POR MÁRIA POMBO
Os números são pesados. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 21 milhões de pessoas são actualmente vítimas de trabalho forçado em todo o mundo, com as mulheres a representarem cerca de 11,4 milhões desta (muito provavelmente aquém) estimativa e os homens nove milhões. O sector privado é aquele que mais abusa, dando trabalho de forma ilícita e desumana a quase 19 milhões de pessoas e gozando chorudos lucros provenientes desta exploração que, estima-se, ultrapassam os 150 mil milhões de dólares. As indústrias da agricultura, construção, serviços domésticos e manufactura são aquelas onde se regista o maior número de vítimas e as que mais contribuem para os maiores proveitos por parte dos empregadores. Contudo, também o sector público tem culpas no cartório, ao explorar mais de dois milhões de pessoas, essencialmente nas forças militares, ainda de acordo com a OIT.
É na região da Ásia-Pacífico que se encontra o maior número de vítimas: ao todo contam-se cerca de 11,7 milhões de trabalhadores forçados, o equivalente a 56% do total. Com 3,7 milhões de trabalhadores ilegais (18%), África fica em segundo lugar neste ranking da vergonha, sendo seguida pela América Latina, que emprega de forma ilícita cerca de 1,8 milhões de pessoas (correspondendo a 9%). Na União Europeia e nas economias desenvolvidas somam-se um milhão e meio (rondando os 7%) de trabalhadores ilegais, à semelhança do que também se verifica nos países da Europa de Leste.
A OIT revela ainda que 11,8 milhões de pessoas (correspondendo a 56%) são forçadas a trabalhar de forma ilícita nas suas zonas de residência e que 9,1 milhões de vítimas (ou seja, 44%) são migrantes, trabalhando noutras noutros países ou em regiões afastadas da área de residência mas dentro do seu país.
A indústria das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) é um dos sectores mais propensos a abusos, na medida em que os trabalhadores que produzem os componentes para as cadeias de fornecimento das empresas de tecnologia são, geralmente, migrantes, particularmente vulneráveis a explorações, não só durante o processo de recrutamento, como nos próprios locais de trabalho.
A título de exemplo e de acordo com um estudo, realizado em 2014 pela Verité – uma plataforma empenhada em garantir que as pessoas, a nível mundial, trabalham de forma justa, segura e legal – indica que na Malásia (um país com elevadas taxas de imigração) cerca de um terço dos estrangeiros que trabalham na indústria electrónica está em situação de trabalho forçado. As ilegalidades começam logo na fase de recrutamento, onde são prometidos salários irrecusáveis e condições inimagináveis a troco de taxas pagas pelos candidatos que fazem tudo por uma oportunidade. Contudo, a realidade de irrecusável tem pouco e de inimaginável tem bastante, mas pelos piores motivos: estes trabalhadores são privados do passaporte e de todos os documentos pessoais de identificação, e são obrigados a trabalhar de sol a sol, muitas vezes sem remuneração e sem condições básicas de higiene e segurança.
Dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o oitavo pretende promover o crescimento económico e o trabalho adequado para todos e que sejam criadas medidas que “erradiquem o trabalho forçado, a escravatura moderna e o tráfico humano”. Contudo, e como se pode comprovar, esta meta está bastante longe de ser alcançada.
Empresas de TIC pouco empenhadas em abolir a exploração laboral
Reconhecendo que a utilização de parâmetros de referência pode influenciar as empresas a adoptar medidas que melhorem a sua conduta, a KnowTheChain (KTC) avaliou 20 empresas de TIC, com base em sete indicadores que permitem analisar que políticas implementam e que esforços fazem – ou não – para erradicar o trabalho forçado e o tráfico humano. Esta organização sem fins lucrativos foi criada pela Humanity United e assume-se actualmente como um recurso útil para as empresas e investidores que pretendem compreender os meandros do trabalho forçado e dos abusos que ocorrem nas suas cadeias de fornecimento, dando-lhes ferramentas para que possam inverter esta situação.
Compromisso e governação, rastreio e avaliação de risco, práticas de compras, recrutamento, garantia de que é dada voz aos trabalhadores, acompanhamento e monitorização, e também resolução de problemas são os sete temas a partir dos quais as empresas de tecnologia foram avaliadas, tendo sido atribuída uma pontuação entre zero e 100 valores a cada uma. Estes indicadores assumem-se também como padrões de referência que podem ser úteis a outras empresas que não fazem parte da análise mas que querem analisar o seu desempenho em termos de políticas de extinção do trabalho ilícito.
As empresas que figuram neste relatório foram escolhidas com base na sua dimensão e na origem das receitas dos seus produtos e serviços. O director de projecto da KTC, Kilian Moot, explica que a indústria das TIC tem feito progressos na última década, mas que as acções promovidas pelas empresas no geral ainda não alcançaram resultados satisfatórios.
A HP é a líder deste ranking e aquela que revelou o maior nível de transparência e empenho no que à erradicação do trabalho forçado diz respeito, conseguindo “angariar” 72 pontos. O principal motivo para esta pontuação reside na sua política de recrutamento, considerando que, ao contrário das restantes, esta empresa contrata directamente os seus trabalhadores, dispensando o trabalho de intermediários. Com 62 pontos, a Apple – que nem sempre é citada pelas melhores razões no que às suas políticas de responsabilidade social dizem respeito – ocupa a segunda posição nesta análise, na medida em que tem cumprido a sua intenção de devolver aos trabalhadores as taxas já anteriormente citadas que funcionam como “pagamento” no recrutamento. De acordo com o relatório, só em 2015, a empresa “devolveu” 4,7 milhões de dólares aos seus trabalhadores, sendo que, desde 2008, os valores devolvidos aos que foram burlados pelas agências já ultrapassaram os 25 milhões de dólares.
A Intel, a Cisco e a Microsoft também conseguiram obter pontuações satisfatórias, reunindo 59, 58 e 57 pontos, respectivamente. No fundo da tabela encontram-se a empresa japonesa Canon, que auferiu apenas 12 pontos, e a chinesa BOE Technology, com quatro pontos. Por fim, e sem qualquer ponto, a também japonesa Keyence revela não ter a menor preocupação ou interesse em acabar com o trabalho forçado ou com o tráfico humano.
De acordo com os indicadores utilizados na análise, 18 das 20 empresas que integram o estudo demonstram preocupações em erradicar o trabalho ilícito nas suas cadeias de fornecimento. Contudo, há claramente um caminho ainda muito longo a percorrer, tendo em conta que foram poucas as que revelaram estar a implementar mecanismos fortes e eficientes para extinguir a aquela que é considerada a escravatura do século XXI. Mais de metade das organizações analisadas teve uma classificação inferior a 50.
A “afonia” dos trabalhadores
Para tornar a análise mais útil, não foram apenas as empresas que foram avaliadas: todas as temáticas receberam igualmente uma pontuação “individual” com base na média dos resultados obtidos, com vista a avaliar em que aspectos estão estas mais empenhadas e em quais precisam de assumir um maior compromisso.
Apesar de existirem sete temas, a garantia de que é dada voz aos trabalhadores, o recrutamento e a avaliação de risco foram os que mais se destacaram na análise, tendo sido encarados como elementos-chave para a promoção dos direitos humanos nas cadeias de fornecimento das empresas.
A garantia de que é dada voz aos trabalhadores mede a forma como as empresas comunicam proactivamente com os funcionários das suas cadeias de fornecimento, bem como se estas promovem a liberdade de associação e garantem o acesso a mecanismos confiáveis e eficientes de reclamação de direitos, por parte dos trabalhadores. De acordo com o índice, esta foi a temática que obteve a pontuação mais baixa (a média foi de apenas 16 pontos em 100), o que significa as empresas em geral não garantem que os trabalhadores mais vulneráveis sejam ouvidos, nem que as suas dúvidas sejam esclarecidas de forma adequada. Os resultados demonstram também que a liberdade de associação não é concedida aos trabalhadores.
A fase de recrutamento (que obteve apenas 19 pontos) é também uma das áreas em que os abusos são mais notórios. Este tópico analisa a abordagem das empresas para reduzir o risco de exploração dos trabalhadores das cadeias de abastecimento por agências de recrutamento. Eliminar o pagamento de “taxas” por parte dos trabalhadores durante o processo de recrutamento, em toda a cadeia é o seu grande objectivo o qual, como se pode verificar pela baixa pontuação, não tem sido cumprido.
De acordo com o documento da KTC, é particularmente nesta fase que os trabalhadores correm grandes riscos, considerando que são forçados a pagar taxas elevadas para terem uma oportunidade que acaba por não coincidir com o prometido. A larga maioria das empresas analisadas revela não ter uma abordagem específica ao recrutamento, demonstrando a sua incapacidade de mitigar o tráfico humano e o trabalho forçado. Apenas duas empresas – a Apple e a Cisco – asseguram aos trabalhadores o reembolso das taxas que pagaram, garantindo, assim, que seguem uma “política sem-taxas”. Complementarmente, três organizações assumem fazer auditorias ao recrutamento, mas não divulgam os detalhes desta acção.
O item “avaliação de risco” obteve 46 pontos e revela que algumas empresas de TIC estão a tomar algumas medidas, as quais dizem respeito a outros fornecedores para além dos de primeiro nível, indicando que também é possível rastrear outras fases, como a do fabrico/produção do produto final. A maioria das empresas revelou preocupação com a questão dos “minerais de conflito” (um dos grandes problemas da actualidade) na sua cadeia de fornecimento, e diversas empresas revelaram até os nomes e a localização de algumas refinarias que lhes fornecem materiais e que não exploram os seus funcionários.
De acordo com o Parlamento Europeu, “a extracção ilegal dos designados ‘minerais de conflito’, como o ouro, o cobalto e o coltan é uma constante na região oriental da República Democrática Congo e na região dos Grandes Lagos”. A mesma instituição explica também que “os lucros obtidos são utilizados no financiamento dos conflitos locais”, os quais se traduzem em “violações de direitos humanos, coerção e trabalho infantil”.
O esforço que tem sido feito pelas empresas para promover os direitos humanos, em termos de risco para os trabalhadores, está a ter alguns resultados, apesar de os mesmos ficarem muito aquém do que seria de esperar: o próximo passo será proceder à avaliação dos riscos do trabalho forçado ao longo de toda a cadeia de fornecimento. É neste aspecto que se encontram ainda grandes falhas, tendo em conta que apenas três empresas conduziram avaliações de risco de trabalho forçado com enfoque em questões específicas, regiões ou grupos de trabalhadores vulneráveis.
Pequenos passos não chegam para colocar fim à exploração laboral
Contudo, nem tudo é negativo nesta análise. O compromisso e a governação avaliam a forma como as empresas se empenham em enfrentar o trabalho forçado através de normas nas cadeias de fornecimento, processos de gestão, programas de formação e também a partir do envolvimento com os seus stakeholders. Este indicador foi o que reuniu uma pontuação mais elevada (64 pontos) e demonstra que existe uma consciência generalizada de que é importante abordar a questão do trabalho forçado nas cadeias de fornecimento de produtos. Apesar de seis empresas não possuírem ainda códigos de conduta que proíbam a exploração laboral, algumas (de que são exemplo a HP e a Apple) estão a promover acções de formação sobre direitos humanos junto dos seus fornecedores.
A questão das práticas de compras obteve 43 pontos. Este indicador dá conta da consciência revelada pelas empresas relativamente ao seu processo de selecção dos fornecedores e à forma como as suas acções podem agravar a exploração laboral ao longo de toda a cadeia de fornecimento. De acordo com a análise, três empresas reconhecem que certas práticas, como as flutuações da procura e os contratos de curto prazo, podem aumentar os riscos de trabalho forçado nas suas redes de abastecimento. Complementarmente, 10 organizações afirmam integrar os seus padrões de conduta nos contratos com os fornecedores.
Já o “acompanhamento e monitorização” – que avalia o tipo de auditorias, e respectivos resultados, que as empresas fazem aos fornecedores – obteve 47 pontos. Muitas empresas realizam auditorias, analisando documentos e fazendo entrevistas aos trabalhadores. Contudo, apesar de seis organizações revelarem que efectuam estas fiscalizações de forma não anunciada, as mesmas não indicam quantos fornecedores já auscultaram nem com que frequência o fazem.
Finalmente, a última questão – sobre a resolução de problemas – permite analisar até que ponto as empresas têm planos de acção para corrigir os erros dos seus fornecedores que não cumprem os requisitos legais mínimos; neste ponto, analisam-se também os processos utilizados pelas organizações para recompensar os trabalhadores que são explorados ao longo das redes de abastecimento. Este indicador reuniu apenas 39 pontos, em cem disponíveis. É através dos seus códigos de conduta relativos às cadeias de fornecimento que 11 empresas actuam, caso os fornecedores não corrijam os seus erros junto dos trabalhadores. O documento indica que, apesar de quatro empresas descreverem o processo de ressarcimento dos danos dos trabalhadores, apenas duas (a Intel e a Apple) deram exemplos concretos de recompensas que já realizaram juntos de trabalhadores burlados.
No fundo, estes indicadores de referência permitem avaliar as empresas (de TIC e não só) no que respeita às medidas adoptadas por estas para promover os direitos humanos e abolir o trabalho forçado em toda a sua cadeia de fornecimento. Os mesmos são igualmente úteis para melhorar (ou diminuir) a sua reputação junto dos consumidores. Complementarmente, o facto de a cada indicador ter sido atribuída uma pontuação com base na média de todas as empresas analisadas permite perceber em que patamar o mesmo se encontra, que esforços em geral estão a ser feitos e que passos devem ainda ser dados para acabar com a escravatura do Século XXI.
Como se pode concluir, o fim da exploração laboral nas cadeias de fornecimento é ainda uma utopia. São diversas as empresas que já possuem códigos de conduta relacionados com as redes de abastecimento, mas são ainda poucas aquelas que os integram nos contratos com os fornecedores. Adicionalmente, só uma minoria realiza auditorias sem aviso prévio, nas quais se incluem entrevistas aos funcionários e análise de documentos.
Depois das empresas de TIC, a KnowTheChain pretende avaliar, ainda em 2016, outros sectores, como a restauração, o vestuário e o calçado, de modo a melhorar as políticas e práticas seguidas pelas empresas no que respeita à promoção dos direitos humanos nas suas redes de abastecimento.
Jornalista