A corrida para obtenção de uma vacina segura e eficaz contra o vírus que infectou as nossas vidas é notícia todos os dias. Sem uma data certa para que esta espécie de milagre científico aconteça, vivemos na esperança de que o seu anúncio seja para breve e que marque o fim de uma já longa agonia. Mas até ao momento em que a mesma possa ser administrada “globalmente”, muitas barreiras terão de ser ultrapassadas. Um relatório publicado recentemente analisa as questões-chave envolvidas no desenvolvimento, avaliação, fabrico e distribuição de uma vacina para a Covid-19, o impacto desses mesmos desafios, bem como estratégias futuras para mitigar os seus efeitos
POR HELENA OLIVEIRA
De acordo com os especialistas, uma vacina bem-sucedida para a Covid-19 não será suficiente, por si só, e pelo menos no futuro próximo, para travar a disseminação do vírus, com as restrições na vida quotidiana susceptíveis de continuarem durante algum tempo. Como sabemos, são centenas as equipas de investigadores em todo o mundo que estão a concentrar os seus esforços para produzir uma vacina contra o novo coronavirus, em tempo recorde e com cerca de 11 a estarem já no estádio três, ou seja, na fase de ensaios com humanos.
Por seu turno, esta semana e pela primeira vez, Tedros Adhanom Ghebreyesus, director-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) admitiu que “existe esperança de que até ao final deste ano possamos ter uma vacina”, ao mesmo tempo que apelou “à solidariedade e empenho político de todos os líderes para assegurar a distribuição equitativa de vacinas quando estas estiverem disponíveis”.
Todavia e apesar de o mundo inteiro estar ansiosamente à espera da boa nova, o problema não se resume apenas à produção de um antiviral que seja seguro e eficaz. Um relatório recente, publicado no início de Outubro por um grupo multidisciplinar “convocado” pela Royal Society e chamado DELVE (Data Evaluation and Learning for Viral Epidemics), alerta para um conjunto de desafios complexos que rodeiam a produção das vacinas, incluindo obstáculos no seu fabrico e armazenamento, questões sobre como funcionarão realmente, ao que se juntam problemas relacionados com a confiança do público, entre outros.
Em declarações ao The Guardian, o Professor Nilay Shah, chefe do departamento de engenharia química do Imperial College London e autor do relatório, afirmou que embora exista a possibilidade de existirem vacinas disponíveis em Março do próximo ano – até porque o fabrico está a ser iniciado antes de serem conhecidos os resultados dos ensaios – a questão reside em saber se estas terão demonstrado a sua eficácia e se terão passado nos processos regulamentares. “Mesmo que consigamos ultrapassar estas questões e o material esteja disponível para que a vacinação comece na Primavera, levará muito tempo a trabalhar nos diferentes grupos prioritários inicialmente e depois na população em geral”, afirmou, acrescentando que o processo poderá levar até um ano.
Dúvidas similares foram expressas pelo Professor Charles Bangham, responsável pelo departamento de imunologia do Imperial College London e co-autor do relatório: “Mesmo que seja eficaz, é muito pouco provável que consigamos voltar completamente ao normal. Irá existir uma progressão variável mesmo após a introdução de uma vacina que saibamos ser eficaz. O abrandamento das demais medidas terá, assim, de ser gradual”.
Bangham afirmou igualmente que são poucas as vacinas que bloqueiam completamente uma infecção. Todavia, podem reduzir tanto a gravidade da doença como a possibilidade de a transmitir. No entanto, no caso das vacinas em desenvolvimento contra a Covid-19, subsistem ainda múltiplas questões que, e pelo menos por enquanto, não têm resposta.
Por exemplo, foram já levantadas preocupações de que as vacinas contra o novo coronavírus possam ser menos eficazes em adultos mais velhos do que noutros grupos – uma questão primordial se os fornecimentos forem limitados e se as vacinas tiverem de obedecer a critérios de prioridade em relação às pessoas com maior risco de serem infectadas, o que muito provavelmente irá acontecer.
A equipa de especialistas alerta também para o facto de uma política de vacinação generalizada, e numa tentativa de produzir a tão falada imunidade de grupo, poder também deparar-se com potenciais dificuldades, particularmente se a vacina tiver uma eficácia limitada. E para qualquer programa de vacinação em massa, existem obstáculos de fabrico e de fornecimento a ultrapassar.
A pandemia de SARS-CoV-2 levou, como temos vindo a testemunhar, a um esforço global para desenvolver, testar, fabricar e distribuir vacinas eficazes a uma velocidade sem precedentes. Existem actualmente mais de 200 vacinas candidatas em desenvolvimento e os resultados dos ensaios iniciais em larga escala são esperados em breve; no entanto, para que o programa de vacinação seja bem-sucedido, muitos desafios permanecem. O relatório em causa discute as questões-chave envolvidas no desenvolvimento, avaliação, fabrico e distribuição de uma vacina para a Covid-19, o impacto desses mesmos desafios, bem como estratégias futuras para mitigar os seus efeitos.
O VER dá conta das suas principais conclusões:
Um programa de vacinação bem-sucedido deve considerar a conformidade das diferentes vacinas candidatas
A informação chave necessária para avaliar as vacinas que estão a ser desenvolvidas inclui a capacidade de prevenir a doença em diferentes grupos, de que são exemplo as pessoas mais velhas; a longevidade da resposta imunitária; a exigência de doses múltiplas e de reforço; a capacidade de reduzir a infecção e a transmissão do vírus; a tolerabilidade e segurança; a capacidade de ser fabricada, distribuída e administrada em escala, a acessibilidade económica, e o seu acesso e aceitabilidade. A resposta a muitas destas questões será desconhecida até muito depois do surgimento dos dados iniciais dos primeiros ensaios das vacinas candidatas.
Serão necessários estudos a longo prazo para estabelecer a eficácia da vacina e a longevidade da sua protecção
São poucas as vacinas que conferem protecção vitalícia após uma única dose. Uma vacina parcialmente protectora pode não ser eficaz em grupos prioritários, poderá permitir uma transmissão posterior ou exigir taxas de vacinação mais elevadas para atingir os mesmos níveis de protecção numa população. Complementarmente, uma vacina de baixa eficácia pode não alcançar a “imunidade do rebanho”[a“imunidade de rebanho” ou de grupo acontece quando uma quantidade suficiente da população ficar imune ao SARS-CoV-2 por exposição ao vírus ou através da vacina.]. Efeitos adversos raros ou eficácia limitada no terreno podem apenas surgir quando um grande número de pessoas for vacinado. Podem igualmente ser necessárias doses múltiplas para estimular um nível de imunidade eficaz e, se uma vacina “candidata” produzir imunidade de curta duração, podem ser necessários “reforçadores”, com implicações na capacidade de fabrico, distribuição e geração de imunidade na população em geral.
É necessária mais investigação para compreender a resposta imunológica à SARS-CoV-2, bem como dos níveis de imunidade necessários para uma eficaz protecção e, se e quando, a imunidade diminuir
A comunidade científica desconhece ainda que respostas imunitárias podem proteger contra infecções pelo novo coronavírus e só é possível determinar se uma vacina protege contra doenças realizando ensaios em larga escala. Uma melhor compreensão de quais as respostas imunitárias que são protectoras, utilizando dados a partir de modelos animais, de ensaios clínicos e de estudos de “desafio humano”[também chamado de ensaio de infecção humana controlada, é um tipo de ensaio clínico para uma vacina ou outro produto farmacêutico que envolve a exposição intencional do sujeito de teste à condição testada], permitirá determinar a correlação de protecção e medir a protecção a nível individual e populacional. A padronização dos ensaios de vacinas é necessária para permitir a comparação e avaliação das diferentes vacinas candidatas.
O fabrico terá de ser escalonado para satisfazer a enorme procura de um programa de imunização global e é provável que a disponibilidade de vacinas seja inicialmente limitada, exigindo uma hierarquização dos destinatários
A escala de produção exigida dependerá da determinação da dosagem necessária de ingrediente activo, do número necessário de doses, do processo de produção seleccionado e do tempo de fabrico. Não se demonstrou ainda que as vacinas candidatas que empreguem novas tecnologias possam ser produzidas em larga escala, apesar de apresentarem potencial para uma maior eficiência na produção comparativamente à que é conseguida em processos já consagrados. No que respeita ao processo global de fabrico de vacinas, as zonas de estrangulamento poderão estar localizadas no processo de enchimento e selagem, mediante o qual o medicamento é acomodado em frascos ou outros recipientes e o chamado produto farmacêutico é obtido. Apesar de algumas instalações poderem ser reequipadas, não é este o caso para todas as fases de fabrico.
A cadeia de fabrico-distribuição-administração de vacinas representa um sistema complexo com múltiplas partes e objectivos variados que, por vezes, “competem” entre si
A produção pode ser limitada por cadeias de fornecimento de materiais e pelos sistemas de entrega. Os requisitos de armazenamento e transporte poderão também limitar a distribuição e o acesso a nível global. Poderão ser necessários esforços para melhorar a termostabilidade das vacinas e para minimizar a exigência de baixas temperaturas para a sua distribuição. O estrangulamento mais importante neste caso parece ser a etapa final da administração. A administração de uma vacina exige um grande número de profissionais de saúde com formação adequada e com acesso – e relações com – a diferentes comunidades.
O acesso e a disponibilidade desigual de vacinas aumentam o risco de agravamento das iniquidades na saúde
Os grupos étnicos minoritários têm vindo a ser desproporcionalmente afectados pela pandemia, o que implica que a superação das barreiras à vacinação exigirá uma colaboração sensível do ponto de vista cultural. Devem ser definidos e explicitados os critérios de vacinação em termos de prioridades. Deverá, igualmente, existir um diálogo público e o envolvimento necessário para gerir as expectativas e a compreensão da eficácia, segurança, efeitos secundários, disponibilidade e acesso à vacina.
As diversas razões que possam surgir e provocar alguma indecisão no que respeita à toma da vacina deverão ser abordadas para gerar confiança pública, com mensagens claras dirigidas a diferentes grupos
A aceitação será determinada por factores tais como eficácia, doses necessárias, efeitos secundários e riscos percebidos. Como é sabido, e para além dos movimentos anti-vacinas, existem alguns motivos que provocam desconfiança relativamente à sua administração. De acordo com o presente estudo, são necessárias várias estratégias para ultrapassar a suspeição, tais como “comunicadores convertidos”, em que aqueles que, outrora, manifestavam opiniões fortes contra a vacinação explicam por que motivo mudaram de ideias. Outras barreiras à adopção de vacinas, tais como os desincentivos financeiros, deverão ser, e obviamente, removidas.
As estratégias de vacinação terão de ser planeadas e revistas com base numa compreensão integrada dos dados emergentes sobre imunologia, economia, fabrico e questões comportamentais, que irão reger um programa de vacinação bem-sucedido.
A colaboração global será necessária para assegurar que as vacinas sejam acessíveis e disponíveis de forma equitativa, garantindo os melhores resultados em termos de saúde
A colaboração internacional reduzirá os riscos de investimento e ajudará a assegurar o fornecimento global e a acessibilidade de preços.
A longo prazo, será necessária uma coordenação e investimento globais para proporcionar a preparação necessária para futuras pandemias
O desenvolvimento de vacinas de segunda geração deverá ser incentivado e será necessária uma coordenação global para proteger todos os países contra possíveis surtos. Uma visão estratégica e um investimento em inovação científica e compreensão das doenças infecciosas, concepção, teste e fabrico de vacinas, bem como as expectativas do público em relação à vacinação, proporcionarão soluções e preparação a longo prazo.
Editora Executiva