POR HELENA OLIVEIRA
Numa altura em que a colaboração seria a única forma de combater os desafios globais que o planeta enfrenta, o mundo encontra-se mais dividido do que nunca. A conclusão é retirada do Relatório de Riscos Globais 2019, anualmente realizado pelo Fórum Económico Mundial (FEM) e divulgado na semana passada. De acordo com o presidente do FEM, Børge Brende, da persistente desigualdade económica às alterações climáticas, sem esquecer o aumento das tensões geopolíticas e o ritmo acelerada da 4ª Revolução Industrial – cujas consequências estão ainda por apurar – “nunca existiu uma necessidade tão urgente para uma abordagem colaborativa e multistakeholder no que respeita a estes problemas globais partilhados por todos”.
Se vivemos numa era caracterizada por recursos e avanços tecnológicos sem paralelo, para muitas pessoas esta é também a era da grande insegurança. Brede sublinha que há que encontrar novas formas de levar a cabo a globalização – se queremos ver esta insegurança diminuída – e implementar novas estratégias para lidar com um conjunto de temas, sejam as migrações, a desigualdade ou o reforço da protecção social, subprodutos das habituais temáticas mais alargadas que assombram o nosso horizonte. A verdade é que os riscos globais têm-se vindo a intensificar na mesma medida em que as divisões se têm vindo a agudizar.
De acordo com o relatório, o mundo está a entrar numa nova fase em que a ideia principal consiste no “temos de recuperar o controlo” expresso por um conjunto cada vez maior de países. E estamos a mergulhar cada vez mais fundo nos problemas globais os quais, e sem um esforço colectivo, terão uma dimensão cada vez mais alargada.
O relatório apresenta os resultados do mais recente Inquérito sobre a Percepção dos Riscos Globais (GRPS, na sigla em inglês), no qual quase 1000 decisores pertencentes ao sector público, privado, à academia e à sociedade civil avaliam os riscos que o mundo enfrenta. Nove em cada 10 respondentes esperam que a economia piore e que os confrontos políticos entre as maiores potências mundiais se agudizem. Num horizonte de 10 anos, os fenómenos climáticos extremos e o fracasso das políticas para mitigar os efeitos das alterações climáticas são aqueles que se afiguram como as maiores ameaças.
Das respostas ao GRPS foram assim identificadas cinco grandes temáticas (desenvolvidas em grandes capítulos que integram o relatório) que maior preocupação estão a gerar e é sobre elas que o VER escreve esta semana.
Vulnerabilidades económicas e o aumento da volatilidade nos mercados financeiros
As tensões geoeconómicas acentuaram-se ao alongo do ano de 2018 e os respondentes ao GRPS mostraram-se preocupados com a deterioração do ambiente económico internacional no curto prazo e com a vasta maioria a estimar que um dos riscos que irá aumentar ao longo de 2019 será “os confrontos económicos entre os maiores poderes mundiais (91%)” e “a erosão das regras e acordos comerciais multilaterais” (88%).
Apesar do leve crescimento da economia ao longo dos últimos anos, a volatilidade dos mercados financeiros sofreu um aumento em 2018 e os ventos contrários enfrentados pela economia global estão também a soprar mais forte. A mais recente estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê um abrandamento gradual da economia nos próximos dois anos, com a mesma instituição a estimar o desaceleramento do crescimento do PIB real de 2,4% em 2018 para 2,1% este ano, caindo para 1,5% em 2022. Por outro lado, e apesar do crescimento económico nos países em desenvolvimento aparentar não sofrer grandes alterações, as projecções também de abrandamento para a China – de 6,6% em 2018, para 6,2% este ano e 5,8% em 2022 – constituem preocupação certa.
Os níveis elevados de endividamento global consistem numa preocupação específica das vulnerabilidades económicas, na medida em que o seu total é significativamente superior ao que existia antes da crise financeira global, rondando os 225% do PIB. Em Outubro de 2018, mais de 45% de países de baixo rendimento estavam já ou muito próximos do risco de sobreendividamento, face a um terço dos mesmos países em 2016.
No que respeita à desigualdade, o aumento da “disparidade em termos de rendimento e riqueza” posicionou-se em quarto lugar do top das preocupações dos inquiridos e, apesar de a desigualdade global ter sofrido algum declínio, o mesmo não acontece quando a mesma é avaliada no interior dos países. Em conjunto com a polarização política, a desigualdade desgasta o fabrico social de um país e à medida que a coesão e a confiança diminuem, o mesmo acontece com a performance económica.
Tensões geopolíticas e enfraquecimento do multilateralismo
Os dados são pessimistas: 85% dos respondentes ao GRPS esperam que em 2019 aumentem “os confrontos políticos entre as maiores potências mundiais”. A tormentosa relação entre a China e os Estados Unidos continua a ser uma das realidades apresentada e considerada pelo relatório como “multipolar e multiconceptual”.
E com o multilateralismo a enfraquecer e as relações entre as maiores potências mundiais a evoluírem, o cenário geopolítico actual não oferece qualquer garantia para a resolução dos muitos conflitos que ainda persistem no planeta. Um exemplo é o número de mortes de civis no Afeganistão que, de acordo com as Nações Unidas foi o mais elevado da última década, em conjunto com as centenas de milhar de mortes na Síria e o Iémen a sentir na pele as fatalidades directas resultantes da guerra com as estimativas a apontarem para que cerca de 10 a 13 milhões de pessoas estejam em risco de morrer à fome como resultado da disrupção na entrega de bens alimentares e outro tipo de mantimentos e de acordo também com um alerta dado pelas Nações Unidas em Outubro de 2018.
Se um ponto positivo é dado no que respeita ao diminuir das tensões e volatilidade do programa nuclear norte-coreano, em termos de ameaças e pelo 3º ano consecutivo, as armas de destruição maciça continuam a constituir o risco global número um no que respeita ao seu potencial impacto.
Um pouco por todo o mundo, às crescentes instabilidades geopolíticas correspondem também tensões políticas domésticas. No cenário dos riscos globais, a “crescente polarização da sociedade” posiciona-se em 2º lugar, só ultrapassada pelas alterações climáticas. E ao contrário do que se poderia pensar, este é um problema global e não só uma “questão do primeiro mundo”.
A polarização e uma governança fraca levantam questões sérias sobre a saúde política de inúmeros países e, em muitos casos, as diferenças partidárias há muito que não eram tão profundas. O problema torna-se ainda mais agudo quando os desafios globais exigem, cada vez mais, uma cooperação ou integração multilateral. Por seu turno, os níveis fracos de legitimidade e responsabilização são um convite à revolta contra as elites. No GRPS, 59% dos respondentes afirmam esperar o aumento de riscos associados com a “raiva pública contra as elites” em 2019.
Tensões sociais e políticas e o lado humano dos riscos globais
Para 2019, estão previstos níveis elevados de ressentimento entre as populações, em conjunto com outras formas de perturbações psicológicas e emocionais. Apesar de não ser um indicador habitualmente avaliado, este o relatório sublinha a necessidade de se olhar para o lado humano dos riscos globais, em resposta às várias mudanças estruturais que estão em curso. Para muitas pessoas, pode ler-se no documento, estamos a viver num mundo crescentemente ansioso, infeliz e solitário. A nível mundial, estima-se que problemas de ordem mental atinjam cerca de 700 milhões de pessoas, problemas estes intimamente relacionados com as complexas alterações sociais, tecnológicas e com o contexto laboral da era em que vivemos. Uma temática comum a estas perturbações psicológicas está relacionada com um sentimento de ausência de controlo face à incerteza que classifica o mundo actual. Estas questões deverão merecer, assim, uma maior atenção, não só porque o declínio da saúde mental e do bem-estar emocional é um risco em si mesmo, mas também devido aos impactos que tem em termos de política e coesão social.
Por seu turno, as políticas identitárias continuam a marcar as tendências sociais e políticas globais, com as políticas de imigração e asilo a assumirem-se como questões fundamentais. As migrações, em particular, têm vindo a despoletar disrupções políticas em praticamente todos os continentes do mundo. E as tendências globais – desde as projecções demográficas até às alterações climáticas – são uma garantia de crises futuras com vários líderes a seguirem uma linha mais dura na defesa das culturas nacionais dominantes. No GRPS, 72% dos inquiridos afirmam esperar um escalar dos riscos associados a agendas “populistas e nativistas”.
Em alguns países, os esforços para se assegurar o reconhecimento e a igualdade para um conjunto alargado de grupos sociais minoritários estão a ter um peso crescente nas decisões eleitorais. As eleições intercalares de Novembro nos Estados Unidos, e por exemplo, testemunharam um número recorde de mulheres e candidatos não brancos eleitos para o Congresso. E a questão da violência sobre as mulheres está cada vez mais ampliada, não só através da continuidade do movimento #MeToo, iniciado em Outubro de 2017, mas também através de outras campanhas contra a violência sexual sobre as mulheres. A crescente atenção global face a este tema reflectiu-se igualmente no Nobel da Paz de 2018 atribuído a dois dos mais destacados activistas contra a violação sexual em contexto de guerra: Nadia Murad, uma iraquiana yazidi que foi raptada e escravizada pelo Daesh, e Denis Mukwege, um médico congolês que operou dezenas de milhares de mulheres violadas de forma cruel.
Adicionalmente, o FEM alerta também para o facto de as mulheres, um pouco por todo o mundo, estarem a ser desproporcionalmente afectadas por muitos dos riscos debatidos neste relatório de riscos globais, muitas vezes devido a níveis elevados de pobreza e porque são as principais prestadoras de cuidados às crianças, e as responsáveis pela comida e pelo fornecimento energético. Por exemplo, as alterações climáticas já são responsáveis pelo facto de mulheres em muitas comunidades terem que percorrer um caminho cada vez mais longo para encontrar água. E, de acordo com o FMI, são também as mulheres que têm maior potencial para serem substituídas pela automação no novo contexto laboral.
Fragilidades ambientais: catástrofe climática e perda acentuada da biodiversidade
Os riscos associados ao ambiente dominam o GRPS pelo terceiro ano consecutivo, com três temáticas a constarem do top 5 dos riscos por probabilidade e quatro por impacto.
Os fenómenos climáticos extremos são os que mais se destacam, tanto em termos de probabilidade como de impacto, não sendo de estranhar face ao número elevadíssimo de tempestades, incêndios e cheias que caracterizaram 2018. E, sublinha o relatório, é exactamente em relação ao ambiente que o mundo parece estar a andar feito sonâmbulo e em direcção à catástrofe. Amplamente mediatizado foi o anúncio feito pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) quando, em Outubro do ano passado declarou publicamente que, no máximo, temos 12 anos para levar a cabo mudanças drásticas e sem precedentes caso desejemos evitar o aumento das temperaturas globais para além dos 1,5 graus centígrados, como estabelecido no Acordo de Paris. Em Novembro e nos Estados Unidos, a Quarta Avaliação Climática Nacional alertou também para o facto de que sem um corte significativo nas emissões de carbono, as temperaturas globais médias poderem aumentar em cinco graus até ao final do século.
Não admira por isso que os inquiridos do GRPS estejam crescentemente preocupados com o fracasso das políticas ambientais. Depois de, enquanto risco, o fracasso da mitigação e adaptação das alterações climáticas ter caído no índice das preocupações a seguir ao Acordo de Paris, este ano voltou a ocupar o segundo lugar em termos de impacto. E a mais citada interligação de riscos aponta para uma conexão directa entre fracasso na mitigação das alterações climáticas e os eventos climáticos extremos.
Uma outra preocupante realidade prende-se com a perda ainda mais acelerada da biodiversidade. O Living Planet Index, que rastreia mais de 4 mil espécies em todo o planeta, reportou em 2018 e por exemplo que as populações de vertebrados diminuíram, em média, cerca de 60% desde 1970.
A verdade é que as alterações climáticas estão a exacerbar a perda de biodiversidade, sendo este um problema de dupla face: muitos dos ecossistemas afectados – como os oceanos e as florestas – são extremamente importantes para a absorção das emissões de carbono. Ecossistemas crescentemente fragilizados colocam em risco e também a estabilidade social e económica. Uma estimativa sobre o valor económico dos “serviços de ecossistemas” – com benefícios para os humanos, como a água potável, a polinização e a protecção contra as cheias – ascende aos 125 biliões de dólares anuais, valor cerca de dois terços superior ao PIB global.
Na cadeia alimentar humana, por seu turno, a perda de biodiversidade afecta o desenvolvimento socioeconómico e a saúde com implicações para o bem-estar, a produtividade e até a segurança regional. As disrupções na produção e fornecimento de bens e serviços devido a desastres ambientais aumentaram 29% desde 2012 e a América do Norte foi a região mais afectada por disrupções na sua cadeia de abastecimento, a maior parte delas devido a furacões e incêndios de grandes dimensões. Entre vários outros problemas relacionados, o relatório alerta para a necessidade de existir uma acção coordenada, tanto a nível doméstico como internacional, para internalizar e mitigar o impacto da actividade humana nos sistemas naturais.
Instabilidades tecnológicas e a interacção entre tecnologia e emoções
Sem qualquer surpresa, a tecnologia continua a representar um papel principal em termos de riscos globais que afectam indivíduos, governos e empresas. Uma larga maioria de inquiridos no GRPS acredita que os riscos relacionados com os ciberataques em 2019 continuarão a crescer, conduzindo ao roubo de dinheiro e de dados e à disrupção de operações. O inquérito reflecte de que forma é que novas instabilidades causadas pela integração aprofundada das tecnologias digitais estão a ter impacto em todos os aspectos das nossas vidas. Cerca de dois terços dos respondentes esperam que os riscos associados com as fake news e o roubo de identidade aumentem em 2019, com três quintos a afirmar o mesmo no que respeita à perda de privacidade relacionada com empresas e governos.
Os ciberataques maliciosos em conjunto com protocolos de cibersegurança negligentes foram os responsáveis por violações massivas de informação pessoal em 2018. A maior teve lugar na Índia, onde a base de dados governamental que identifica os seus cidadãos sofreu múltiplas violações que comprometeram, muito provavelmente, os registos de 1,1 mil milhões de cidadãos registados. Como sabemos também, outras violações de dados pessoais afectaram 150 milhões de utilizadores da aplicação MyFitnessPal e cerca de 50 milhões de utilizadores no Facebook. Em Julho último, o governo dos Estados Unidos declarou que um grupo de hackerstivera acesso às salas de controlo das empresas de utilities, sendo que esta vulnerabilidade está cada vez mais a tornar-se uma preocupação de segurança natural.
Adicionalmente, tecnologias como o machine learning ou a Inteligência Artificial estão a tornar-se muito mais sofisticadas e predominantes, com um potencial crescente para ampliar riscos já existentes ou a criação de novos riscos, particularmente à medida que a Internet das Coisas se continua a ligar a milhares de milhões de dispositivos em todo o mundo. O potencial para que agentes malignos utilizem a Inteligência Artificial na biologia e criarem novos patogénicos é tema de um dos capítulos deste relatório, tal como as consequências potenciais da “computação afectiva”, as quais estão relacionadas com a forma como a IA já consegue reconhecer, responder e manipular emoções humanas.
Entre os mais disseminados e disruptivos impactos da IA ao longo dos últimos anos está o seu papel no crescimento das “câmaras de eco nos media e das fake news”, um risco identificado por 69% dos respondentes do GRPS como passível de aumentar em 2019.
Vários investigadores estudaram, ao longo do ano passado, as trajectórias de 126 mil tweets e concluíram que aqueles que continham fake news ultrapassavam de forma consistente os outros que continham notícias verdadeiras, atingindo em média 1500 pessoas seis vezes mais rapidamente. Uma possível razão para este resultado, e de acordo com os investigadores, está relacionada com a tendência que as fake news têm para despertar emoções eficazes: “tweets falsos desencadeiam palavras associadas com a surpresa e com a repugnância, ao passo que tweetsverdadeiros integram palavras associadas mais à tristeza e à confiança. Para os especialistas do FEM, a interacção entre emoções e tecnologia irá transformar-se, muito provavelmente, numa força cada vez mais disruptiva.
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