São duas perguntas que valem bem mais do que um milhão de dólares e que, para já, não têm uma resposta cabal. Neste momento e com o número de infectados pelo SARS-CoV-2 a ultrapassar os 17 milhões, o mundo inteiro deposita as suas esperanças no desenvolvimento de uma vacina que possa garantir a tão desejada e necessária imunidade ao vírus que mudou as nossas vidas por completo. E realmente só uma vacina poderá abrir caminho para o início do fim deste pesadelo. Todavia, a verdade é que será só mesmo o início, pois são diversas e complexas as questões que rodeiam esta corrida repleta de obstáculos, com muitos participantes a privilegiar o “cada um por si” e não o “um por todos”
POR HELENA OLIVEIRA
Todos os dias, a quase todas as horas, surge uma notícia sobre esta ainda hipotética solução, com os media a fazerem uma cobertura intensa sobre qualquer que seja o assunto com ela relacionada e, muitas vezes, em tons de cor-de-rosa, pois demasiado escuro e cinzento já anda o mundo. Ou temos a notícia de um “sucesso antecipado” ou de “resultados iniciais promissores”e, para já, depositamos as nossas esperanças ou nos testes que estão a ser desenvolvidos pela Universidade de Oxford em conjunto com a farmacêutica AstraZeneca, que já produziram uma resposta de imunidade em pacientes infectados, nos resultados igualmente promissores de investigadores chineses ou em outros tantos que vão surgindo diariamente.
Quanto à previsão de datas para a vacina estar pronta a ser adquirida, distribuída e ministrada, os palpites – porque não podem ainda ser mais do que isso – são ainda mais diversos, contraditórios até, o que em nada a ajuda a sossegar os mais ansiosos. No final do ano, na Primavera de 2021, ou no Verão, ou no Outono ou em 2022, lançam-se os dados ao acaso com os cientistas a pedirem a cautela necessária pois não existe nenhuma bola de cristal, muito menos para um vírus com características tão obscuras e que, em termos médicos, coloca mais questões do que certezas.
De acordo com a Covid-19 Vaccine Tracker, existem neste momento 199 vacinas em desenvolvimento para prevenir a Covid-19, com 19 destas em uma das quatro fases de testes clínicos. Mas, e para não variar, os dados desta organização, que acompanha diariamente a evolução desta corrida, não coincidem com a informação fornecida pela própria Organização Mundial de Saúde (OMS), que noticia 140 equipas de investigação a trabalhar na busca pela vacina, com 17 na fase 1, 13 na fase 2 e 5 na fase 3. Como é sabido e regra geral, o processo de desenvolvimento de uma vacina dura, em média, 10 anos, mas com a Covid-19, os “prazos” estão a ser “comprimidos” devido à urgência global imposta pela pandemia.
Os mais optimistas estimam ser possível que o milagre ocorra ainda até ao final deste ano ou no início de 2021, mas o mais provável – e se tudo correr bem – é que o elixir da esperança possa vir a ser uma realidade apenas em 2022. Como escreveu na Fortune o CEO da GAVI (sigla em inglês para Aliança Global para Vacinas e Imunização), Seth Berkly, “apesar de serem milhares os peritos a trabalharem mais depressa do que nunca, ainda vai demorar pelo menos um ano até que quaisquer vacinas Covid-19 licenciadas e amplamente distribuídas fiquem disponíveis, e isto se tivermos sorte de ter algumas das primeiras a funcionar”. O responsável da GAVI afirmou ainda que “mesmo que existam cerca de 200 ensaios em desenvolvimento, existem apenas cerca de 7% de hipóteses de uma vacina candidata em desenvolvimento pré-clínico vir a revelar-se segura e eficaz, pelo que é provável que a maioria falhe”, algo que e infelizmente, é de esperar no desenvolvimento de qualquer vacina.
Ao mesmo tempo, algumas das medidas necessárias para lançar a produção em massa, normalmente só tomadas quando uma vacina viável está pronta, estão já a ser levadas a cabo, como assegurar que existam frascos de vidro suficientes para conter milhares de milhões de doses de vacina ou preparar as linhas de produção o mais rapidamente possível, para que estejam prontas para serem lançadas assim que esta for aprovada.
Para acelerar o desenvolvimento e distribuição de uma vacina, foram formadas alianças internacionais sem precedentes, tendo sido atribuídos milhares de milhões de euros para o efeito. Mas este desenvolvimento inicial simultâneo acabará por dar espaço a apenas alguns dos candidatos mais promissores, sendo estes a receber financiamento para um eventual licenciamento e distribuição.
É por isso que muitos tipos diferentes de vacinas estão a ser pesquisados e testados – alguns tradicionais, outros experimentais, com cada categoria de produto a ter as suas próprias vantagens e desvantagens, e provavelmente será necessário mais do que uma vacina para proteger todas as pessoas em todo o mundo.
Uma outra questão está relacionada com o poder dos governos mais ricos para fazerem múltiplos acordos com grandes distribuidores de medicamentos para que sejam eles os primeiros a adquirir a vacina, colocando sempre em desvantagem os demais países que não têm condições para entrar nesta prova desde logo enviesada. E se grande parte da investigação tem sido financiada com dinheiros públicos, os acordos de distribuição são estritamente confidenciais do ponto de vista comercial e só gota a gota são noticiados pelos media. Adicionalmente, confiar na benevolência e sentido de justiça das grandes farmacêuticas pode não ser a estratégia mais inteligente a seguir.
Por outro lado ainda, questiona-se também que grupos deverão ser primeiramente vacinados – se os trabalhadores da saúde, se os segmentos populacionais de maior risco ou outros – e se os governos irão integrar o custo da vacinação nos seus orçamentos, já de si, e por causa dos terríveis efeitos da pandemia na economia, demasiado esticados. Claro que estas questões são ainda muito prematuras mas, e por exemplo, em Portugal, e de acordo com as palavras da ministra Marta Temido a 25 de Julho último, é muito provável que, a existir uma vacina, esta não figure, pelo menos numa primeira instância, no Plano Nacional de Saúde, o que significa que pelo menos numa primeira fase os custos possam vir a ser suportados pela população.
“Com doenças infecciosas, ninguém está seguro até que todos estejam seguros”
Para encorajar uma cooperação rápida e justa, a Organização Mundial de Saúde lançou o que descreve como uma “colaboração global inovadora para acelerar o desenvolvimento, produção e acesso equitativo aos testes, tratamentos e vacinas Covid-19”. Esta colaboração envolve exactamente a GAVI. Setenta e cinco países – Portugal incluído – apresentaram já manifestações de interesse para proteger as suas populações e as de outras nações através da adesão ao Mecanismo COVAX concebido para garantir o acesso rápido, justo e equitativo às vacinas COVID-19 em todo o mundo. Estes mesmos 75 países, que em princípio financiarão as vacinas a partir dos seus próprios orçamentos de finanças públicas, estabeleceram parcerias com cerca de outros 90 países de baixos rendimentos, os quais poderão ser apoiados através de doações voluntárias ao Compromisso Antecipado de Mercado (AMC) da COVAX da Gavi. Em conjunto, este grupo de até 165 países representa mais de 60% da população mundial e nele estão integrados representantes de todos os continentes e mais da metade das economias do G20.
Na medida em que a GAVI tem já décadas de experiência no apoio ao desenvolvimento de vacinas, identificando candidatos promissores e trabalhando com fabricantes para assegurar um acesso justo, espera-se que, até ao final do próximo ano e, mais uma vez, se tudo correr bem – sejam distribuídas pelo menos dois mil milhões de doses. E, pelo menos na teoria, cada país participante na COVAX poderá aceder à vacina, independentemente da sua capacidade de pagamento. O objectivo é assegurar que os países participantes tenham o suficiente para vacinar 20% das suas populações, o que e de acordo com a própria GAVI, servirá para garantir que as pessoas de alto risco e vulneráveis, bem como os profissionais de saúde, obtenham a vacina o mais cedo possível.
Ainda nas palavras do CEO Seth Berkly, e por precisarmos desesperadamente de vacinas que acabem com esta crise, “se os governos iniciarem uma competição pelas mesmas, apoiando vacinas individuais na esperança de que tenham escolhido um vencedor, tal significará a vitória para uns poucos países, com muitos outros a ficarem de fora”. O responsável da GAVI alerta, por isso, para a adopção de uma abordagem global e multilateral que envolva uma colaboração sem precedentes, na qual os países trabalhem em conjunto com as agências de saúde globais para que as recompensas sejam partilhadas, algo que, caso não aconteça, poderá vir deitar tudo a perder. É que, tal como Berkly defende, “com doenças infecciosas, ninguém está seguro até que todos estejam seguros”.
Mas apesar de todas as boas intenções em torno do COVAX, os países também estão sob enorme pressão para assegurar que tenham um fornecimento imediato e significativo de qualquer vacina que seja bem-sucedida para imunizar as suas próprias populações. Muitos já encomendaram previamente milhões de doses, fechando acordos com fabricantes, embora não saibam se os candidatos que escolheram irão realmente funcionar ou não.
Questionado sobre se a COVAX irá garantir realmente um acesso justo e equitativo às vacinas, Thomas Cueni, director geral da Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas (IFPMA, na sigla em inglês), com sede em Genebra, na Suíça, responde com a cautela necessária: “o compromisso público de grandes líderes europeus como Angela Merkel e Emmanuel Macron é promissor; a falta de resposta dos Estados Unidos, da Rússia ou da China, menos”, apesar de ser “uma reacção natural que os políticos não queiram ser acusados de ignorar as necessidades dos seus próprios cidadãos”, acrescenta ainda.
Já para o CEO da GAVI parecem não existir dúvidas de que para evitar questões de desigualdade, a única opção é mesmo a adesão ao mecanismo COVAX. “O COVAX é a única solução verdadeiramente global para a pandemia da COVID-19″, assegura. “Para a grande maioria dos países, quer estes possam pagar as suas próprias doses quer necessitem de apoio, significa receber uma parte garantida das doses e evitar serem empurrados para o fundo da fila, como vimos durante a pandemia de H1N1 há uma década. Mesmo para os países que são capazes de assegurar os seus próprios acordos com os fabricantes de vacinas, este mecanismo representa, através da sua carteira líder mundial de candidatos a vacinas, um meio de reduzir os riscos associados a candidatos individuais que não demonstrem eficácia ou que não obtenham licença”, remata.
Relembrar constantemente, tal como tem feito a OMS, de que ninguém pode estar livre desta pandemia até que todos estejam também, poderá encorajar uma melhor cooperação do que a observada há 20 anos com os tratamentos anti-retrovirais para o vírus HIV. Mas a memória não pode ser curta se nos lembrarmos que, e neste caso em particular, foram necessários vários anos para que os medicamentos que salvam vidas ficassem acessíveis aos países mais pobres. Portanto, e como qualquer que seja o problema que dependa da cooperação global e multilateral, ninguém poderá garantir que o inverso aconteça com a futura vacina para a COVID-19.
O perigo (muito provável) de se “nacionalizar” as vacinas
Para os mais pessimistas – ou realistas – a corrida desesperada para reabrir as economias, reduzir a pressão sobre os sistemas de saúde e proteger os cidadãos e que apenas pode ser vencida se existir uma vacina, provocará, indubitavelmente, vários atropelos. Paralelamente à pandemia, não nos podemos esquecer que, mesmo lutando contra um inimigo comum, vivemos num mundo onde as instituições multilaterais estão cada vez mais politizadas, a confiança pública mais reduzida e o aumento de tensões entre duas superpotências mundiais – os Estados Unidos e a China – é visível. Adicionalmente, tanto os Estados Unidos como a China estão igualmente entre os candidatos mais ávidos para obter os primeiros direitos sobre uma vacina.
Ou seja, independentemente dos apelos à ética que deve(ria) necessariamente nortear esta questão, a verdade é que a geopolítica está profundamente entrelaçada com esta competição por uma cura. Esta realidade está a gerar o medo crescente e fundamentado de um “nacionalismo vacinal”, onde a corrida com regras muito pouco transparentes para descobrir e distribuir uma possível futura vacina coloca os países uns contra os outros. Obviamente que este “nacionalismo vacinal” significa que cada nação terá como prioridade os seus próprios interesses, dentro das suas próprias fronteiras, em vez de cooperar e lutar contra uma pandemia que não respeita nenhum dos dois. É uma espécie de “America First”, mas com muitos países a fazerem o mesmo, ou pelo menos aqueles que têm meios e recursos para garantir que possam ser eles a receber as primeiras doses.
São já muitos os acordos públicos para as primeiras vacinas que estão a ser desenvolvidas por diferentes empresas, por ordem do país ou instituição que “pré-encomendou” o maior número de doses. E, inevitavelmente, é mais do que provável que sejam os países ricos os primeiros a ganhar acesso às mesmas.
Mesmo sabendo-se que, uma vez criada uma vacina bem-sucedida e dado que a pandemia não se extinguirá se não for globalmente abordada, este deveria ser o principal incentivo para a partilhar, o umbiguismo nacionalista decerto que perdurará e o acesso a um bem que deveria ser público será mais público para uns do que para outros. Ou acontece um milagre global ou será, mais uma vez, a história do estado actual do nosso mundo: voltado para si mesmo e indiferente ao sofrimento alheio, mesmo que racionalmente este “egocentrismo” não sirva para nada, a não ser para piorar uma situação já de si catastrófica.
“A eficácia da futura campanha de vacinação irá depender da sua universalidade”
O repto foi lançado pelo Prémio Nobel da Paz, Muhammad Yunus e o intuito é “declarar as vacinas para a Covid-19 como um bem comum global”. A iniciativa conta já com o apoio de muitos laureados com o Nobel, com antigos presidentes e primeiros-ministros, a par de líderes religiosos, líderes de negócios e da sociedade civil, artistas e activistas sociais e quem mais concorde que a vacina quando existir, terá de ser para todos.
Este apelo conjunto assenta em três premissas por excelência: o direito ao livre acesso à vacina para todos, a transparência na determinação de um retorno justo dos investimentos em investigação e um plano de acção, que exorta à colaboração entre todos os que possam ter um papel de influência nesta luta que é todos. Como se pode ler no website que alberga a iniciativa:
“Instamos a Organização Mundial de Saúde a conceber um Plano de Acção Mundial sobre a vacina COVID-19. Apelamos à criação de um comité internacional responsável pela monitorização da investigação da vacina e pelo assegurar da igualdade de acesso à vacina para todos os países e todas as pessoas dentro de um prazo predeterminado e anunciado publicamente.
Apelamos a todos os líderes mundiais, Secretário-Geral das Nações Unidas, Director-Geral da Organização Mundial de Saúde, líderes religiosos, líderes sociais, líderes morais, líderes de laboratórios de investigação, empresas farmacêuticas, e líderes dos meios de comunicação social a darem as mãos para assegurar que, no caso da vacina COVID-19 ser bem-sucedida, tenhamos um consenso global para o acesso universal gratuito, muito antes da sua produção e distribuição efectiva”.
Pode associar-se a este movimento em https://www.vaccinecommongood.org/.
Editora Executiva