POR HELENA OLIVEIRA
Podem as empresas ignorar a desigualdade e continuarem com o seu negócio de criação de riqueza, deixando para os governos a tarefa de a redistribuir? Poderão estas continuar a deixar-se guiar pelo famoso princípio de Milton Friedman que dita que “a principal responsabilidade social das empresas é a de gerar lucro”? Ou dever-se-ão estas considerar como entidades sociais, onde os conceitos de equidade e justiça devem predominar?
As interrogações não são novas. Mas o contexto político e económico está, pelo menos a tentar, a apertar as regras no que respeita aos chorudos salários e benefícios dos gestores. O conceito “say on pay” – que assenta na possibilidade legal de os accionistas terem, activamente ‘uma palavra a dizer’ sobre os montantes das compensações dos seus executivos, está a disseminar-se um pouco por todo o mundo. Regras mais duras no diferimento do pagamento dos bónus ou o mecanismo de clawback – que pressupõe que, em caso de dolo, negligência ou crime, uma parte desse mesmo bónus seja retirada – estão a ultrapassar as fronteiras do sector bancário. E a obrigação, nos Estados Unidos e por parte da SEC, de publicação do pay ratio – ou do montante que, face ao salário médio dos trabalhadores, é pago a mais aos executivos -, está também a encorajar os conselhos de administração a pensarem de uma forma mais abrangente sobre o que significa realmente “justiça salarial”.
Pelo menos é o que acredita a PricewaterhouseCoopers (PwC), em conjunto com a London School of Economics (LSE), quando decidiu avaliar a percepção de mais de mil executivos de topo, de todo o mundo e em sectores variados, sobre os princípios da justiça distributiva. Os resultados deram corpo ao estudo The ethics of pay in a fair society: what do executives think e indicam que os ideais de justiça estão ainda muito longe da realidade.
Para a consultora, e tendo em conta que “justiça” é um conceito político e moral de peso, com o qual as empresas têm de lidar com “pinças”, a boa notícia é que os filósofos há muito que o têm vindo a debater e não existe falta de material para o tentar compreender.
E foi por isso que em colaboração com Alexander Pepper, Professor de Práticas de Gestão na London School of Economics and Political Science (LSE), uma sumidade na matéria (e que o VER entrevista nesta edição) e Susanne Burri, Professora Assistente no Departamento de Filosofia, Lógica e Método Científico também na afamada escola de negócios, a PwC desenvolveu este estudo no sentido de confrontar os executivos seniores com os princípios subjacentes ao conceito em causa.
[quote_center]“É correcto compensar os executivos com um nível muito elevado desde que exista criação de valor para todos os stakeholders”, Director, Educação, EUA[/quote_center]
A pesquisa explora as atitudes relativas à justiça e à justiça distributiva tanto nas empresas, como na sociedade em geral, com o objectivo de ajudar as organizações a desenvolver uma nova linguagem sobre a temática, em conjunto com os seus empregados, no sentido de se construírem estruturas de remuneração que sejam justas e equitativas e que vão ao encontro não só das expectativas da força laboral como da sociedade enquanto um todo.
O VER apresenta de seguida os principais resultados do estudo, os quais são extensamente comentados na entrevista já referida com Alexander Pepper, presente nesta edição especial.
Os seis princípios da justiça distributiva e as quatro tribos filosóficas
A literatura no campo da filosofia política que aborda a justiça distributiva é por demais extensa, motivo que levou os responsáveis do estudo a eleger seis princípios por excelência, representando as suas respectivas teorias e avaliando as atitudes dos entrevistados – pedindo-lhes que as priorizem – no que respeita à sua prática “ideal” nas empresas e na sociedade.
Para encorajar os participantes a pensarem de forma mais profunda sobre as questões éticas subjacentes aos princípios da justiça distributiva e como explica o próprio Alexander Pepper, foi-lhes pedido para se imaginarem numa situação similar à “posição original” de John Rawls, um dos mais proeminentes autores de filosofia política e ética. Na sua obra mais conhecida, “A Teoria da Justiça”, esta última concebida como “equidade”, apresenta os princípios básicos que visam instituir uma sociedade com um sistema de cooperação equitativo entre os seus cidadãos e que, através desses mesmos princípios, sejam garantidas as liberdades e igualdades entre eles. De um modo geral, Rawls defende que o homem se insere numa posição original na qual se encontra envolto por um véu da ignorância, ponto a partir do qual é possível a escolha imparcial dos princípios de justiça. O primeiro princípio garante direito igual a liberdades e direitos básicos iguais para todos; o segundo princípio refere-se às desigualdades sociais e económicas, e deve preencher duas condições: primeiro, possibilitar condições de justiça e igualdade de oportunidades e, segundo, proporcionar maior vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade.
[quote_center]“Os empregados fazem o trabalho todo e o CEO recebe todas as recompensas. Se tomarmos conta dos trabalhadores, eles tomarão conta da empresa como se fosse sua”,Gestor Sénior, Retalho, África do Sul[/quote_center]
Assim, e tendo em conta algumas teorias éticas, aos inquiridos foi pedido que “elegessem” aquelas que mais “sentido” lhes fariam, de seguida sintetizadas:
- A teoria do “merecimento justo” [just desert] – ou seja, algumas pessoas merecem receber certas vantagens económicas à luz do seu contributo, esforço, experiência e exigências de determinada função;
- A teoria da igualdade de oportunidades – todos têm de ter o mesmo acesso não discriminatório às posições que trazem consigo benefícios económicos;
- A teoria da suficiência – todos os membros da sociedade deverão ter um rendimento que seja suficientemente elevado para que possam ter uma vida digna;
- A teoria “maximin” ou “diferencial” (também de Rawls), que assenta no princípio de que convém “maximizar ao máximo” o mínimo para todos;
- A teoria da titularidade da justiça [entitlement] de Robert Nozick – que afirma que qualquer que seja o rendimento pago voluntariamente a alguém, este é justo;
- E, por fim, a teoria ética da eficiência, do filósofo canadiano Joseph Heath, que defende que é o mercado que decide o que é justo e que será assim que se criará a maior riqueza para o maior número possível de pessoas.
A primeira grande conclusão que se pode retirar deste inquérito é a de que as visões dos executivos de topo no que respeita à justiça distributiva são multidimensionais e que esta multidimensionalidade aumenta à medida que os entrevistados têm mais idade. Mais de 82% dos executivos “subscrevem” três ou mais princípios de justiça e uma percentagem significativa – 20% – concorda com a totalidade dos seis princípios apresentados. Ou seja, um único princípio não é suficiente para descrever a amplitude das atitudes/percepções humanas, para além de que ser mais justo não significa ser mais igualitário. Adicionalmente, e para se desenvolver um resultado que seja encarado como justo são necessários trade-offs subtis transversais às várias dimensões.
Por outro lado, as atitudes relativas à justiça tanto na sociedade como na empresa são surpreendentemente similares. Ou, e por outras palavras, a ideia de que as empresas criam riqueza e as sociedades a distribuem não gerou concordância nem sequer entre a população mais sénior. As empresas são, e ao invés, consideradas como entidades sociais de pleno direito, ou seja, um microcosmo dos desafios distributivos enfrentados ao nível da sociedade.
Mesmo assim, e como esperavam os responsáveis pelo estudo, quatro “tribos” emergiram das visões distintas relativamente ao “tipo de justiça” que as pessoas esperam da empresa em que trabalham e da sociedade em que estão inseridas.
A primeira, a dos idealistas, acredita que a distribuição da riqueza deverá conduzir a resultados morais. Apesar de os indivíduos deverem ser recompensados de acordo com o seu contributo, todos os membros de uma comunidade deverão ter um rendimento que seja suficiente para que tenham uma vida com dignidade.
[quote_center]“Acredito no pay for performance [pagamento em função do desempenho], pelo contributo, esforço, competência, etc. Aqueles que não querem trabalhar arduamente, fazer sacrifícios ou retirar vantagem das oportunidades não devem ser recompensados da mesma forma que os que estão dispostos a fazer mais”, Executivo de Topo, Produção, EUA[/quote_center]
De forma similar, os “comunitários” elegem como prioridade a necessidade de existir um rendimento suficiente, mas acreditam também na importância da igualdade de oportunidades, ou seja, a de que ninguém deverá ser prejudicado devido às circunstâncias do seu nascimento, por exemplo.
Já os “free marketeers” acreditam que, desde que existam oportunidades iguais, as pessoas com mais talentos merecem receber também mais tendo em conta o seu contributo, sendo que a eficiência do mercado é importante para determinar de que forma os rendimentos devem ser alocados, ou seja, a eficiência económica é um importante princípio distributivo. Por seu turno, ninguém é automaticamente “habilitado” à riqueza.
A última tribo é a dos “meritocratas” que consideram que os indivíduos têm direito aos benefícios económicos devido aos seus esforços e contributos. Tal como os “comunitários”, também acreditam na importância da igualdade de oportunidades e, aos contrários dos adeptos do mercado livre, não crêem que a eficiência seja um critério importante para se avaliar a justiça.
A análise demonstra também que os resultados são consistentes num leque alargado de dimensões demográficas, não existindo diferenças a assinalar no que respeita ao género, território ou nível de rendimentos. O que sugere que as dimensões de justiça e o equilíbrio desejável entre elas se assumem como universais.
Contudo, o indicador “idade” foi o mais diferenciador. Ou seja, os inquiridos com menos de 40 anos ocuparam, de forma significativa, a tribo dos “idealistas” – mais do que qualquer outra faixa etária – e aqueles com idades superiores a 50 anos lideraram, em grande escala, a tribo dos “free marketeers”.
[quote_center]“Um CEO é responsável por todos os riscos. Por que motivo desejaria aceitar um trabalho que o pode levar à cadeia por um salário pequeno?”, Gestor Sénior, Defesa, Reino Unido[/quote_center]
Para os autores do estudo, este resultado é extremamente significativo no actual debate sobre a justiça intergeracional, ou entre a geração X, Y e os baby boomers. As ideias sobre justiça distributiva apresentam algumas diferenças significativas, com a população mais jovem a mostrar-se mais ponderada no que respeita a confiar no mercado para produzir um resultado moralmente desejável, almejando também uma protecção mais forte para os que têm menos posses. Pelo contrário, a geração mais velha é muito mais propensa a ter fé na eficácia dos resultados do mercado. E quanto mais baixo se desce em termos dos grupos de idade dos respondentes – e tendo em conta a justiça distributiva – maior é a probabilidade de se eleger resultados mais socialmente orientados e menos relacionados com as forças dos mercados.
O fosso entre aspirações e realidade
Como seria de esperar, uma coisa é o que as pessoas desejam e outra é a realidade. Entre um quarto a um terço dos entrevistados não consideram que as empresas onde trabalham estejam a “cumprir” os ideais de justiça por eles considerados de importância significativa.
E o mesmo é verdade, ou até “pior”, no que respeita às sociedades. De acordo com a PwC, tudo isto sugere que os cidadãos têm expectativas fortes no que respeita à justiça tanto para as empresas como para as sociedades, as quais muito raramente são satisfeitas. Como comenta também Alexander Pepper, uma das principais conclusões do estudo é exactamente o facto de os executivos de topo inquiridos tenderem a viver em sociedades e a trabalhar em organizações que são geralmente percepcionadas como injustas. E um dos resultados mais marcantes foi o facto de 84% dos respondentes terem elegido a igualdade de oportunidades como um dos principais princípios da justiça distributiva na análise que fizeram da sociedade, mas apenas 37% acreditarem que a sociedade em que vivem é caracterizada por esta mesma igualdade.
[quote_center]“Colocar um limite nas remunerações dos executivos é tristemente necessário. Um conselho de administração não pode correr o risco sério de operar num vácuo moral”, Vice-presidente Sénior, Recursos Naturais, EUA[/quote_center]
Ao nível das empresas e por seu turno, 89% dos executivos validaram a teoria do “merecimento justo”, a qual, recordamos, tem como base a ideia de que existem aqueles que merecem receber certas vantagens económicas à luz do seu contributo, esforço, experiência e exigências de determinada função, sendo que apenas 46% consideram que este princípio é “verdadeiro” nas políticas de remuneração das organizações em que trabalham. Outros princípios com diferenças substanciais entre o desejável e a realidade incluem ainda o da suficiência e o da “maximização do mínimo para todos”. Já os princípios de distribuição com base no mercado são considerados como os mais eficazmente implementados.
Um último resultado a sublinhar diz respeito ao facto dos participantes neste estudo não subscreverem a ideia de que o papel das empresas é o de criar dinheiro e o do Estado o de o distribuir. Ao invés, os respondentes acreditam que as organizações têm uma responsabilidade igual e alargada no que respeita a oferecer uma estrutura de remunerações justa aos seus empregados. Ou seja, as empresas não são vistas como entidades exteriores à sociedade, mas sim parte integrante desta e, consequentemente, com o dever de agirem de forma justa.
E o que devem fazer as empresas?
Se a esmagador maioria dos executivos considera que a justiça distributiva faz parte da missão das empresas, o que é possível fazer para que esta se torne uma realidade que permita uma força laboral mais envolvida, com benefícios para a produtividade e valor de longo prazo?
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- 1 – Desenvolver princípios da justiça
Os conselhos de administração têm de traduzir os principais princípios de justiça e integrá-los na empresa, decidindo quais os que serão melhor adoptados e relevantes para o negócio em causa, para a força laboral e para a cultura organizacional correspondentes. Obviamente que empresas diferentes colocarão pesos distintos nas diversas dimensões percepcionadas, as quais deverão ajustar-se ao propósito, cultura e estratégia de cada uma.
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- 2 – Traduzir os ideais em políticas para as pessoas
Os princípios da justiça deverão ganhar vida através de políticas tangíveis que afectem positivamente as pessoas, como por exemplo a adopção do salário mínimo, a pay-for-performance, medidas que garantam a segurança financeira do trabalhador, igualdade salarial, entre outras. As empresas deverão identificar as políticas concretas que tornarão reais os princípios de justiça aprovados pelos conselhos de administração.
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- 3 – Avaliar e monitorizar
É necessário desenvolver métricas que viabilizem o progresso no sentido da justiça, avaliando-o e monitorizando-o. E estas podem incluir resultados objectivos de que são exemplo as estatísticas de igualdade salarial, mobilidade social na organização, pay ratios, posicionamento no mercado, entre outros. Para os autores, o desenvolvimento de um “painel de justiça” pode ser uma boa forma de responsabilização e de reporte dos princípios da justiça salarial.
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- 4 – Compromisso com os empregados
O estudo identificou as quatro “filosofias de justiça” que as pessoas mais valorizam. Os princípios de justiça mais apropriados para a empresa dependerão das atitudes dos empregados e da cultura organizacional vigente. Assim, é crucial que a gestão de topo se envolva com os trabalhadores para descobrir o que significa para eles o conceito de justiça e utilize posteriormente o seu feedback para refinar os princípios que melhor se ajustem ao desejável.
Editora Executiva