da sociedade, colocando o factor humano em primeiro lugar.
Proporcionar à população prisional as ferramentas necessárias para a tornar mais confiante e aumentar a sua autonomia e participação social, apostar na formação com vista à aquisição de novas competências e aptidões, e gerar oportunidades de emprego através da venda de artigos são os principais objectivos desta organização. A mesma aposta no fabrico de malas únicas e originais, as quais são “produzidas de forma artesanal e criteriosa por reclusas de diversos estabelecimentos prisionais do País”. As promotoras deste negócio social acreditam na “força e importância de segundas oportunidades”.
Também com o objectivo de incentivar a população reclusa a ser mais activa e a descobrir talentos e gostos escondidos, mas numa outra vertente, a CULTIV – Associação de Ideias para a Cultura e Cidadania – desenvolve sessões de leitura em diversos estabelecimentos prisionais, nomeadamente em Bragança, Lamego, Grândola, Ponta Delgada e Lisboa. Através da sua iniciativa A poesia não tem grades, esta organização pretende promover a experimentação artística e contribuir para o desenvolvimento intelectual e pessoal da população prisional, acreditando que “a literatura é uma boa ferramenta no processo de reabilitação de reclusos”.
Em 2015, os promotores deste projecto lançaram um desafio a diversos autores portugueses (como Afonso Cruz, Alice Vieira, André Gago ou Filipa Leal, entre outros), pedindo-lhes que, com base na palavra “dentro”, escrevessem o que lhes ia na alma, de forma completamente livre e sem critérios. O desafio foi aceite e resultou no livro O lado de dentro do lado de dentro, o qual reúne assim um conjunto de textos inéditos cujo resultado das vendas permite a continuidade deste projecto que leva a poesia à população reclusa e lhes permite sentir a liberdade de uma outra forma.
Seguindo a ideia de incluir através da arte – neste caso, do canto – o projecto Ópera na Prisão tem conseguido marcar a diferença na ‘Prisão Escola de Leiria – Jovens’, trabalhando competências pessoais e cívicas, como a auto-estima, o auto-controlo e o trabalho em grupo de jovens que, por diversos motivos, vêem a sua vida em stand by durante uns tempos. Conscientes de que nenhum dos reclusos é cantor, os promotores do projecto desenvolvem, junto de cerca de 50 detidos, aulas de canto, particulares e em grupo, onde estes podem aprender a vocalizar e, mais importante, onde tomam consciência de que é mesmo possível descobrir talentos e transformar o terrível em incrivelmente bom. Facilitar a reintegração destes jovens nas suas comunidades é objectivo primordial desta iniciativa, a qual tem vindo a ser desenvolvida pela Sociedade Artística e Musical dos Pousos.
Na qualidade de representante, em Portugal, da Prison Fellowship International (considerada a maior associação do mundo em termos de voluntariado prisional), a associação Confiar desenvolve vários projectos de apoio a reclusos, ex-reclusos e vítimas, contribuindo, tal como os projectos anteriormente referidos, para a dignificação pessoal e integração social desta população. Entre as suas diversas iniciativas, o projecto Building Bridges (que, em tradução livre, significa Construindo Pontes) pretende promover “diálogos restaurativos” – ou construir pontes – entre agressores e vítimas ou famílias, dando, por um lado, a possibilidade aos primeiros – os ofensores – de ganhar uma maior consciência relativamente aos seus actos, e aos segundos – vítimas e familiares – a oportunidade de conhecer diversos agressores (não os seus), fazendo-lhes perguntas e tentando, com isso, encontrar paz e reconciliar-se com a vida.
Para além destas e outras iniciativas que visam a reinclusão da população prisional e que pretendem, das mais variadas formas, devolver aos agressores a auto-estima e a dignidade, mostrando-lhes que a vida não tem que acabar no momento da condenação, existem diversas outras organizações sociais – como a associação O Companheiro ou a APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso – que têm a missão de apoiar e motivar a população reclusa e ex-reclusa no processo de reintegração, facilitando também a resolução de conflitos a nível familiar, laboral e comunitário, e tentando prevenir a existência de situações de reincidência, através de apoio e acompanhamento jurídico e clínico.
Quando um quer, dois ou três são capazes de fazer (e vender)
“Lá fora”, e à semelhança da portuguesa Reklusa, assiste-se à multiplicação de negócios sociais que têm o objectivo de apoiar a comunidade prisional através do fabrico e venda de produtos. Entre os variados exemplos, salientamos a PrisonArt, com sede no México e reconhecida mundialmente pela sua irreverência, a Not Just A Label, que tem percorrido o mundo e é conhecida em mais de 110 países, e a Fine Cell Work, que tem sede em Londres e trabalha directamente com prisioneiros de 30 estabelecimentos prisionais britânicos, comercializando os seus produtos online, para qualquer parte do mundo.
As malas, os sapatos, os acessórios e os objectos de decoração são as principais peças que fazem parte do portfólio destes negócios, e a venda dos mesmos, em boutiques ou através de plataformas online, permite que os trabalhadores reclusos e ex-reclusos tenham o seu próprio ordenado e consigam superar as adversidades que a sua condição exige. Os produtos primam pela qualidade elevada das matérias-primas e dos acabamentos, e também pela originalidade do design e singularidade das peças, visto que são produzidos manualmente, o que impede a produção de dois artigos iguais. Todas estas características transformam as peças em produtos que são comercializados a preços pouco acessíveis a todas as bolsas.
Os projectos apresentados demonstram que promover, junto da comunidade prisional, a ocupação de tempo livre através de trabalhos, aulas ou outras actividades, pode ser benéfico para todos, e a todos os níveis.
Primeiramente, os benefícios recaem sobre os próprios reclusos e ex-reclusos, que têm a possibilidade de voltar a acreditar nas suas próprias capacidades, melhorando a sua auto-estima e contactando com pessoas que não os excluem nem rejeitam à partida; depois, também os negócios e iniciativas saem valorizados, porque cumprem a sua missão de apoiar pessoas que necessitam, tendo ainda a possibilidade de crescer e gerar lucro, chegando também a mais pessoas; por fim, e talvez mais importante, ganha a sociedade que, ao invés de ter reclusos que assumem o papel de “parasitas” e que em nada contribuem para a mesma, passa a contar com pessoas que, estando em idade activa e tendo competências variadas, podem ter um papel no para crescimento económico, quer através da força de trabalho, quer através dos conhecimentos que vão adquirir nas formações e nos grupos que frequentam e que lhes podem ser úteis também após o fim das penas.
Jornalista
Parabéns, Ana Pombo, pelo ótimo artigo e pela investigação associada.
Temos outras novidades para lhe dar, nomeadamente a criação do Observatório e Centro de Competências em Justiça Restaurativa, em parceria com o ISCSP e o primeiro Centro de Apoio Familiar dedicado a filhos, familiares e vítimas de Reclusos e que conta com o apoio da C.M. de Cascais.
Ao inteiro dispor,
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