A indústria do calçado alcançou “um acordo histórico”, com patrões e sindicatos a assinarem um contrato colectivo de trabalho que prevê, pela primeira vez, igualdade salarial para os trabalhadores que desempenham funções do mesmo nível de classificação profissional, independentemente do género. Ao VER, o coordenador da Federação dos Sindicatos responsável por este sector explica como a partir de “negociações muito duras” se alcançou este passo que “é da mais elementar justiça”, sublinhando que “só pela pressão da FESETE” foi possível dar o salto contra a discriminação remuneratória das mulheres
POR GABRIELA COSTA

Numa altura em que o Governo prepara um diploma que irá criar penalizações para empresas que paguem menos a mulheres que a homens (ver Caixa) o acordo assinado a 18 de Abril pela Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos (APICCAPS) e pela Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Peles de Portugal (FESETE) prevê um aumento salarial médio de 3,45%, garantindo remunerações iguais para homens e mulheres com as mesmas funções.

O novo contrato colectivo de trabalho (CCT) foi oficializado publicamente na sede da associação patronal do sector, no Porto, na presença do ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Na cerimónia de apresentação do acordo que irá abranger 38500 trabalhadores – 60% dos quais são mulheres -, em 1350 empresas, Vieira da Silva destacou o facto de esta consagração da igualdade de género num CCT ser inédita em Portugal, classificando por isso a fileira do calçado como “um farol de inovação”.

Enaltecendo o carácter pioneiro do acordo de regulação laboral desta indústria, o ministro sublinhou, na ocasião, que não se trata de “mais um contrato, mas de um contrato que introduz um factor inovador, pois proíbe a discriminação de género”. E adiantou que o governo “está a trabalhar no sentido de, na concertação social, criar instrumentos de estímulo e de redução desta diferencial salarial, que será de 16% a 18%, e que terá aumentado depois da crise.”

Para a Associação dos Industriais do Calçado, trata-se de um “acordo histórico” que valoriza aquilo que deve ser a regra: distinguir os trabalhadores em função da sua qualidade profissional e do seu desempenho no trabalho, e nunca do sexo. Razão pela qual há mulheres que já ganham mais do que os colegas do sexo masculino, garantem alguns empresários.

Para a frente sindical, o resultado das negociações que foram mantidas ao longo de dois duros anos com os patrões do sector é um sinal de que “as coisas estão a melhorar”, embora o mesmo não impeça que “continuem a haver diferenças” a nível remuneratório nas condições de trabalho entre homens e mulheres.

Segundo as novas tabelas salariais alcançadas em sede de contratação colectiva, para um aumento médio de 3,45%, a igualdade do género é contemplada com um acréscimo de 5,3%, enquanto os quadros médios e superiores não beneficiam de qualquer aumento de rendimento.


Fim da discriminação já em Abril

Considerando “muito relevante” a erradicação do fenómeno da discriminação de género “das relações de emprego”, nomeadamente “nas normas plasmadas nos contratos colectivos de trabalho, pondo fim a um flagelo que afectou as mulheres trabalhadoras durante décadas”, Manuel Freitas, coordenador da Direcção Nacional da FESETE, defende que “é da mais elementar justiça que mulheres e homens com actividades e funções análogas tenham direito a igual salário”.

Em declarações ao VER, o responsável explica que a ideia e oportunidade de defender a questão da igualdade de género neste acordo com os industriais do calçado surgiu naturalmente, já que “é uma das actividades dos sindicatos reivindicar e negociar normas salariais iguais para mulheres e homens”. Para sustentar esta reivindicação, a FESETE realizou, entre 2010 e 2012, um estudo do qual resultou a construção de um sistema de avaliação de funções e remunerações às profissões da produção do calçado. E, com base nas conclusões desse estudo, deu início às negociações sectoriais em 2015, as quais apenas terminaram em 2017.

Como sublinhou à imprensa, na sequência da apresentação deste acordo, Fernanda Moreira, presidente do Sindicato Nacional dos Profissionais da Indústria e Comércio de Calçado, Malas e Afins, ligado à FESETE, “a partir de agora, na costura, nos acabamentos, no corte ou na montagem, os salários base passam a ser os mesmos”.

[quote_center]Cabe aos sindicatos reivindicar e negociar normas salariais iguais para mulheres e homens[/quote_center]

O quadro actual comporta diferenças salariais entre homens e mulheres em função da categoria, dado que as secções de costura ou acabamento são femininas e estas profissões têm salários mais baixos do que a de montador, tradicionalmente masculina. Mas a verdade é que o trabalho de costura pode até ser considerado mais complexo. No âmbito da luta que vem sendo travada pelo sindicato, em 2016 já foi possível colocar uma operadora de costura de primeira a ganhar, na tabela oficial, os mesmos 546 euros que um operador de montagem de segunda.

Combatendo a desigualdade salarial entre as categorias desempenhadas em fábrica, o novo acordo irá permitir, ainda em Abril, que os dois géneros aufiram exactamente o mesmo valor, independentemente da sua função, desde que estejam dentro do mesmo nível de classificação profissional.

Este avanço reveste-se de grande importância para toda a indústria, a nível nacional, pela boa prática que representa. E serve de exemplo ao tecido empresarial português, antecedendo a intenção do Governo de estipular mecanismos para consagrar a igualdade de género nas remunerações do trabalho.

Segundo Manuel Freitas, o longo processo que permitiu chegar a este acordo foi tudo menos fácil: “as negociações com a APICCAPS ao longo dos anos foram sempre muito duras. A sua política salarial sectorial é de manter salários mínimos muito baixos”.

Ao aprovar a solução agora encontrada, a FESETE fez valer a sua determinação em pôr fim à discriminação de género na tabela salarial do calçado, em detrimento da percentagem do aumento dos salários. Na prática, este aumento médio significa subidas salariais que podem chegar aos 5,3% nas categorias profissionais predominantemente femininas, e de 4,5%, ou menos, noutras. Como referido, os quadros intermédios e superiores não terão aumentos.

Como esclarece o coordenador da Direcção Nacional da Federação, no que respeita a esta discriminação “a posição da APICCAPS era a de estabelecer um período mais longo para a sua eliminação”. Por isso, “as negociações demoraram mais tempo e só pela pressão da FESETE foi possível este acordo”, diz peremptório.


“Discussões macias são para mulheres grávidas”

Mas também na perspectiva  dos industriais do calçado, “foram negociações duras”, as que permitiram alcançar o novo contrato colectivo de trabalho no sector. Fortunato Frederico, presidente do maior grupo nacional produtor de sapatos e, à data da assinatura do acordo, ainda presidente da APICCAPS (sendo sucedido, dias depois, por Luís Onofre) aplaudiu na ocasião, a presidente do sindicato do sector do calçado de São João da Madeira, a “mulher dura”, como lhe chamou, que liderou, do lado sindical, as negociações. Para logo a seguir declarar que “foram discussões duras, mas tem que ser assim. Discussões macias são para mulheres grávidas. E a Fernanda [Moreira] é dura”.

[quote_center]A partir de agora, na costura, nos acabamentos, no corte ou na montagem, os salários base passam a ser os mesmos[/quote_center]

Na reacção dos patrões ao acordo que combate a discriminação de género, firmado a 18 de Abril, Fortunato Frederico afirmou ainda que “os trabalhadores têm que estar sempre insatisfeitos, mas não tristes”. Porque, defendeu, “os trabalhadores tristes não produzem”. Já à margem do evento, o industrial desvalorizou o impacto da actualização salarial resultante do acordo no seu grupo empresarial, argumentando: “Eu procuro é ganhar dinheiro todos os dias”.

Comentários à parte, segundo as declarações do porta-voz da associação, Paulo Gonçalves, à agência Lusa, “o que nós procuramos fazer, no fundo, é promover a igualdade de género. Esta era uma preocupação do sector já há algum tempo, nas últimas negociações fomos sempre promovendo esta aproximação entre os salários de homens e de mulheres, e este processo termina agora”.

Termina que é como quem diz, e em bom rigor, avança, pois o acordo agora vigente reflecte-se apenas nos salários fixados na tabela. Logo, quando as empresas pagam acima dela, as desigualdades continuam a existir e, para já, ficará tudo na mesma. De acordo com os cálculos da FESETE, a diferença salarial entre mulheres e homens pode chegar facilmente aos 50 euros, com as primeiras a ganharem 650 euros e os segundos 700 euros, por exemplo.

Ainda assim, o impacto desta negociação “é elevado e tem efeitos no curto e médio prazo”, garante Manuel Freitas: “no curto prazo uma parte significativa das mulheres ganham os salários negociados com a APICCAPS e ser-lhe-á feita justiça”. Já no médio prazo, “o efeito desta negociação e o impacto mediático que a acompanhou será um importante contributo para promover a igualdade salarial neste sector, independentemente dos valores salariais pagos pelas empresas”.

[quote_center]A FESETE fez valer a sua determinação em pôr fim à discriminação de género na tabela salarial do calçado, em detrimento da percentagem de aumento dos salários[/quote_center]

É graças a esse contributo que, sublinhando a importância da contratação colectiva, António Costa se referiu à indústria do calçado como “um sector tradicional exemplar que tem sabido modernizar-se, promovendo mais exportações e garantindo melhores salários”.

O sector exporta 95% da produção para 152 países. As exportações aumentaram 60% desde 2009, período em que foram criados cerca de sete mil postos de trabalho, graças a uma “concertação efectiva entre o patronato e os sindicatos”, divulgou a APICCAPS, para quem “houve paz social e criação e distribuição de riqueza”. O que torna esta indústria num “caso de estudo ao nível das melhores práticas sociais”, depois de já ter sido considerada um “exemplo de competitividade”.


Estado cria penalizações para desigualdades remuneratórias

O Governo está a preparar um diploma para promover a igualdade salarial entre géneros, que deverá ser apresentado até ao dia 1 de Maio. As empresas que não garantam critérios de igualdade salarial entre homens e mulheres no cumprimento das mesmas funções poderão ficar impedidas ou limitadas na assinatura de contratos com o Estado, incluindo para adjudicação de obras e acesso a fundos comunitários.

As penalizações a incluir na proposta de lei sobre o combate à desigualdade salarial entre homens e mulheres que desempenhem as mesmas funções estão a ser preparadas em conjunto pelos gabinetes do ministro do Trabalho e Segurança Social, José Vieira da Silva e do ministro-adjunto, Eduardo Cabrita. Depois de finalizadas estas medida serão apresentadas aos parceiros sociais para aprovação em Conselho da Concertação Social (CCS), no âmbito da Agenda para a Igualdade de Género no Mercado de Trabalho e nas Empresas, já apresentada pelo Governo ao CCS.

O objectivo é estimular as empresas a reduzirem as diferenças salariais entre os dois géneros que, segundo os dados do Eurostat, em 2015, se situavam nos 17,8%. Em Portugal o sector privado atinge níveis de disparidade mais elevados do que o público. Esta percentagem é superior à média da disparidade salarial de género na União Europeia (16,3%) e na zona euro (16,8%), no mesmo período.

A lei agora em discussão deverá determinar os indicadores de disparidade a partir dos quais poderá haver penalização e prever que as medidas de igualdade salarial entre homens e mulheres que desempenhem as mesmas funções sejam incluídas na contratação colectiva.

[quote_center]O acordo no sector do calçado antecede a intenção do Governo de estipular mecanismos para consagrar a igualdade de género nas remunerações do trabalho[/quote_center]

A limitação e a proibição de assinar contratos com o Estado, a ser incluída no diploma, deverá abranger todo o tipo de relações contratuais que as empresas mantêm com a administração pública, incluindo programas de subsidiação de estágios laborais do IEFP, para além da adjudicação de obras e do concurso a fundos estruturais europeus. Mas as penalizações não deverão abranger multas financeiras, para não afectar as empresas no seu desenvolvimento”, segundo disse um responsável pelo processo ao jornal Público, que avançou a notícia. O executivo quer também evitar “fomentar o efeito perverso de as empresas fugirem a empregar mulheres” para não terem de estar sujeitas a fiscalização.

Para além de medidas de penalização, o diploma visa criar critérios de referência e de fiscalização. As empresas terão assim a obrigação de apresentar estatísticas das disparidades salariais de género, com a indicação das respectivas médias. A publicação de estatísticas e a garantia de que os indicadores de disparidade não são ultrapassados serão fiscalizados pelo Estado. As penalizações serão aplicadas na sequência dessa fiscalização.

A par da nova legislação que deverá ser apresentada no Dia do Trabalhador, o Governo também já anunciou legislação que exige maior equilíbrio de género nos conselhos de administração do sector empresarial, incluindo empresas cotadas. Em análise esteve também a legislação que impunha quotas sobre os dirigentes de topo da administração pública, mas esta matéria ficou, para já, adiada.


Jornalista