Começou por ser uma petição nas redes sociais contra o Desperdício Alimentar, depois de um “vamos pensar no assunto”, por parte dos governantes portugueses. Depressa se transformou no movimento Zero Desperdício, criado por “cidadãos que quiseram lutar por esta causa”, como comenta António Costa Pereira, mentor da acção. Dois anos passaram e todo este trabalho se reflecte em mais de um milhão de refeições recuperadas Sob o mote “Portugal não se pode dar ao lixo”, a associação DariAcordar criou o movimento Zero Desperdício (ZD), que utiliza os bens alimentares que antes eram desaproveitados, fazendo-os chegar a pessoas que deles necessitam. Estes são alimentos em perfeitas condições e que nunca saíram das cozinhas de refeitórios de escolas, empresas, hospitais ou prisões, ou de outros estabelecimentos comerciais, mas que, por força de prazos de validade muito curtos, não podem ser vendidos. Não se trata de “restos”, mas sim de alimentos que nunca foram servidos nem comercializados. Fundada em 2011, a associação que se assume “contra o desperdício” foi a mesma que lançou, um ano depois, o movimento ZD, onde se faz a ligação e se promovem parcerias entre estabelecimentos que têm refeições e outros bens alimentares que nunca foram servidos e IPSS, Misericórdias, ONG e outras Associações de Solidariedade Social, para que esses alimentos cheguem a quem mais precisa. Dois anos volvidos, os resultados positivos são evidentes: mais de um milhão de refeições (que antes eram deitadas no lixo) foram já recuperadas, e mais de sete mil pessoas puderam, até hoje, beneficiar desta ajuda, nos quatro concelhos portugueses onde esta iniciativa foi, até ao momento, implementada (Lisboa, Loures, Cascais e Sintra). Consciente (e convicto) de que “não desperdiçar o que já existe é uma simples questão de bom senso”, o presidente da DariAcordar e mentor do movimento ZD, António Costa Pereira, não esconde a expectativa e a esperança que tinha relativamente aos bons resultados daquela que começou por ser uma “mera” petição contra o desperdício alimentar. A grande novidade, para si, foi o facto de esta iniciativa ter dado força ao surgimento de diversas associações com outras ideias, também relacionadas com o combate ao desperdício.
Do zero a um milhão Há dois anos, os objectivos deste movimento, cujo fim último é e será sempre acabar com o desperdício, eram simples mas ambiciosos. Um deles – talvez o principal – era tornar legar a recuperação de refeições em perfeitas condições (cujo destino diário era, invariavelmente, o caixote do lixo), fazendo deste um processo mais seguro. Outro objectivo passava por alertar a sociedade para esta causa e reunir um largo e variado número de parceiros doadores de refeições. Fundamental, também, era criar e desenvolver um modelo municipal de funcionamento que envolvesse Câmaras Municipais, Juntas de Freguesia e várias instituições locais (como IPSS, Centros Paroquiais e Misericórdias) que garantissem a recolha das refeições nos parceiros e a sua respectiva distribuição. O último, mas não menos importante, objectivo, tendo em conta que sem ele nada podia ser feito, passava por sensibilizar a sociedade e alertar o máximo de pessoas para esta causa. Todos estes objectivos foram alcançados e superados. Aquele que se pensava ser um problema – um diploma comunitário de 2002, transposto para a legislação nacional ao abrigo da Lei de Saúde Pública e que “obrigava” ao desperdício diário de 35 a 50 mil refeições diárias, segundo as estimativas de António Costa Pereira – não o era, de facto. A questão estava, afinal, na sua (má) interpretação, o que para este piloto é uma situação “estranha e grave, pois bastava que alguém se interessasse por este tema, não aceitasse uma lei que não tivesse um ‘caracter humano’ (ou que não aceitasse a interpretação dada até então) e lutasse por uma causa tão importante”. A lei foi, então, sujeita a uma reinterpretação, com o apoio da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), a qual, para além de criar checklists para recuperação de excedentes alimentares em diversos cenários (como comidas quentes, frias, eventos, etc.), se prontificou a dar formação sobre higiene e segurança – de forma a garantir que os alimentos das cantinas e das superfícies comerciais chegassem em perfeitas condições às instituições e às famílias carenciadas que os recebem. Muitas parcerias existem já e contam com o apoio de um vasto e diversificado leque de empresas, supermercados, hotéis e hospitais, que se juntaram a esta causa. Esta transversalidade é, para António Costa Pereira, “fundamental” para que se possa chegar a mais pessoas, de diversos meios, através de uma rede capaz de fazer face a várias necessidades. O Modelo Municipal de Funcionamento permite identificar as famílias carenciadas que poderão beneficiar destes alimentos, e já está a ser implementado e seguido nos municípios aderentes. A ponte entre os municípios e as instituições locais, ou outras entidades, permite aproveitar tudo o que existe em cada Concelho, de forma a se encontrar um equilíbrio entre as necessidades de uns e os excedentes, e também os conhecimentos, de outros.
As Câmaras Municipais e as Juntas de Freguesia encarregam-se do esclarecimento das populações, da recolha de dados e da identificação das famílias carenciadas, da aferição das necessidades, bem como da estratégia de proximidade, que leva quem tem, a dar a quem precisa, sem medos ou vergonhas. As instituições de solidariedade social tratam da identificação das necessidades mais pontuais ou específicas, da recolha de alimentos junto das grandes superfícies comerciais, e da respectiva distribuição – sempre com formação e acompanhamento por parte da ASAE. Os restaurantes têm aqui um papel igualmente importante, porque fornecem as refeições directamente aos cidadãos, previamente identificados pelos serviços de Acção Social, sem necessidade de intermediários. O impacto deste movimento foi, desde cedo, muito grande e tem ganho o apoio de um número cada vez maior de cidadãos. Conta, inclusivamente, com o Alto Patrocínio da Presidência da República, recolhendo refeições em instituições do Estado, como a Assembleia da República, o Banco de Portugal, a Casa da Moeda e Caixa Geral de Depósitos. O ZD conquistou, também, o interesse de instituições europeias, e é já acompanhado e apoiado pela Food and Agriculture Organization (FAO), pela Comissão Europeia e pelo Conselho Europeu. António Costa Pereira considera que “todo o processo se tornou mais fácil, a partir do momento em que foi criada a DariAcordar, formada por cidadãos que quiseram ser ‘além-palavras’ e lutar por esta causa”. O piloto que não tem medo de cair Um dos próximos passos é replicar este modelo e implementá-lo em outros locais de Portugal, para além dos quatro municípios onde o movimento já existe. Desta forma, “com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e a colaboração do Instituto de Empreendedorismo Social (IES), desenvolvemos o Manual de Réplica ZD para vir a ser implementado em outros municípios portugueses, mais uma vez num trabalho de equipa com as Câmaras Municipais, Juntas de Freguesia e instituições locais, que nos têm contactado neste sentido”, comenta António Costa Pereira. Outra área onde a DariAcordar considera urgente actuar é na Educação. Este trabalho já começou a ser feito, e o objectivo é fazer do tema “Desperdício” uma matéria curricular escolar “para que, à semelhança do que foi feito na reciclagem, os jovens tenham acesso a esta realidade, entendam e ganhem uma consciência social para não desperdiçarem (quer estejamos a falar de alimentos, de brinquedos ou de vestuário)”. A Fundação Calouste Gulbenkian anunciou já o lançamento, no próximo ano lectivo, de um projecto pedagógico nas escolas de 1.º ciclo da Zona Metropolitana de Lisboa, com o objectivo de consciencializar os alunos para a necessidade de prevenção do desperdício alimentar. Criar uma Política Comum Contra o Desperdício, que passa por tratar esta temática, não apenas de um ponto de vista alimentar, mas envolvendo outras áreas como a Agricultura, a Saúde, a Educação, o Turismo, a Economia, e o Ambiente, é o terceiro objectivo a ser alcançado futuramente. O mentor do ZD explica que “esta política comum não existe em nenhum local no mundo e Portugal pode ser o primeiro país a fazê-lo”. Outras metas surgirão, atempadamente, nesta associação, onde os passos são pensados, dados com cuidado e sem pressa. Mas também sem medo de cair. No final de contas, tudo faz sentido se olharmos às refeições recuperadas (que são mais de um milhão), às mais de duas mil famílias (que se traduzem em mais de sete mil pessoas) que já beneficiaram destas refeições, aos cerca de 250 voluntários envolvidos, à centena de entidades doadoras e às seis dezenas de instituições que já receberam alimentos. Tudo faz sentido, afinal, se a estes valores juntarmos zero custos acrescidos para os parceiros que intervieram, até hoje. É desta forma, e por estes motivos, que a receita é positiva e todos ficam a ganhar: porque “não se tira nada a ninguém, apenas não se desperdiçam meios já existentes”.
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Jornalista