O mundo está feio, os níveis de insegurança e ambiguidade estão cada vez mais elevados e a confiança “no outro” regista o pior resultado dos últimos 30 anos. Entre um conjunto de más notícias, os vários índices globais que medem o desenvolvimento humano ou o progresso social convergem igualmente numa certeza mais do que comprovada: apesar dos avanços tecnológicos, da riqueza acumulada e do grau crescente de conhecimento, os humanos parecem ser cada vez menos capazes de resolver, ou pelo menos minorar, os complexos problemas que assolam a casa em que todos vivemos. Em simultâneo, existe um outro índice pouco conhecido que avalia os países “bons” – os que mas contribuem para o bem comum – e cujo objectivo é convencer os seus governos do óbvio: apenas com cooperação é possível dar os necessários passos em frente rumo a um futuro com… futuro
POR HELENA OLIVEIRA

O último Relatório do Desenvolvimento Humano (RDH) “Tempos incertos, vidas instáveis: moldando o nosso futuro num mundo em transformação”, lançado em Setembro pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), argumenta que camadas de incerteza estão a acumular-se e a interagir para destabilizar a vida mediante formas sem precedentes. E pela primeira vez na sua história de 32 anos este Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que mede a saúde, a educação e os padrões de vida dos diferentes países, diminuiu globalmente durante dois anos consecutivos, regressando aos níveis de 2016 e invertendo, em simultâneo, uma parte do progresso do Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o qual já não era de todo famoso.

Em particular, os últimos dois anos tiveram um impacto devastador para milhares de milhões de pessoas em todo o mundo, na medida em que à crise da Covid-19 se acabou por juntar a guerra na Ucrânia, provocando mudanças sociais e económicas radicais, aumentos maciços da polarização, sem esquecer as perturbadoras alterações planetárias. A pandemia, agora já no seu terceiro ano, continua, se bem que de forma mais débil, a girar em torno de novas variantes, não sendo possível prever o seu aguardado términos nem as consequências que dela ainda poderão advir, apesar de as estimativas apontarem para algo “próximo do fim”. 

A guerra na Ucrânia reflecte-se negativamente em todo o mundo, causando um sofrimento humano atroz, bem como uma espiral inflacionista com repercussões económicas ainda por deslindar mas que estão já a afectar os rendimentos de milhões de pessoas. As catástrofes climáticas e ecológicas ameaçam diariamente o mundo. E apesar de sempre terem existido crises ambientais, guerras ou doenças, o relatório da PNUD alerta para o facto de, esta vez, e com a confluência destas pressões planetárias desestabilizadoras a par de desigualdades crescentes, transformações societais radicais para tentar aliviar essas mesmas pressões e uma polarização generalizada, não existirem dúvidas de que o mundo está a mudar para pior e que este é já o novo normal. Ou seja, nada voltará a ser como era.

No sumário do RDH é igualmente citado um outro relatório publicado este ano [Special Report on Human Security] que concluiu que seis em cada sete pessoas em todo o mundo sentem uma enorme insegurança relativamente a vários aspectos das suas vidas, mesmo antes do deflagrar da pandemia. Na verdade, a percepção da insegurança humana é elevada em todos os grupos do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), e tem aumentado, mesmo em alguns países bem posicionados no mesmo. A polarização mantém-se igualmente elevada, o mesmo acontecendo com uma quebra generalizada de confiança: ou seja e globalmente, menos de 30% dos inquiridos pensam que a maioria das pessoas é de confiança, o valor mais baixo registado ao longo dos últimos 30 anos. De sublinhar igualmente que mais de 90% dos países viram os seus valores de IDH baixar em 2020 ou 2021 (com a ajuda da pandemia mas não só), ultrapassando largamente os valores negativos que caracterizaram a última crise financeira mundial. 

De má em má notícia, uma questão sobressai: por que motivo o mundo está como está? Sim, é verdade que sempre existiram guerras, epidemias, fome e desigualdades. Mas, e talvez porque desta vez sejamos testemunhas participantes deste estranho estado civilizacional, o que parece é que estamos a dar passos atrás numa altura em que, e em particular, teríamos de dar passos em frente para assegurarmos um futuro melhor. Aliás, e no lançamento deste relatório, Achim Steiner, responsável pelo PNUD, afirmou mesmo que “com estes resultados, podemos ter uma noção dos motivos devido aos quais tantas pessoas começam a sentir-se desesperadas, frustradas e significativamente preocupadas com o futuro”. A título de curiosidade e neste Índice de Desenvolvimento Humano e em 191 países, Portugal ocupa a 38ª posição, cujo top 5 é constituído, respectivamente, pela Suíça, Noruega, Islândia, Hong Kong e Austrália.

O Índice dos “Países Bons”

Não é raro questionarmo-nos sobre o impacto real deste tipo de índices nas políticas e no comportamento dos próprios cidadãos. Afinal, são apenas constatações, apoiadas em estatísticas, e que supostamente pouco servem para alterar alguma coisa. A par dos vários índices reconhecidos globalmente como reputáveis, como o Índice de Desenvolvimento Humano ou o Índice de Progresso Social, existe um outro, muito menos conhecido e divulgado, mas com algumas particularidades interessantes. Chama-se “The Good Country Index” , foi publicado recentemente e olha para o estado do mundo de uma forma diferente. Ao contrário dos demais que, na sua grande maioria, avaliam o desempenho dos países isoladamente, quer se trate de crescimento económico, estabilidade, justiça, transparência, boa governação, produtividade, democracia, liberdade, ou mesmo felicidade, o Índice dos Países Bons tenta medir os impactos das políticas e comportamentos que contribuem para os “bens comuns globais” com o objectivo de encorajar as populações e os seus governos a olharem para além das suas fronteiras e a considerarem as consequências internacionais da sua “prestação nacional”. Ou, e em termos gerais, classifica os países de acordo com o contributo que prestam à humanidade e ao planeta. 

Criado em 2014 pelo Professor Simon Anholt, que trabalhou ao longo das última décadas como conselheiro de presidentes, primeiros-ministros e governos de mais de 50 países, ajudando-os a envolverem-se de forma mais criativa e eficaz com a comunidade internacional e a melhorar os seus compromissos económicos, políticos e culturais, o The Good Country Index mede o contributo global de cada país nas seguintes áreas: Ciência e Tecnologia, Cultura, Paz e Segurança Internacional, Ordem Mundial, Planeta e Clima, Prosperidade e Igualdade, e Saúde e Bem-Estar. E, das sete temáticas avaliadas, Portugal aparece num honroso 5º lugar, no que respeita ao contributo que dá ao mundo em termos culturais, entre os 169 países analisados. Com prestações significativamente mais fracas nas categorias de paz e segurança internacional (78º) e ordem mundial (64º), é o 22º país no mundo a contribuir para as questões relacionadas com o planeta e o clima, o 30º em Ciência e Tecnologia, o 42º em saúde e bem-estar e o 44º em prosperidade e igualdade. No índice geral, Portugal é o 29º classificado. Os cinco países que se posicionam no topo desta lista incluem a Suécia, a Dinamarca, a Alemanha, os Países Baixos e a Finlândia. 

Todavia e como refere o próprio responsável pelo ranking, e tendo em conta que a compilação dos resultados assenta em 35 conjuntos de dados fiáveis que medem a forma como os países afectam o mundo fora das suas próprias fronteiras e que abrangem temas como a educação, ciência, guerra e paz, comércio, cultura, saúde, censura, ambiente, liberdade, etc., sendo a maioria resultante dos sistemas das Nações Unidas e outras agências internacionais, neste contexto “bom” significa o oposto de “egoísta”, e não o oposto de “mau”.

Por esta razão, o Índice de um Bom País não inclui quaisquer medidas puramente domésticas, tais como pobreza, desigualdade, qualidade de vida, corrupção ou direitos humanos no interior das fronteiras de cada país, pese embora a sua importância e a fiabilidade destes dados avaliados por organizações competentes. 

Como afirma Simon Anholt, e em consonância com os demais relatórios desta natureza, o estado do mundo parece estar sempre a piorar: alterações climáticas, guerra, terrorismo, pandemias, migração, caos económico… e a lista continua. E não é preciso ser-se muito informado para se ter a noção de que todos estes problemas se tornaram demasiado grandes e complexos para serem resolvidos por qualquer nação individualmente. Adicionalmente, o problema é que em vez de colaborarem, as nações gastam toda a sua energia e recursos a competir umas contra as outras. “Isto tem de mudar se quisermos que o mundo funcione e é por isso que o Índice do País Bom existe”, declara. Anholt define igualmente um Pais Bom como aquele que harmoniza com sucesso as suas responsabilidades domésticas e internacionais. 

A fórmula para uma maior cooperação internacional

Uma outra “criação” de Simon Anholt foi lançada, em 2016, com enorme sucesso: denominada Voto Global, permite a qualquer pessoa no mundo “votar” nas eleições de outros países: até agora, mais de meio milhão de pessoas de 130 países participaram no Voto Global nas eleições e referendos de dezoito nações diferentes. No seu website, é possível ainda aceder-se ao Índice dos Líderes Bons, onde mensalmente faz uma análise dos líderes mundiais, ou mais precisamente de quão bem ou mal cada um deles está a fazer ao mundo, fora das suas fronteiras nacionais. Tal como o Índice do Bom País, esta listagem assenta num principio denominado por Anholt como Mandato Duplo, o qual significa que num mundo que enfrenta desafios globais como as alterações climáticas, a pobreza, as migrações e conflitos de ordem variada, já não é suficiente os líderes nacionais pensarem apenas na sua própria população e na sua própria fatia de território, devendo, ao invés, lembrarem-se que também fazem parte da equipa que dirige o planeta. Todavia, esta lista não corresponde a nenhum exercício estatístico, mas sim a um exercício opinativo com o intuito de gerar mais discussão sobre o que é realmente a liderança política na era da crise global. 

Para este consultor de políticas internacionais, o mundo está como está porque as pessoas no século XXI perderam, pelo menos aparentemente, a capacidade de mudar de ideias sobre o que quer que seja. Por exemplo, e pegando no exemplo da pandemia, Anholt não acredita que esta tenha feito algo que não seja reforçar os preconceitos existentes das pessoas. Se for “contra a globalização”, a pandemia parecerá mais uma prova dos perigos da globalização, e quanto pior ela for, mais se culpará a globalização. Se for “a favor da globalização” ou do multilateralismo, a pandemia figurará como a razão última para reforçar o sistema multilateral – e quanto pior as coisas ficarem, mais forte se tornará essa impressão. O que é um péssimo sinal. Mas também concorda que, e de acordo com o mesmo exemplo, foram igualmente muitas as pessoas que se tornaram conscientes de que fazem parte de uma comunidade global, sentimento que perdurou pelo menos durante vários meses: a ideia de que outros sete mil milhões de seres humanos sofreram e lutaram, esperaram e tentaram sobreviver a um vírus globalmente mortífero fez maravilhas pelo sentimento de ligação e pertença. E talvez tenha sido a primeira vez que tal aconteceu no mundo, o que é um facto bastante positivo.  

Mas o que realmente interessa a Anholt – e, na verdade, a todos nós, é tentar compreender por que motivo e apesar de todo o poder, tecnologia, dinheiro e conhecimento acumulados pela humanidade, parecer sermos cada vez menos capazes de vencer, ou pelo menos minorar, desafios globais como as alterações climáticas, a guerra, a pobreza, as migrações, o extremismo, a desigualdade e tantas outras problemáticas que tornam o mundo cada vez mais feio, mau e perigoso. 

E foi na tentativa de o fazer que, em 2020, escreveu o livro The Good Country Equation: How We Can Repair the World in One Generation, aproveitando a sua vasta experiência enquanto conselheiro de governos e chefes de Estado dos quatro cantos do mundo. Através de descrições das suas aventuras tão distintas como jantar com Vladimir Putin na sua casa de campo, acompanhar um grupo de conselheiros de Felipe Calderon na sua primeira viagem de metro pela Cidade do México, visitar um belíssimo novo hospital governamental no Afeganistão que ninguém usaria porque estava em território controlado pelos Talibãs, Anholt ousa propor a “equação para um país bom”, uma espécie de fórmula para encorajar a cooperação internacional e reinventar a educação para uma era globalizada. 

A ideia subjacente ao livro e ao restante trabalho que desenvolve tem sempre como base a ideia de que se os líderes governamentais cooperassem – mais do que competissem – com outras nações, não só se aproximariam mais da resolução dos problemas que têm em comum, como tornariam os seus países “mais bons” no processo. Para Anholt, um país “bom” pode perseguir os seus próprios interesses sem causar danos aos demais países e, preferencialmente, beneficiando-os. 

Assim, o livro The Good Country Equation apresenta boas e más notícias. A má é que todos os nossos principais problemas globais são o resultado do comportamento humano: 1) como os governos se comportam, e 2) como os indivíduos se comportam. 

A boa notícia é que “se as pessoas são o problema, elas são também a solução”. E talvez se os líderes mundiais apostassem na cooperação em substituição da competição (ou pior do que isso), talvez todos os índices sobre o desenvolvimento humano ou sobre o progresso social e civilizacional apresentassem dados menos pessimistas. 

Editora Executiva