Quando um Congresso de empresários inclui o tema “Um Olhar de Esperança no Mundo Atual” não é nada bom sinal. De facto, a realidade social e económica não vai bem orientada, e vai ficar bem pior antes de melhorar. As sombras que se levantam são das mais graves. Fala-se de ameaças à democracia e às regras globais, de ataques à economia, ao comércio e iniciativa empresarial e até de violações de direitos humanos e da paz. Estes elementos e outros configuram um recuo da civilização. Por isso temos dificuldade em ter esperança
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES
- O mundo “não-ficção”
Como é que isto aconteceu? A verdade é que não aconteceu. Claro que existem muitos problemas e graves, mas a civilização continua tão dominante como antes. Sabemos isso se olharmos para a nossa vida quotidiana, que continua igual. A razão por que temos dúvidas, é que hoje vivemos mergulhados em “não-ficção”.
A “não-ficção” é a parte dos media (televisão, rádio, jornais, internet, etc.) que trata da realidade. Os nossos filhos vivem num mundo de ficção, de videojogos e séries televisivas. Nós, pessoas responsáveis, vivemos na não-ficção. Aí reinam as notícias, comentadores, debates e reportagens. A maior parte das razões por que não temos esperança vêm, não da realidade que vivemos, mas daquilo que recebemos através da não-ficção. Durante o dia as coisas até andam bem. Só ficamos aflitos com o telejornal.
Existe, felizmente muita informação de alta qualidade dentro da não-ficção, mas dois processos têm distorcido esse processo. Primeiro, a ficção invade a não-ficção. O que ouvimos não são factos, mas explicações, interpretações, ideologias. Muita da não-ficção é dominada por “fake news”, “reality shows”, polémicas doutrinais. Cada vez mais gente tira as suas notícias de “redes sociais”, blogs, podcasts, que são fontes inquinadas por algoritmos ou interesses.
Claro que toda a abordagem à realidade é sempre interpretativa. Não há informação neutra e acética. Mas a informação de qualidade, como a ciência, parte de um modelo, que depois é testado na realidade. Pelo contrário, a manipulação ideológica raramente tem um modelo; possui apenas uma explicação. Depois também vai à realidade, não testar a ideia, mas colecionar todos os factos que a confirmam, descartando todos os que a rejeitam. Assim prova-se qualquer coisa. O propósito não é informação; é retórica.
O segundo movimento é que a própria não-ficção invade o governo. Cada vez mais temos políticos que vão para a televisão e, muito pior, comentadores, “influencers” e “pivots” que vêm para deputados ou ministros. O presidente americano, que apresentou um “reality show” durante 14 anos, encheu a sua administração de personalidades mediáticas. Até Portugal tem um ex-comentador desportivo como líder partidário.
- A fantasia pagã
Como distinguir a informação de qualidade da manipulação? Claro que a escolha da fonte é decisiva. Em geral, porém, o engano revela-se pelo que podemos chamar os “três princípios da fantasia”.
As abordagens enviesadas partem sempre do axioma que o mundo está dividido em dois grupos: os maus, muito maus, monstros irracionais, zombies, psicopatas sem redenção, por um lado, e os bons, génios maravilhosos, super-heróis, que nunca falham e ganham sempre. Daí se deduz o segundo elemento: a vida real é uma guerra impiedosa contra o mal, sem quartel nem negociações ou tréguas; aí, nós, que somos as vítimas, podemos agredir justamente os que se nos opõem sem piedade. O terceiro elemento é que os problemas que temos, causados pelos vilões, têm uma solução simples, mágica, desde tomemos a medida o super-herói propõe, como expulsar os imigrantes, colocar tarifas, etc.
Estes princípios não surgiram em Hollywood ou na Marvel. Eles já estavam na Odisseia de Homero ou nas Metamorfoses de Ovídio. Por isso podem ser chamados de “princípios do paganismo”. Note-se que eles estão sempre cheios esperança no salvador mítico. O problema dessa esperança é o mesmo da fantasia: não é realista. Mas quando essa esperança falha, há sempre outro mito a surgir.
- O realismo cristão
Como podemos ter esperança neste mundo? O mundo é o que é, mas a esperança vem de olhar para ele de outra forma. Temos de abandonar a fantasia e ser realistas, substituindo os princípios da fantasia pelos três princípios da objetividade cristã.
A abordagem eclesial à realidade baseia-se em três elementos fundamentais: primeiro, Deus criou o mundo, e o mundo é muito bom e, segundo, o nosso pecado introduz o mal nesse mundo bom. Estes dois primeiros postulados são comuns a outras religiões, como Judaísmo, Islão, etc. O terceiro é o contributo realmente cristão: após o pecado, Deus não nos abandonou, mas veio pessoalmente salvar-nos. Esta é a visão cristã de toda a realidade, incluindo as nossas empresas e mercados.
À primeira vista, é um modelo muito parecido com o anterior. Por isso é que ele engana, e tantos se dizem cristãos sendo realmente pagãos. Mas existem três diferenças fundamentais entre as duas visões.
Primeiro, na doutrina cristã não há os bons e os maus. Todos somos bons e maus. Todos somos pecadores e temos de nos converter. Os nossos adversários, mesmo os mais terríveis, têm as suas razões, os seus grãos da Verdade, que nos escapam e nos podem ensinar. Segundo, é verdade que existe uma magna e terrível luta entre o bem e o mal, mas essa acontece todos os dias, dentro de mim, nos meus ossos. Terceiro, e mais importante é a atitude que daí resulta.
Na visão pagã, as pessoas estão indignadas, ofendidas, furiosas. Da visão cristã o principal resultado é a gratidão por tudo o que recebemos de Deus. Deus é maior que o mal, e até do mal tira o bem. O sistema económico e político, tudo aquilo de que justamente criticamos os defeitos, tem de ser, antes da crítica, reconhecido como bom. Tudo o que temos e somos vem da realidade como ela é. Não negamos o mal, e temos muitas críticas justas a fazer, mas a Criação é eminentemente positiva, não negativa.
Isto era o que eu tinha a dizer-vos. Mas o Evangelho deste dia do Congresso da ACEGE di-lo muito melhor: “«Dois homens subiram ao Templo para orar; um era fariseu e o outro publicano.” (Lc 18, 10). O fariseu, acusador e pedante é o tipo perfeito da fantasia pagã. O publicano diz apenas “Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.” (13).
- A virtude da Esperança
A verdadeira Esperança só pode vir do terceiro elemento desta visão, específico do Cristianismo, a salvação de Jesus. O nosso líder é mesmo um génio maravilhoso, muito mais poderoso que todos os deuses da não-ficção. Mas Ele não traz soluções mágicas; entrega-se por nós, morre na cruz e ressuscita ao terceiro dia. A Esperança não é que as coisas corram bem, mas sabermos “que tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8, 28).
Termino com uma ilustração dessa esperança, na anedota favorita do Papa São João Paulo II. Há uns anos toda a gente a conhecia, mas hoje começa a ser novidade: «Só existem duas únicas soluções possíveis para a crise da Europa de Leste, das quais uma é realista e a outra, milagrosa. Na solução realista, Nossa Senhora de Czestochowa aparece de repente com todos os anjos e santos e inspira uma resolução imediata para a crise. Na solução milagrosa, todas as nações cooperam.»
Este é o realismo que nos faz falta. Só ele leva à Esperança.
Nota: Para aceder à intervenção na íntegra de João César das Neves siga este link
Foto: Inês Machado. © ACEGE 2025.
Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas