“Se usarmos o cérebro, é menos provável que o percamos.” A advertência é de Dorene Rentz, especialista da Harvard Medical School, e resume uma das mensagens mais promissoras da ciência actual: o trabalho mentalmente desafiante pode ser um escudo contra o declínio cognitivo. Em Portugal, onde mais de 150 mil pessoas vivem com demência – com estimativas que apontam para que apenas cerca de 25% dos casos estejam devidamente diagnosticados – e numa sociedade cada vez mais envelhecida, apostar nesta probabilidade assume uma particular urgência
POR HELENA OLIVEIRA

Um estudo publicado na revista Neurology, conduzido por investigadores do Oslo University Hospital, do Instituto Norueguês de Saúde Pública e da Universidade de Columbia, veio reforçar uma convicção crescente na ciência da saúde cognitiva: o tipo de trabalho que desempenhamos durante a vida adulta pode influenciar significativamente o risco de desenvolver demência após os 70 anos.

Esta investigação analisou cerca de 7.000 pessoas integradas na coorte norueguesa HUNT4 70+, um estudo populacional longitudinal de grande escala desenvolvido na Noruega desde os anos 1980, que acompanha milhares de residentes da região de Nord-Trøndelag com o objectivo de compreender como os factores biológicos, sociais e comportamentais influenciam a saúde ao longo da vida. Abrangendo um leque diversificado de 305 profissões diferentes, o objectivo foi aferir se ocupações mentalmente mais exigentes, ou seja, menos rotineiras, com maior autonomia e resolução de problemas, podiam proteger a mente contra o comprometimento cognitivo ligeiro (MCI, do inglês Mild Cognitive Impairment) e a demência na velhice.

O estudo aplicou uma métrica conhecida como RTI — Routine Task Intensity — que avalia o grau de repetibilidade e previsibilidade das tarefas profissionais. Ocupações com RTI elevado, como operários fabris, profissionais de limpeza ou carteiros, implicam tarefas rotineiras e pouco complexas. Em contraste, profissões com RTI baixo — como professores, engenheiros, consultores, gestores e profissionais de saúde — exigem resolução de problemas, pensamento crítico e interacção social.

Complexidade no trabalho ajuda a proteger o cérebro

Os resultados mostram que pessoas com trabalhos de alta intensidade rotineira apresentam um risco 66% superior de MCI e 37% superior de demência em comparação com aquelas que executam funções cognitivamente exigentes. Estes efeitos mantêm-se mesmo depois de se descontarem variáveis como escolaridade, estado civil, condições de saúde e estilo de vida, revelando uma associação robusta e independente entre complexidade cognitiva no trabalho e saúde cerebral.

Os investigadores explicam este fenómeno através do conceito de “reserva cognitiva”: uma espécie de almofada neural construída ao longo da vida através da estimulação intelectual, que permite ao cérebro resistir melhor ao envelhecimento e às doenças neurodegenerativas. Funções profissionais desafiantes ajudam a formar e manter redes neurais complexas, promovendo também mecanismos de neuroplasticidade, ou seja, a capacidade do cérebro se adaptar e reorganizar.

Estes mecanismos não são apenas teóricos. Estudos moleculares complementares demonstraram que pessoas com profissões cognitivamente exigentes apresentam níveis mais baixos de determinadas proteínas plasmáticas — como SLIT2, CHSTC e AMD — cuja presença em níveis elevados tem sido associada, segundo um estudo publicado no BMJ, à inibição da formação de sinapses e axónios, estruturas fundamentais para a comunicação entre neurónios. Esta redução poderá traduzir-se num ambiente cerebral mais favorável à aprendizagem, à memória e à regeneração neuronal. Segundo o mesmo estudo, combinações de educação prolongada com ocupações exigentes reduzem o risco de demência em até 37%.

Por outro lado, a neurociência tem vindo a comprovar que a prática de actividades intelectualmente desafiantes ao longo da vida — como aquelas que muitas profissões exigem — estimula a produção de factores neurotróficos como o BDNF (factor neurotrófico derivado do cérebro). Esta proteína desempenha um papel crucial no crescimento, sobrevivência e funcionamento das células nervosas (neurónios) no cérebro. Está envolvida na plasticidade sináptica — essencial para a aprendizagem e a memória —, influencia a formação de novos neurónios (neurogénese) e protege os neurónios em situações de stress.

O BDNF favorece também o aumento da massa cinzenta no hipocampo, região essencial à memória. A interacção social, frequente em profissões cognitivamente exigentes, reforça ainda mais estes efeitos, ao activar simultaneamente áreas cognitivas e emocionais.

Trabalhar é treinar o cérebro

Ainda que a investigação sublinhe que se trata de uma correlação e não de uma causalidade comprovada, a consistência dos dados dos estudos realizados, em particular da investigação norueguesa, reforça a necessidade de se olhar para o trabalho não apenas como um meio de sustento ou de realização profissional, mas também como uma ferramenta de saúde pública. A escolha de uma profissão, ou a possibilidade de a enriquecer com novas responsabilidades e aprendizagens, pode ter efeitos benéficos de longo prazo sobre o envelhecimento cerebral.

Todavia, os próprios autores do estudo reconhecem algumas limitações. O índice RTI, embora útil, não capta todas as nuances da complexidade cognitiva real de uma ocupação nem as trajectórias individuais. Além disso, factores como o stress crónico — muitas vezes presente em profissões exigentes — podem atenuar ou contrariar os benefícios cognitivos, sendo necessário ter em conta o equilíbrio entre desafio intelectual e bem-estar psicológico.

Adicionalmente, o estudo levanta também questões sociais e políticas importantes. O acesso a empregos que envolvem desafios intelectuais e autonomia é muitas vezes condicionado por factores estruturais de que são exemplo os níveis de escolaridade, a origem social, o contexto económico e as oportunidades no mercado de trabalho. Isto significa que a prevenção da demência não pode ser vista apenas como uma responsabilidade individual, exigindo também políticas públicas que incentivem a formação contínua, a mobilidade dentro das organizações, a aprendizagem ao longo da vida e o reconhecimento de competências não formais.

E se a genética e o envelhecimento são inevitáveis, as escolhas que fazemos — incluindo a forma como trabalhamos — podem desempenhar um papel essencial na forma como o cérebro envelhece.

Na prática, mesmo em profissões consideradas rotineiras, é possível procurar formas de estimular o cérebro: assumir novos desafios, participar em projectos diferentes, aprender uma nova competência ou envolver-se em actividades cognitivamente ricas fora do trabalho — como aprender uma língua, tocar um instrumento, praticar voluntariado ou simplesmente manter o gosto pela leitura e pelo conhecimento.

“Os nossos resultados mostram o valor de ter uma ocupação que exige pensamento complexo como forma de manter a memória e a capacidade cognitiva na velhice”, afirmou Trine Edwin, uma das investigadora principais do estudo e que produziu um artigo cientifico a comentar os seus resultados. Já Dorene Rentz, da Harvard Medical School e num artigo publicado pela Universidade de Columbia, resumiu a mensagem de forma simples: “Se usarmos o cérebro, é menos provável que o percamos”.

Não se trata de uma promessa milagrosa, mas de uma via promissora, ancorada em evidência científica: cultivar a curiosidade, o pensamento crítico e o envolvimento intelectual — no trabalho e fora dele — é um investimento precioso na saúde do nosso cérebro.

Num mundo onde o trabalho tende a ser medido apenas em termos de produtividade, repensá-lo como instrumento de bem-estar cognitivo pode ser um dos maiores desafios — e uma das maiores oportunidades — das sociedades envelhecidas.


Demência no mundo e a realidade portuguesa

Com a demência projectada para ser a terceira principal causa de morte até 2040 e afectando milhões de pessoas em todo o mundo, a urgência de uma resposta preventiva ganha novo fôlego.  De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 55 milhões de pessoas vivem actualmente com demência, sendo esperado que esse número ultrapasse os 150 milhões até 2050. De acordo com a mesma entidade, 1,6 milhões de pessoas morreram no mundo em 2019 devido a demência, que se tornou então a sétima causa de morte.

No que respeita à Europa e num artigo da revista Nature, é revelado que a prevalência de demência e de défice cognitivo ligeiro em adultos mais velhos, por exemplo, varia de forma significativa entre os países europeus — de 4,5% na Suíça a 22,7% em Espanha no caso da demência, e de 17,2% na Suécia a 31,1% em Portugal no caso do défice cognitivo ligeiro. A maior parte desta variação pode ser explicada pelas diferenças nos níveis de educação alcançados durante a juventude. Este dado reforça a importância de investir não apenas em políticas de bem-estar no trabalho, mas também em sistemas educativos sólidos e equitativos que promovam capacidades cognitivas, autonomia e envolvimento ao longo de toda a vida activa.

Em Portugal, estimava-se, em 2019 e segundo a Alzheimer Europe, — que entre 150 mil a 200 mil pessoas sofriam de demência, com a doença de Alzheimer a representar a maioria dos casos. A prevalência nacional situava-se em cerca de 19,9 casos por mil habitantes, de acordo com o relatório Health at a Glance: Europe 2022 da OCDE — um valor superior à média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico — o qual estimava também que apenas cerca de 25% dos casos estavam, na altura, devidamente diagnosticados.

As projecções para 2080 são particularmente preocupantes: o número de pessoas com demência poderá duplicar, ultrapassando as 450 mil, com maior incidência entre as mulheres e nas faixas etárias mais avançadas. E já em 2050, segundo estimativas da Alzheimer Europe, prevê-se que 346 905 pessoas estejam a viver com a doença de Alzheimer ou outro tipo de demência em Portugal, o que corresponderá a 3,82% da população do país.

Este panorama nacional reforça a urgência de estratégias preventivas e multidimensionais. Num país onde o envelhecimento demográfico é acelerado, a criação de ambientes profissionais que promovam o estímulo cognitivo e o desenvolvimento contínuo pode ser decisiva para atenuar o impacto da demência nas próximas décadas.

Imagem: ©Google Deepmind/unsplash.com

Editora Executiva

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