De acordo com o ranking anual elaborado pela revista Forbes, que analisa a performance financeira das 2 mil empresas mais lucrativas do mundo, 722 das que integram esta lista arrecadaram mais de um bilião de dólares em lucros extraordinários em 2021 e 2022, ao mesmo tempo que milhares de milhões de pessoas foram obrigadas a cortar na sua alimentação ou a passar fome no mesmo período. A tributação destas receitas extraordinárias, e como medida genuinamente socialmente responsável, está a ser discutida na Europa e em outros países do mundo, com a Oxfam e a ActionAid a apelarem fortemente para que este imposto passe a ser uma realidade, ao mesmo tempo que acusam empresas de todos os sectores de terem uma quota-parte significativa de culpa no que respeita ao aumento da inflação. Todavia, a esperança para que esta tributação aconteça é muito diminuta
POR HELENA OLIVEIRA

Longe vão os tempos em que empresas como a General Electric, a AIG ou o City Bank figuravam nos lugares cimeiros das empresas mais lucrativas do mundo. Na 20ª edição do ranking “Global 2000”, publicado pela revista Forbes, o cenário agora é outro e bem diferente.

Entre as empresas que integram o top 10 em 2023, o JPMorgan ocupa o pódio, a Saudi Arabian Oil Company está em 2º lugar, seguida por três gigantescos bancos estatais chineses, o Bank of America, a Exxon-Mobil e por gigantes tecnológicos como a Apple, a Alphabet ou a Microsoft. O JPMorgan, o maior banco americano com 3,7 biliões de dólares em activos, está no topo da lista pela primeira vez desde 2011 e em contraponto com o número 1 do ano passado, a famosa Berkshire Hathaway do multimilionário Warren Buffett, que teve uma queda brutal devido a perdas não realizadas na sua carteira de investimentos, ocupando agora a 338ª posição.

Como se pode ler na introdução ao ranking pela revista Forbes, “o Global 2000 classifica as maiores empresas do mundo utilizando quatro métricas: vendas, lucros, activos e valor de mercado. No seu conjunto, as empresas da lista de 2023 representam 50,8 biliões de dólares em vendas, 4,4 biliões de dólares em lucros, 231 biliões de dólares em activos e 74 biliões de dólares em valor de mercado. Os lucros acumulados, os activos e o valor de mercado diminuíram ligeiramente em relação ao ano passado, embora esta seja a primeira vez que as receitas totais ultrapassam os 50 biliões de dólares. Há 58 países representados pelas empresas cotadas na lista. Os EUA lideram com 611 empresas no ranking, e a China vem em segundo lugar com 346 empresas no Global 2000”. Os dados recolhidos para a realização do ranking são referentes a 2022.

Adicionalmente e em conjunto, 722 das maiores empresas do mundo arrecadaram mais de 1 bilião de dólares em lucros extraordinários a cada ano nos últimos dois anos, – entre o aumento dos preços e das taxas de juros – enquanto milhares de milhões de pessoas foram obrigadas a cortar na sua alimentação ou a passar fome no mesmo período.

Estes valores astronómicos são, obviamente, excepcionais para o mundo corporativo, mas existem mais “mundos” no planeta, como por exemplo a pobreza extrema que aumentou significativamente no último ano ou as alterações climáticas que não param de bater recordes mais do que preocupantes, desafios globais estes que poderiam ser amenizados se estes lucros extraordinários fossem taxados.

A Oxfam e a ActionAid realizaram uma análise do ranking, tendo em conta dados de 2021 e 2022, tendo verificado que existiu um salto de 89% nos lucros totais comparativamente à média entre 2017 e 2020. Para esta análise, os lucros extraordinários são definidos como aqueles que excedem os lucros médios no período entre 2017 e 2020 em mais de dez por cento.

Vejamos, com mais pormenor, algumas das conclusões da análise das duas organizações sem fins lucrativos que lutam contra a pobreza e em prol da igualdade e que voltam a apelar para que estes lucros extraordinários sejam tributados em 90%, valor que é considerado mais do que excessivo pelos visados, mas que vários observadores encaram como a verdadeira “responsabilidade social” das empresas e que já é uma realidade (embora a tributação não seja tão elevada) no Reino Unido e na Itália, por exemplo. A matéria está igualmente a ser discutida na Europa e em outros países do mundo.

  • Foram 45 as empresas do sector energético que obtiveram, em média, 237 mil milhões de dólares por ano em lucros extraordinários em 2021 e 2022. De acordo com as duas ONG, os governos poderiam ter aumentado os investimentos globais em energia renovável em 31 por cento se tivessem tributado em 90 por cento estes colossais lucros que os produtores de petróleo e gás canalizaram para os seus accionistas super-ricos no ano passado. Existem agora 96 multimilionários do sector da energia com uma riqueza combinada de quase 432 mil milhões de dólares (mais 50 mil milhões de dólares do que em Abril do ano passado).
  • As empresas do sector alimentar e das bebidas, os bancos, as grandes empresas farmacêuticas e os grandes retalhistas também lucraram com a crise do custo de vida que, em 2022, fez com que mais de 250 milhões de pessoas em 58 países fossem atingidas por uma insegurança alimentar aguda.
  • No que respeita ao sector alimentar e de bebidas , as empresas mais lucram obtiveram,, em média, cerca de 14 mil milhões de dólares por ano em lucros extraordinários em 2021 e 2022, o suficiente para cobrir mais de duas vezes o défice de financiamento de 6,4 mil milhões de dólares necessários para prestar a assistência alimentar, a qual poderia ter salvado muitas vidas na África Oriental. A Oxfam calcula que uma pessoa morra de fome a cada 28 segundos na Etiópia, Quénia, Somália e Sudão do Sul. Ademais, os preços globais dos alimentos aumentaram mais de 14% em 2022.
  • No sector farmacêutico, 28 empresas obtiveram, em média, 47 mil milhões de dólares por ano em lucros extraordinários, com 42 grandes retalhistas e supermercados a auferir, em média, 28 mil milhões de dólares anuais também em lucros extraordinários.
  • Nove empresas aeroespaciais e de defesa obtiveram, em média, 8 mil milhões de dólares por ano em lucros “inesperados”, ao mesmo tempo que morrem 9 mil pessoas todos os dias de fome, em grande parte devido a conflitos e guerras.

Ganância, indiferença e assobiar para o lado

Num comunicado à imprensa, o director executivo interino da Oxfam International, Amitabh Behar, afirmou que “as pessoas estão fartas e cansadas da ganância das empresas” e que é “obsceno que as empresas tenham arrecadado milhares de milhões de dólares em lucros extraordinários, enquanto as pessoas em todo o mundo lutam para ter comida suficiente ou bens básicos como medicamentos e aquecimento”. Behar acrescentou ainda que “as grandes empresas estão a enganar-nos a todos, na medida em que aumentam os preços para obter lucros desmedidos, pilhando as pessoas sob a ‘máscara de uma policrise.”

Para o responsável da Oxfam, existem igualmente algumas empresas cada vez mais dominantes que estão a monopolizar os mercados e a fixar preços muito elevados “para encher os bolsos dos seus ricos accionistas”. Amitabh Behar aponta ainda o dedo às grandes farmacêuticas, aos gigantes da energia às grandes cadeias de supermercados que “engordaram descaradamente as suas margens de lucro durante a pandemia e a crise do custo de vida”, acrescentando que o mais preocupante é que, na ausência de regulamentação, incluindo a tributação progressiva, os governos convidaram a esta situação”.

Para a Oxfam, existem cada vez mais provas de que a especulação das empresas está a desempenhar um papel significativo no aumento da inflação, fazendo eco dos receios de que as empresas estejam a explorar a crise do custo de vida para aumentar as suas margens de lucro – uma tendência apelidada de “inflação gananciosa” e “inflação desculpada”. Adicionalmente, Christine Lagarde, Presidente do Banco Central Europeu, sugeriu em Maio que as empresas estão a praticar uma “inflação gananciosa”, enquanto o FMI publicou na semana passada um estudo que mostra que os lucros das empresas são responsáveis por quase metade do aumento da inflação na Europa nos últimos dois anos.

Adicionalmente, estudos revelam que nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Austrália, 54%, 59% e 60% da inflação, respectivamente, foram impulsionados pelo aumento dos lucros das empresas.

Afirmando que os enormes lucros das empresas coincidiram com a degradação dos salários e das condições dos trabalhadores, a Oxfam estima igualmente que os CEOs mais bem pagos em quatro países beneficiaram de um aumento real de 9 por cento em 2022, enquanto os salários dos trabalhadores diminuíram 3 por cento. Mil milhões de trabalhadores em 50 países sofreram um corte salarial médio de 685 dólares em 2022, o que representa uma perda colectiva de 746 mil milhões de dólares em salários reais, em comparação com o que aconteceria se os salários tivessem acompanhado a inflação.

Neste sentido, a Oxfam e a ActionAid estão a apelar aos governos para que recuperem os ganhos resultantes da especulação, asseverando que um imposto de 50 a 90 por cento sobre os lucros extraordinários das já citadas “mega-empresas” poderia gerar entre 523 mil milhões e 941 mil milhões de dólares em 2021 e 2022. Trata-se de dinheiro que poderia ser utilizado para ajudar as pessoas que lutam contra a fome, contra o aumento das facturas de energia e a pobreza nos países ricos, bem como para disponibilizar centenas de milhares de milhões de dólares para apoiar os países mais pobres.

Uma outra medida seria uma injecção de 400 mil milhões de dólares no fundo para perdas e danos acordado na COP27 no ano passado. As necessidades de financiamento de perdas e danos são urgentes, com estimativas que indicam que os países de baixo e médio rendimento poderão enfrentar custos de até 580 mil milhões de dólares por ano até 2030. O Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, apelou também aos países ricos para que imponham impostos extraordinários às empresas de combustíveis fósseis e redireccionem esse dinheiro para os países vulneráveis que estão a sofrer perdas cada vez maiores devido à crise climática.

A Oxfam e a ActionAid apelam também à cobertura do défice de financiamento (440 mil milhões de dólares) para assegurar a  protecção social universal e dos cuidados de saúde a mais de 3,5 mil milhões de pessoas que vivem em países de baixo e médio-baixo rendimento, bem como o défice de financiamento (148 mil milhões de dólares) para assegurar o acesso universal ao ensino pré-primário, primário e secundário nesses mesmos países. Esta medida apoiaria a contratação de milhões de novos professores, enfermeiros e profissionais de saúde nos países em desenvolvimento.

Como também afirma Arthur Larok, Secretário-Geral da ActionAid, a política governamental não deve permitir que as mega-empresas e os multimilionários lucrem com o sofrimento das pessoas. “Os governos têm de tributar os lucros extraordinários das empresas de todos os sectores – e investir esse dinheiro na ajuda às pessoas e na dissuasão de futuros lucros”.

Para este responsável, tributar os lucros extraordinários é uma política económica inteligente e uma fonte muito clara e directa de dinheiro para o desenvolvimento e para combater as alterações climáticas. “Não faz qualquer sentido impor mais empréstimos aos países mais pobres, quando a dívida está a acelerar a crise climática”, acrescenta.

Imagem: © Mathieu Stern em Unsplash

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