Aprender a lidar com a incerteza em tempos de mudança rápida é um antídoto promissor para o sofrimento mental, e não um caminho real para a angústia, como muitos de nós supõem. Quem o afirma é Maggie Jackson, autora do livro Uncertain: The Wisdom and Wonder of Being Unsure, em conjunto com vários cientistas que têm vindo a abordar o tema. Apesar de vivermos num mundo imprevisível, dinâmico e imperfeito, características que também possuímos enquanto seres humanos, lidar com a incerteza não tem de significar cair na depressão, mas sim trilhar o caminho das segundas oportunidades
POR HELENA OLIVEIRA
“Numa era de imprevisibilidade assustadora, a resposta rápida e segura parece ser a ideal. Participamos numa corrida constante para resolver a precariedade e a complexidade com algoritmos bem definidos, pontos de vista nítidos ou tweets apressados. Quem tem tempo para se perder no deserto da insegurança? Como poderíamos encontrar a clareza e a visão tão urgentemente necessárias hoje em dia ‘se não soubéssemos’?
Longe de nos levar à inércia ou à derrota, a incerteza potencia o bom senso, a flexibilidade cognitiva, a criatividade, a curiosidade e até a resiliência. Um estado de espírito fundamental para a realização humana, mas que até há pouco tempo era pouco compreendido, a incerteza é o portal para encontrar a humanidade de um inimigo, a base de um trabalho de equipa superior e a mentalidade mais necessária em tempos de mudança”.
Estas palavras, que parecem inverter a nossa habitual visão de tempos caracterizados por uma extrema incerteza, são de Maggie Jackson, jornalista e autora de um aclamado livro intitulado Uncertain: The Wisdom and Wonder of Being Unsure.
Como sabemos, uma das coisas que os seres humanos mais temem é a incerteza. A maioria de nós gosta de saber o que é certo e, quando tal não acontece, sentimos um enorme desconforto. Adicionalmente, quando somos forçados a enfrentar o desconhecido, a nossa reacção é muitas vezes recuar para ideias e rotinas antigas, sem esquecer que os tempos que correm são de profunda insegurança e indefinição, o que provoca, em muitos de nós, uma dolorosa angústia e medo do que poderá vir a acontecer.
Mas e pelo contrário, o livro de Maggie Johnson defende a incerteza como uma virtude filosófica, utilizando um manancial de investigação científica recente para explicar porque é que abraçá-la nos prepara para a aprendizagem e pode melhorar a nossa saúde mental em geral.
Mas como é que o “não-saber” pode ser utilizado como uma força? Na verdade, tal parece uma profunda contradição. Nos dias de hoje, é muito comum fácil sentirmo-nos como se nos estivéssemos a afogar em incógnitas de ordem variada, ou naquilo a que os cientistas chamam de incerteza aleatória. Por exemplo, a incerteza económica e geopolítica tem vindo a aumentar lentamente desde os anos 90, com picos acentuados nos últimos anos, fenómeno a que assistimos diariamente.
Mas, e cada vez mais, especialistas de vários domínios da ciência, têm vindo a alertar que a incerteza não é algo que nos prejudica, antes pelo contrário.
“A incerteza sacode-nos da nossa complacência e torna-nos mais atentos a novas informações”, afirma o neurocientista Joseph Kable à CNN, da Universidade da Pensilvânia. “E desempenha um papel na preparação do cérebro para aprender”, acrescenta.
Mas como escreve a autora de Uncertain, num artigo de opinião publicado no NY Times, os seres humanos precisam naturalmente de respostas e, por isso, normalmente sentem aversão à incerteza. “Com uma eleição presidencial, uma guerra a eclodir em várias zonas, o aumento da volatilidade climática e uma miríade de outros tipos de fluxos dúbios, é fácil sentir uma angústia avassaladora em relação ao futuro e ver a certeza como um farol num tempo sombrio”, declara.
Contudo e depois da investigação que fez para a escrita do seu livro, Maggie Jackson defende que uma vaga de novas descobertas científicas revela que aprender a lidar com a incerteza em tempos de mudança rápida é um antídoto promissor para o sofrimento mental, e não um caminho real para a angústia, como muitos de nós supõem. Um conjunto crescente de provas e uma gama de novas intervenções sugerem que gerir habilmente a incerteza face ao que é obscuro, novo ou inesperado é um tratamento eficaz para a ansiedade, um caminho provável para o desenvolvimento da resiliência e uma marca de capacidade astuta para a resolução de problemas.
No mesmo artigo escrito para o NY Times, a autora declara que os estudos sobre a era pandémica oferecem uma ilustração inicial das ligações entre incerteza e florescimento. A também jornalista cita um conjunto de investigadores do Estado do Ohio que descobriram que os adultos que obtiveram uma pontuação elevada numa medida de “intolerância à incerteza” tinham mais probabilidades de sofrer de stress e ansiedade durante a pandemia. À semelhança dos testes de personalidade, as avaliações da intolerância à incerteza medem a tendência das pessoas para verem as incógnitas como uma ameaça e não como um desafio. Também durante a pandemia, um estudo britânico concluiu que níveis mais elevados de intolerância à incerteza estavam associados a respostas menos adaptativas, como a negação, o afastamento da vida “normal” e o abuso de substâncias. Em contrapartida, as pessoas que lutaram menos contra a incerteza demonstraram maiores probabilidades de aceitar a realidade da situação.
Por seu turno e como corrobora Michel Dugas, professor de psicologia na Universidade do Quebeque e especialista no estudo da incerteza e da saúde mental, “a vida é intrinsecamente incerta e, se tivermos dificuldade em lidar com isso, teremos dificuldade em lidar com a vida”.
Uma outra descoberta prende-se com o facto de a incerteza expandir os nossos horizontes cognitivos. Mas como? Como escreve Maggie Jackson, pensemos na inquietação que podemos sentir no primeiro dia de um novo emprego ou quando nos deparamos com obras inesperadas na estrada durante o trajecto para o trabalho. Como explica, quando se experimenta algo novo, ambíguo ou inesperado, as hormonas do stress e os químicos inundam o cérebro. Nesse momento, surge uma incompatibilidade entre as expectativas antigas e as novas realidades. “Não se saber implica um estado de espírito associado a sintomas de stress de que são exemplo pupilas dilatadas, pele suada e cortisol [a chamada hormona do stress] mais elevado. Mas a verdade é que fomos criados para ansiar por respostas. O facto de não sabermos inquieta-nos – e é precisamente por isso que beneficiamos deste estado mental”, defende. E acrescenta, “quando nos confrontamos com algo novo, neurotransmissores poderosos, como a norepinefrina, aumentam a receptividade da mente a novos dados, activam circuitos cognitivos que controlam de forma flexível a concentração e preparam regiões do cérebro para se envolverem na partilha de informações. Em milésimos de segundo, o fio condutor do não-saber interrompe o nosso programa de acção atual, invocando os sistemas cognitivos necessários para actualizar uma compreensão do mundo agora ultrapassada”.
Adicionalmente, as pessoas cujos níveis de stress estão mais sintonizados com os níveis flutuantes de incerteza do fazem as previsões mais precisas. No fundo, reconhecem o dinamismo essencial da vida. “Ao agarrarmo-nos à crença de que uma situação é estável quando não o é, é menos provável que nos apercebamos das realidades em mudança, segundo os estudos. Os melhores ‘jogadores’, pelo contrário, reúnem o capital de suor necessário para despertar para os momentos em que o mundo os convida a aprender. A norepinefrina é um marcador do esforço cognitivo”, acrescenta ainda a autora.
Mais ainda, e de acordo com várias pesquisas, “esta é uma das razões pelas quais os directores executivos que se mostram ambivalentes numa crise tendem a ser mais engenhosos do que os líderes ultra-decididos que tantas vezes admiramos”. “Ao aceitarmos o desafio da incerteza, ficamos atentos às possibilidades”, defende.
Numa entrevista à Vox.com, Maggie Jackson reitera que os neurocientistas estão a começar a desvendar o que acontece no cérebro quando lidamos com o stress da incerteza. A incerteza do momento, a percepção de que não sabemos, de que atingimos os limites do nosso conhecimento, instigam uma série de mudanças neuronais. A nossa atenção alarga-se, o nosso cérebro torna-se mais receptivo a novos dados e a nossa memória de trabalho é reforçada. É por isso que enfrentar a incerteza é uma espécie de vigília. Ou, como afirma o neurocientista Joseph Kable, da Universidade da Pensilvânia, “a incerteza é o momento em que o nosso cérebro está a dizer a si próprio que há algo a aprender aqui”.
De acordo com a autora, tolerar e até mesmo deliciar-se com a incerteza não nos ajuda apenas a aceitar a imprevisibilidade da vida, como também nos prepara para aprender e adaptarmo-nos. “Todos os dias, o cérebro utiliza modelos mentais aperfeiçoados sobre a forma como o mundo funciona, que são utilizados para processar um ambiente em constante mudança. Quando nos deparamos com algo inesperado, um ‘erro de previsão’ neural assinala um desfasamento entre o que presumimos que iria acontecer e o que os nossos sentidos nos dizem”.
No entanto, a nossa sensação desconfortável de não saber desencadeia uma série de alterações neurais benéficas, incluindo uma maior atenção, uma memória de trabalho reforçada e sensibilidade a novas informações. Ou seja, o cérebro prepara-se para actualizar o nosso conhecimento do mundo. Ou, como afirma Stephanie Gorka, psiquiatra e especialista em saúde comportamental na Faculdade de Medicina da Universidade do Estado do Ohio, a incerteza oferece a “oportunidade de a vida seguir em direcções diferentes e isso é excitante”.
É por isso que estar aberto à incerteza é fundamental para o bem-estar mental. Um trabalho pioneiro liderado pelo já citado Michel Dugas (que deu origem ao termo “intolerância à incerteza”) e pelo psicólogo clínico Nicholas Carleton da Universidade de Regina, no Canadá, mostra que a intolerância à incerteza está associada à vulnerabilidade e a problemas de saúde mental, como a ansiedade, as perturbações alimentares e a depressão. Após mais de duas décadas de trabalho de campo, os dois especialistas e os seus colegas estão a começar a melhorar eficazmente essas perturbações tratando os medos que as pessoas têm do desconhecido, ou aquilo a que Nicholas Carleton chama o “único medo que nos domina a todos”.
Maggie Jackson corrobora esta ideia citando outros estudos sobre o medo do desconhecido, definindo-o como uma das causas profundas de factores como a ansiedade e a depressão, o que faz sentido. Mas como se processa essa relação? Como escreve, “esta é uma compreensão teórica muito recente, mas em ascensão, dos desafios mentais no mundo da psicologia. Cada vez mais psicólogos e clínicos começam a ver o medo do desconhecido como a raiz trans-diagnóstica, ou pelo menos um fator de vulnerabilidade, de doenças como a PSPT [Perturbação de Stress Pós-Traumático] e a ansiedade. E, ao limitarem os tratamentos para ajudar as pessoas a reforçarem a sua tolerância à incerteza, estão a começar a descobrir que essa pode ser uma forma realmente importante de mudar a ansiedade intratável”.
E quando a incerteza nos paralisa?
Como explica na entrevista dada à Vox.com, “o movimento para a frente envolve escolhas. A incerteza nunca é o objetivo final. É mais como um veículo e uma abordagem à vida. Na maioria das vezes, é o nosso medo da incerteza que leva à paralisia. Não é a incerteza em si. Se abordarmos a incerteza sabendo que é um espaço de possibilidades, então podemos estar presentes no momento e começar a investigar e a explorar”. Todavia, acrescenta, se tivermos medo da incerteza, é mais provável que a tratemos como uma ameaça. Pelo contrário, se formos mais tolerantes com ela, tratamo-la como um desafio.
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