O mundo do trabalho está a perder o seu centro vital: o envolvimento humano. O mais recente relatório State of the Global Workplace 2025, da Gallup, revela uma realidade inquietante — mais de seis em cada dez trabalhadores vivem entre a apatia e o distanciamento emocional, e os gestores, esgotados e sem apoio, são agora a variável crítica desta crise silenciosa. A Europa lidera nos índices de desmotivação, num cenário onde o cansaço colectivo ameaça a saúde, o propósito e a economia global. E Portugal, apesar de alguns sinais de esperança, partilha também desta realidade de desgaste emocional
POR HELENA OLIVEIRA
Atravessamos um tempo em que os desafios do mundo do trabalho se tornaram também desafios humanos. O mais recente relatório da Gallup, State of the Global Workplace 2025, oferece um diagnóstico claro: os níveis de envolvimento e bem-estar dos trabalhadores caíram drasticamente em quase todas as regiões do mundo. A Europa destaca-se negativamente, com apenas 13% de colaboradores realmente envolvidos nas suas funções. E, mais preocupante ainda, 17% afirmam-se abertamente desmotivados.
Por outro lado, e para quem prefere números às palavras, no ano passado, a diminuição do empenho global dos trabalhadores custou à economia mundial 438 mil milhões de dólares em perdas de produtividade. E, de acordo com a Gallup, a principal causa foi uma quebra no empenho dos gestores, na medida em que e desde a pandemia, tem-lhes sido pedido que façam a “quadratura do círculo” entre as novas exigências dos executivos e as expectativas dos trabalhadores. Assim, os resultados parecem estar à vista: a sua falta de engagement afecta o desempenho e a motivação das equipas, o que, por sua vez, afecta a produtividade. O desempenho das empresas — e, em última análise, o crescimento do PIB — está em risco se os líderes executivos não enfrentarem o problema da desmotivação dos gestores, alerta a Gallup. Segundo o relatório, se a força laboral estivesse plenamente empenhada, poderiam ser gerados mais 9,6 biliões de dólares em produtividade, o que representaria um acréscimo de 9% ao PIB mundial.
Em termos gerais e ao estarmos a atravessar uma transformação profunda, marcada por tensões económicas, tecnológicas e humanas, não é de estranhar que o relatório State of the Global Workplace 2025 trace um retrato tão inquietante da experiência laboral global: em 2024, a percentagem global de trabalhadores empenhados caiu de 23% para 21%. Este valor só caiu duas vezes nos últimos 12 anos, em 2020 e 2024 e a queda de dois pontos no envolvimento do ano passado foi igual ao declínio durante o ano de confinamentos devido à COVID-19. Adicionalmente, mais de seis em cada 10 trabalhadores vivem entre a apatia e o distanciamento emocional. Esta perda de envolvimento está a custar, como já referido, milhares de milhões à economia mundial e, consequentemente, a comprometer o bem-estar de milhões de pessoas.
A crise silenciosa da liderança
Uma das conclusões mais expressivas do relatório é a centralidade do gestor na experiência de trabalho das pessoas. Segundo a Gallup, cerca de 70% da variação no nível de envolvimento de uma equipa depende directamente do seu líder. E são precisamente os gestores que hoje se encontram sob maior pressão e com menores níveis de engagement.
Os dados apresentados no relatório concluem que o nível de engagement dos managers caiu de 30% para 27%, enquanto entre os colaboradores sem funções de liderança o valor manteve-se estável. Nenhum outro grupo — seja em termos de género como de faixa etária — registou uma descida tão significativa.
Duas categorias de gestores destacam-se pela vulnerabilidade: os mais jovens e as mulheres. Entre os gestores com menos de 35 anos, o envolvimento com o trabalho caiu cinco pontos percentuais. Já entre as mulheres em funções de liderança, a queda foi ainda mais acentuada — sete pontos.
Esta quebra acontece num contexto de elevada instabilidade organizacional. Nos últimos cinco anos, as empresas enfrentaram disrupções sucessivas: reformas antecipadas e rotatividade no pós-pandemia, ciclos de contratações e despedimentos, equipas e departamentos reestruturados à pressa, orçamentos reduzidos com o fim dos programas de estímulo, cadeias de fornecimento afectadas, novas exigências por parte dos clientes, a adopção acelerada de ferramentas digitais e de inteligência artificial, a par de mudanças profundas nas expectativas dos trabalhadores, sobretudo no que diz respeito à flexibilidade e ao trabalho remoto.
Assim e como conclui a Gallup, “o gestor tornou-se a variável crítica da equação do bem-estar no trabalho”, sendo que a fragilidade desta figura se reflecte em toda a estrutura: quando o líder está desmotivado, a equipa sofre. Quando não há tempo para escutar, orientar ou desenvolver os colaboradores, o resultado é o afastamento emocional e a estagnação.
Europa: o continente da apatia laboral
Apesar de manter índices mais baixos de stress, tristeza e solidão (igualmente avaliados no relatório) quando comparada com outras regiões do mundo, a Europa destaca-se negativamente em quase todos os indicadores relacionados com o envolvimento profissional. A taxa de envolvimento de 13% é a mais baixa de todas as regiões avaliadas, e mesmo os que não se dizem “activamente desmotivados” revelam níveis altos de desinteresse e cinismo. Para além disso, 17% dos inquiridos dizem-se activamente desmotivados, enquanto menos de metade (47%) afirma estar “a prosperar” nas suas vidas. Esta realidade aponta para um cenário de estabilidade emocional relativa, mas de desânimo e falta de propósito no contexto profissional.
Um dado curioso: apesar da falta de entusiasmo, os trabalhadores europeus têm uma visão mais positiva do mercado laboral. Cerca de 57% considera que este é um “bom momento para encontrar emprego” — um aumento de cinco pontos percentuais face a 2023. No entanto, paradoxalmente, apenas 30% estão activamente à procura de novas oportunidades — o valor mais baixo do mundo.
Este paradoxo parece apontar para uma espécie de resignação: os trabalhadores não estão satisfeitos, mas também não acreditam que a mudança seja possível ou desejável. Falta propósito, falta confiança, falta energia.
Bem-estar em erosão: um sintoma global
O relatório mostra que apenas 33% dos trabalhadores, a nível global, afirmam estar a “prosperar” nas suas vidas — uma outra queda face a anos anteriores. Nesta variável em concreto, o declínio é particularmente acentuado entre gestores mais velhos e mulheres em cargos de liderança, reflectindo uma combinação de desgaste prolongado, ausência de apoio e ambientes organizacionais tóxicos ou indiferentes.
Mais do que um simples indicador de satisfação, o bem-estar mostra-se intimamente ligado ao desempenho. Os trabalhadores que se sentem bem na sua vida pessoal estão mais envolvidos no trabalho. Já os que vivem em constante frustração ou tristeza revelam níveis significativamente mais altos de stress, absentismo, conflitos e até problemas de saúde mental.
Três caminhos possíveis: reconstruir a partir da liderança
Apesar do tom sombrio de muitos indicadores, o relatório deixa uma mensagem clara: é possível inverter a tendência. E o ponto de partida está no investimento estratégico e humano na figura do gestor.
A Gallup propõe três medidas concretas para essa transformação. A primeira passa pela formação intencional de gestores: apenas 44% afirmam ter recebido formação adequada para o seu cargo, sendo que o acesso a programas de capacitação pode reduzir quase para metade os níveis de desmotivação. A segunda aposta é o desenvolvimento de competências de coaching, promovendo práticas de liderança que valorizem o feedback, a orientação e a escuta ativa — factores que podem melhorar o desempenho dos gestores entre 20% e 28%. Por fim, a terceira medida incide na promoção do bem-estar dos líderes: quando acompanhada por um apoio organizacional consistente, a formação tem o potencial de elevar o índice de bem-estar dos gestores de 28% para 50%.
Além disso, o relatório defende uma mudança na forma como se mede o sucesso: “Organizações que colocam o desenvolvimento humano no centro da sua estratégia empresarial são mais resilientes, mais éticas e mais sustentáveis.” Apostar no envolvimento dos colaboradores e no florescimento dos gestores não é apenas uma escolha de liderança: é uma decisão económica inteligente, com impacto directo nos resultados e na retenção de talento.
Humanizar o trabalho: uma urgência ética e económica
Num momento de mudança profunda, o State of the Global Workplace 2025 é mais do que um estudo de tendências: é um alerta. O futuro do trabalho não se constrói com plataformas digitais, mas com relações humanas de confiança. O bem-estar não nasce da redução de custos, mas da valorização das pessoas. E a produtividade não pode ser alcançada à custa do esgotamento colectivo.
Se há algo que o relatório deixa claro é o seguinte: as empresas que cuidarem dos seus líderes e ouvirem os seus colaboradores estarão mais bem preparadas para enfrentar os desafios de um mundo cada vez mais exigente. O tempo da liderança “técnica” e distante acabou. O futuro pede líderes humanos, formados, que saibam escutar e que estejam genuinamente comprometidos com o desenvolvimento das suas equipas.
Este relatório é, em última análise, um apelo. Não apenas à melhoria de indicadores, mas à construção de comunidades de trabalho mais compassivas, mais justas, mais orientadas para o bem comum. Empresas que cuidam das suas pessoas — que as escutam, que lhes devolvem propósito, que humanizam a sua liderança — não são apenas mais produtivas. São mais humanas. E, por isso, mais necessárias.
No contexto europeu, onde tantos se sentem desligados e pouco valorizados, esta é talvez a mensagem mais urgente: o futuro do trabalho passa por uma liderança que sirva, uma gestão que escute e uma cultura que inspire.
Portugal: entre o cansaço e a esperança
Num continente onde reina a apatia laboral, Portugal revela-se um país em transição emocional e profissional. Os dados do relatório State of the Global Workplace 2025 desenham um cenário ambivalente: há sinais de dinamismo, mas também uma fadiga latente que não pode ser ignorada.
Por um lado, 19% dos trabalhadores portugueses sentem-se envolvidos com o seu trabalho, valor acima da média europeia (13%), ainda que distante do ideal. Por outro, 43% relatam níveis elevados de stress diário, e quase um quarto confessa ter sentido tristeza no dia anterior [ao inquérito realizado pela Gallup]. Mesmo com os indicadores de raiva (8%) e solidão (10%) entre os mais baixos da Europa, a sensação de desgaste é real.
Curiosamente, Portugal é um dos países onde mais se acredita que este é um bom momento para procurar emprego: 60% partilham dessa visão — e 36% estão mesmo a procurar activamente novas oportunidades. Este facto pode sinalizar uma abertura a novos começos, mas também revela uma inquietação que desafia as lideranças a serem mais humanas, presentes e atentas.
Com apenas 38% da população a dizer que está a “prosperar” na vida, Portugal situa-se algures entre o desalento dos países mais pressionados e a esperança dos que procuram novos caminhos. Estes números não são apenas indicadores económicos: são sintomas de uma cultura laboral que precisa de ser regenerada — com escuta, com propósito, com justiça.
Foto: ©M Chee Lee/Unsplash.com
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