Numa abordagem que transmite, através do testemunho directo de dois mil idosos, a sua perspectiva sobre o lugar que ocupam no mundo globalizado, o relatório “In Our Own words” revela uma geração que se sente demitida, esquecida e ignorada, excluída por vezes e até violentada noutras. Que vê a idade torná-la num fardo para as famílias e para a comunidade. Quando, afinal, o maior custo que a sociedade tem com os seus velhos está na discriminação que impossibilita o seu contributo para o desenvolvimento social e económico
POR GABRIELA COSTA

“Sou considerado um activo esgotado, sem nada que reste para contribuir para a sociedade. Alguém que já teve a sua vez e deve dar lugar aos jovens”

Foi com estas palavras que um idoso do Uganda expressou o sentimento generalizado, entre a geração sénior, de que a idade torna as pessoas fardos para as famílias, para a comunidade e para a economia do seu país. Palavras entre muitas outras, proferidas por mais de dois mil cidadãos de cinquenta países, incluindo Portugal, e impressas no relatório “In Our Own Words: What Older People Say About Discrimination and Human Rights in Older Age”, da Global Alliance for The Rights of Older People (GAROP).

[pull_quote_left]“A experiência de vida e o conhecimento não são valorizados pela sociedade”[/pull_quote_left]

Palavras que repetem a ideia do custo de se ser velho: um encargo para a sociedade – para os sistemas de saúde e de protecção social, por exemplo -, um estorvo que sobrecarrega os familiares, um obstáculo às políticas demográficas, de emprego e de crescimento económico de uma nação. Ou, para os próprios, a frustração de ser discriminado por um factor natural e que a todos afecta, e de avançar para uma vida vista sem utilidade, perante a impotência da improdutividade ou da perda de mobilidade.

A partir de uma consulta realizada nos últimos meses de 2014 pelas organizações membro da GAROP, rede de 115 entidades da sociedade civil que promove os direitos dos mais velhos, e que auscultou idosos e entidades representativas dos seus interesses (numa amostra em que apenas 120 pessoas das 2 mil inquiridas tem menos de 50 anos), o relatório reúne depoimentos sobre como a geração sénior vem sendo discriminada pela sociedade globalizada. Como sentem os idosos esta discriminação? Que direitos humanos lhe são negados? Que impacto tem o fenómeno nas suas vidas? E por que razões consideram serem tratados de uma forma diferente dos demais cidadãos?

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Discriminação e indiferença

Numa abordagem que privilegia o testemunho directo, transmitindo, através das palavras ditas e não editadas dos participantes, a sua perspectiva sobre o lugar que ocupam no mundo actual, o documento revela uma geração que se sente demitida da sociedade, invisível, esquecida e ignorada, excluída por vezes ou até abusada e violentada, noutras.

A grande maioria dos idosos oriundos de quatro continentes encara a questão do idadismo (ou atitude preconceituosa e discriminatória com base na idade) com pessimismo, acreditando que é discriminada devido à sua idade avançada. A experiência é comum a muitos: as oportunidades de vida pessoal e profissional diminuem e as desigualdades sociais e económicas aumentam com o envelhecimento.

[pull_quote_right]“Não conseguimos obter um crédito bancário ou aderir a um seguro de saúde, só porque temos mais de 65 anos”[/pull_quote_right]

Para os seniores, os seus direitos estão cada vez menos protegidos: os médicos evitam tocar nos pacientes idosos durante as consultas, conclui um grupo de trabalho dos Camarões constituído no âmbito da iniciativa da GAROP. Já um residente numa casa de repouso na Sérvia denuncia que os utentes são aterrorizados, extorquidos do seu dinheiro e pensões, e constantemente ameaçados de serem expulsos, caso não se subjuguem às imposições deste lar de idosos.

Para os que para lá caminham, cientes que o facto de se manterem activos, a trabalhar e de boa saúde é uma realidade a prazo, os dias revelam-se incertos e progressivamente preocupantes, à medida que avançam no tempo: “vejo-me sem um futuro”, diz um italiano entre os 50 e os 59 anos. Foram bastantes os participantes com menos de 50 anos que manifestaram sentir já uma atitude discriminatória no mercado de trabalho, concluiu a GAROP. “Mesmo quando me candidato a um emprego para o qual tenho o perfil ideal, a nível académico e profissional, nunca sou chamada sequer para a primeira entrevista”, lamenta uma mulher também italiana e com menos de 50 anos.

Embora uma minoria de participantes tenha referido experienciar, em alguns casos, um tratamento diferenciado pela positiva (por exemplo, beneficiando de privilégios como apoio e prioridade em determinados serviços), a sensação de estigmatização predomina entre estes idosos. Acompanhada de humilhação, em alguns casos, insegurança, noutros, e de solidão, em muitos. Como testemunha uma mulher com mais de 70 anos da Irlanda, “existem muitos idosos completamente isolados nas zonas rurais, que estão deprimidos e se sentem sós, excluídos e ameaçados”.

[pull_quote_left]“Vejo-me sem um futuro aos 50 anos”[/pull_quote_left]

Um homem da República da Coreia com menos de 60 anos diz sentir-se “desonrado” por ter sido “facilmente retirado da sociedade”. Esta destituição de poder e de voz para se pronunciarem e verem valorizadas a suas opiniões causa frustração e angústia à grande maioria dos inquiridos, afectando o seu bem-estar e qualidade de vida. Como diz alguém noutro grupo de discussão, mas em Moçambique, “as pessoas não confiam em mim, e temem que eu não esteja capaz devido à minha idade”.

Ignorância e preconceito

31032015_UmaGeracaoDemitidaDaSociedadeCadaVezMaisNecessariaAoDesenvolvimento2Quebra de auto-estima, deterioração da saúde mental, insegurança e depressão são apenas alguns dos efeitos nefastos da discriminação contra os seniores. Paralelamente, reduzem-se as oportunidades de agarrar desafios e desenvolver novos projectos e de manter um estatuto de igualdade face aos membros da família e à comunidade onde os idosos se inserem. Nos casos mais extremos, esta exclusão resulta em cair na pobreza, e ser forçado a pedir e a dormir na rua.

O tratamento diferenciado devido à idade, quase sempre pela negativa é, pois, consensualmente sentido pelos idosos em inúmeros aspectos da sua vida, desde as relações familiares e com colegas de trabalho, à comunidade a que pertencem ou às redes sociais. A nível institucional, a desconsideração a que são votados prevalece nas políticas governamentais e na legislação, mas também no trabalho social realizado a nível comunitário e por parte de organizações da sociedade civil, dizem.

O acesso a actividades sociais, a serviços financeiros, à vida política e económica ou a posições de liderança, por exemplo, está vedado ou dificultado. Os testemunhos em “In Our Own Words” reúnem exemplos de quem se viu impedido de usufruir de bens e serviços como cuidados de saúde, protecção social e cuidados paliativos ou de fim de vida. Mas também de oportunidades de emprego, habitação digna, mobilidade urbana, mecanismos de apoio a uma via autónoma, educação, informação, novas tecnologias.

[pull_quote_left]“Persiste na nossa cultura uma desvalorização do envelhecimento, que pressupõe que os idosos são senis”[/pull_quote_left]

Ignorância, estereótipos e preconceitos sobre a idade mais madura e o envelhecimento são os principais factores apontados pelos cerca de dois mil idosos para a discriminação a que estão sujeitos. “As pessoas pensam que os idosos não são capazes de se manter autónomos e estão aprisionados a velhos conceitos”, conclui uma sénior australiana.

Ao sentimento mais vincado, o de que representam um fardo para a família e sociedade, corresponde a frustração de serem vistos como incapazes, obsoletos e dispendiosos. “Não conseguimos obter um crédito bancário aceitável ou aderir a um seguro de saúde, só porque temos mais de 65 anos”, desabafa alguém numa discussão de grupo na Argentina.

Sentem-se desnecessários, desvalorizados, evitados ou tratados com desconfiança. Sofrem a humilhação de saber que há toda uma sociedade que os deseja tão invisíveis quanto possível, alerta a Aliança Global para os Direitos dos Idosos. “Acho que nunca consegui passar de cidadã de segunda classe, primeiro porque era mulher, agora porque sou velha”, testemunha uma participante dos EUA, com mais de 70 anos.

Os efeitos do idadismo na vida da população sénior “é profundo”, porquanto “ser tratado de forma discriminatória tem um impacto significativo no modo como as pessoas mais velhas se sentem”, sublinha a GAROP, que avisa que alguns idosos referiram mesmo ser sujeitos a violência e abusos físicos, verbais e psicológicos, a negligência e a abandono, na consulta realizada com vista a contribuir para o debate em curso nas Nações Unidas a respeito da promoção dos direitos humanos dos idosos.

Direitos e desenvolvimento

31032015_UmaGeracaoDemitidaDaSociedadeCadaVezMaisNecessariaAoDesenvolvimento3Entre uma pequena minoria de seniores que se assume respeitado e feliz na sua pele, e o gritante desabafo de largas centenas de idosos que reconhecem viver sob discriminação social, as conclusões do relatório agora divulgado não deixam dúvidas à organização: “o preconceito profundamente enraizado contra os idosos e a negação dos seus direitos em todos os domínios das suas vidas, relatado em “In Our Own Words”, sugere claramente que se exige uma abordagem abrangente e sistemática para proteger e promover os direitos dos idosos”.

Neste contexto, a GAROP apela a que o documento seja utilizado pelos países para desenvolver o posicionamento de organizações civis a respeito de uma nova convenção sobre os direitos das pessoas idosas, e para promover a discussão pública e governamental desses mesmos direitos.

Foi já em 2010 que as Nações Unidas criaram o Open-ended Working Group on Ageing, grupo de trabalho que visa debater e encontrar mecanismos para melhorar a protecção e promover os direitos humanos da geração sénior. Ao longo de cinco reuniões, foram identificadas várias lacunas na protecção desses direitos. Em 2012, o grupo foi incumbido de analisar propostas para a criação de um instrumento legal internacional sobre esta matéria.

Finalmente, no final do ano passado, os Estados membro da ONU foram convidados a apresentar propostas concretas, medidas funcionais e boas práticas com vista a melhorar os direitos das pessoas idosas. Foi determinado que os vários documentos serão compilados e submetidos a apreciação na Assembleia Geral das Nações Unidas, no final de 2015. Para a Global Alliance for the Rights of Older People, é fundamental que os idosos façam parte do processo de discussão pública sobre esta matéria, e que as suas perspectivas e opiniões sejam contempladas nestas propostas.

[pull_quote_left]“Nunca consegui passar de cidadã de segunda classe, primeiro porque era mulher, agora porque sou velha”[/pull_quote_left]

Com os olhos postos numa convenção das Nações Unidas, a GAROP disponibiliza um recurso para promover o diálogo em torno da mesma. “Strengthening Older People’s Rights: Towards a UN Convention” é um documento que cruza a importância do envelhecimento demográfico com as leis internacionais de direitos humanos para demonstrar como, afinal, o maior custo que a sociedade tem com os seus velhos está na discriminação que impossibilita o seu contributo para o desenvolvimento social e económico. Num mundo cuja população está cada vez mais envelhecida, graças ao constante aumento da esperança de vida e à quebra da natalidade.

O objectivo da organização é, uma vez mais, encorajar a nível global a promoção dos direitos dos idosos, nomeadamente para que não permaneçam invisíveis à luz da lei internacional. Defendendo que uma convenção é um instrumento importante para conseguir a protecção desses direitos, a GAROP acredita que o debate e a acção têm de se realizar a nível nacional e internacional”, sob pena de não se alcançarem as condições para se chegar a um acordo sobre esta matéria. Um tratado que reconheça, como é referido no documento “Strengthening Older People’s Rights”, que “o envelhecimento da população é um dos grandes triunfos da humanidade”.

Jornalista

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