Esta é umas das mais preocupantes conclusões divulgada pela Intrum no seu European Consumer Report para 2023. Mas não é a única. Num total de 20 países europeus analisados, metade dos consumidores afirma ter menos dinheiro para gastar, face há um ano, depois de pagar as suas contas essenciais e 20% afirmam não ter qualquer reserva financeira, confessando que muito provavelmente terão de contrair crédito adicional a curto prazo para cumprirem as suas obrigações financeiras mensais. Mais ainda, o endividamento continuará a aumentar, com um em cada quatro portugueses a afirmar que pediu dinheiro emprestado para pagar contas nos últimos seis meses. Mesmo com previsões positivas no que respeita à desaceleração da inflação, os salários continuam a não acompanhar a subida de preços, o que explica o sentimento de desesperança patente na maioria dos 20 mil consumidores europeus inquiridos
POR HELENA OLIVEIRA

Como habitualmente, a INTRUM divulgou, na passada semana, o seu European Consumer Report (ECP) para 2023, com notícias muito pouco animadoras. Com base num inquérito realizado a mais de 20 mil pessoas em 20 países europeus, que visa analisar os comportamentos de pagamento dos consumidores, a par da sua capacidade de gerir as finanças do agregado familiar, muitos são aqueles que se dizem sentir frustrados e amargurados pela sua situação financeira, destituídos de poder e alienados, na medida em que estão a gastar acima das suas possibilidades apenas para cumprir o essencial das suas contas mensais.

Com uma inflação persistentemente alta de braço dado com o elevado custo de vida, sem esquecer os sucessivos aumentos das taxas de juro, uma boa parte dos consumidores europeus está perto do desespero ao ponto de se estar inclusivamente a assistir a uma mudança social no que ao pagamento – ou mais precisamente, ao não-pagamento – de despesas mensais por parte dos cidadãos europeus diz respeito. E tal é este esforço e a ausência de expectativas de que o panorama melhore, pelo menos a curto/médio prazo, que são cada vez mais os consumidores a considerarem ser “aceitável” faltar às suas obrigações, em particular quando o dinheiro que devem se dirige a uma empresa suspeita de estar a aumentar excessivamente os preços tendo como desculpa a inflação.

Por outro lado, os consumidores vêem-se obrigados a fazer escolhas difíceis e a cortar nas suas despesas discricionárias, o que mesmo assim não é suficiente para chegarem ao final do mês com as contas em dia. Desta forma, são também muitos os que não têm outra alternativa se não a de contrair empréstimos para cobrir as suas despesas o que, e como sabemos, só aumenta a bola de neve, e com outros tantos a atrasarem-se simplesmente no pagamento das suas facturas, pois perderam igualmente o controlo sobre as mesmas.

Vejamos o que de mais importante revela este relatório e de que forma Portugal se posiciona face aos demais países europeus.

Inflação, custo de vida e bolsos mais vazios

De acordo com o Boletim de Verão divulgado pela Comissão Europeia em Setembro último e tendo em conta o seu percurso ao longo do ano, os números apontavam para uma inflação de 8,6% no início do ano prestes a terminar, com estimativas (na altura) que, em 2023, esta se mantivesse nos 5,6% na Zona Euro, sem esquecer as percentagens mais elevadas na UE alargada e também no Reino Unido. Todavia, e em finais de Outubro do presente ano, a inflação na zona euro sofreu uma inesperada desaceleração para 2,9%, segundo uma estimativa do Eurostat, tendo atingido os níveis mais baixos desde Julho de 2021. Mas a verdade é que, e de acordo com a Intrum, embora a inflação tenha descido em relação aos picos de dois dígitos atingidos no final de 2022, o poder de compra perdido ao longo do ano tansacto e no primeiro semestre de 2023 levará tempo a recuperar.

Assim, e como também podemos testemunhar e sentir nos próprios bolsos cada vez mais vazios, apesar destes decréscimos, os salários não estão a acompanhar a subida dos preços, pelo que os consumidores estão actualmente em pior situação do que há alguns anos a esta parte. Os salários reais, ajustados à inflação, diminuíram em 22 países europeus (num total de 24 analisados) durante o primeiro trimestre de 2023. De acordo com o ECP, metade dos europeus inquiridos (49%) afirma ter menos dinheiro para gastar depois de pagar as contas essenciais face há um ano, com as percentagens na Hungria a chegarem aos 75%, na Polónia aos 64% e no Reino Unido aos 62%.

Um dado particularmente preocupante e no que respeita a Portugal é o facto de 28% dos consumidores portugueses afirmarem que, no final de um mês normal, o valor médio excedido do seu orçamento mensal é de 293€.

Adicionalmente, com a subida das taxas de juro, os titulares de hipotecas com taxas variáveis (com uma maioria expressiva em Portugal),  são um grupo particularmente afectado, com as suas despesas mensais a aumentarem significativamente. Até Setembro de 2023, o Banco Central Europeu aumentou as taxas de juro de referência 10 vezes consecutivas, atingindo um máximo histórico de 4 por cento. Para os titulares de empréstimos hipotecários com taxas variáveis, tal significa um aumento significativo, ou mesmo brutal, das facturas mensais.

Para agravar o problema, são relativamente poucos os consumidores europeus que têm dinheiro de lado para cobrir despesas inesperadas. Perante a reparação de um automóvel ou uma conta veterinária imprevista, por exemplo, a solução é a de contrair empréstimos, muito provavelmente com juros elevados. Do total dos inquiridos, 20% afirmam não ter qualquer reserva financeira e outros 17% têm poupanças inferiores ao rendimento de um mês. É provável que este seja um problema crescente, porque os consumidores estão a esgotar as suas reservas financeiras à medida que a recessão se prolonga. Mas não se trata apenas do facto de os consumidores terem recorrido às suas poupanças para cobrir emergências, embora isso possa explicar parte do declínio. A verdade é que muitos europeus parecem ter sido forçados a utilizar as suas poupanças para cobrir as pressões financeiras quotidianas, quer se trate de contas com o aquecimento ou com compras de mercearia. Os seus rendimentos não cobrem, pura e simplesmente, as despesas.

Assim, não é de estranhar que menos de um em cada 10 consumidores esteja confiante de que pode manter as suas despesas quotidianas durante o próximo ano sem fazer quaisquer alterações. Além disso, um grande número de pessoas está a tomar decisões difíceis sobre a forma como irá enfrentar os próximos meses. Se 81% estimam reduzir as suas despesas com as férias e 86% afirmam que deverão gastar menos já este Natal, a redução das despesas não será suficiente para alguns, os quais poderão não ter outra alternativa senão contrair dívidas adicionais.

Endividamento e a armadilha das subscrições online

No que respeita a Portugal, 74% dos inquiridos procuram cortar nos gastos diários e 30% planeiam utilizar as suas poupanças para pagar despesas e contas do dia-a-dia, afigurando-se estas apenas como soluções temporárias. Eventualmente, quando o dinheiro acabar, os consumidores deixarão de pagar algumas contas, comportamento que cada vez mais se reflecte na tendência crescente dos atrasos de pagamento.

Ao mesmo tempo que os consumidores se esforçam significativamente para controlar os seus gastos, o estudo indica, contudo, que o endividamento continuará a aumentar, com um em cada quatro portugueses a afirmar que pediu dinheiro emprestado para pagar contas nos últimos seis meses e 12% a manifestar que é provável que se vejam obrigados a contrair crédito adicional para pagar as suas despesas diárias no futuro próximo. A Intrum alerta ainda que 25% dos consumidores portugueses afirmam ter menos “visibilidade dos empréstimos de curto prazo (por exemplo, cartões de crédito e empréstimos instantâneos) do que há 12 meses.

De sublinhar igualmente que 55% dos respondentes europeus estão a considerar recorrer mais ao sistema “compre agora, pague depois” (Buy Now, Pay Later: BNPL, na sigla em inglês), modalidade que significa a acumulação lenta e contínua de múltiplas subscrições, o que pode deixar as pessoas expostas ao aumento dos custos e sem visão dos seus compromissos de gastos gerais.. No que respeita aos portugueses e segundo a Intrum, 59% têm dificuldade em acompanhar as compras que fazem na modalidade BNPL e o montante que podem acumular durante o mês, ocupando um preocupante primeiro lugar entre os 20 países analisados.

Uma outra tendência proveniente do mundo digital em que cada vez mais vivemos, e que contribui igualmente para o aumento dos custos para os consumidores, assenta no que a Intrum denomina como “a tendência para a subscrição”. Dado que as aplicações móveis facilitam aos consumidores a subscrição de assinaturas – desde serviços de streaming de TV/filmes e música, a planos de ginástica ou a entregas regulares de comida, estamos perante uma perda de noção do valor que é gasto com as mesmas. Quase metade dos consumidores do estudo (45%) diz ter sido surpreendida pela rapidez com que as despesas com as assinaturas se acumulam sem que se apercebam do facto, com 36% dos inquiridos portugueses a manifestarem o mesmo. Sem grandes surpresas, são os consumidores mais jovens os que mais afectados são por esta tendência.

Europeus menos envergonhados por não pagarem as suas contas

Em muitos agregados em toda a Europa, a falta de pagamento de uma ou mais despesas parece ser uma nova prática.

Mais de um terço dos consumidores europeus (35%) afirma não ter pagado pelo menos uma factura nos últimos 12 meses, o que corresponde à percentagem mais elevada desde 2019. Em particular no norte da Europa, 46% dos inquiridos afirmam não ter liquidado uma factura, com a Noruega a destacar-se pela negativa, com seis em cada 10 consumidores (57%) a comunicarem casos de atraso no pagamento de facturas, contra 38% em 2022.

A mesma tendência é observada na Dinamarca, com um aumento do número de consumidores – 22% para 47% – que não pagam atempadamente as facturas em apenas um ano. Este aumento dos pagamentos em falta pode ser atribuído ao facto de uma proporção significativa de consumidores nas regiões escandinavas terem taxas hipotecárias flutuantes em vez de taxas fixas, um padrão distinto de muitos outros países europeus.

Relativamente aos países do sul da Europa, as percentagens de consumidores que não pagaram facturas em 2023 (31%) face ao ano passado (32%), mantiveram-se praticamente inalteradas. Dados para Portugal revelam que 22% dos consumidores não pagaram pelo menos uma factura dentro do prazo no ano transacto, sendo que o número crescente de incumprimento é mais visível na geração X e nos Millennials, tendência esta que se verifica também nos demais países europeus. E porquê?

De acordo com o European Consumer Report e em alguns casos, as facturas não pagas reflectem uma incapacidade de controlar as entradas e saídas de dinheiro, sendo mais provável que sejam os consumidores mais jovens os mais expostos a esta realidade. Mas actualmente, reforça o relatório, a razão mais comum para a falta de pagamento é o facto de os consumidores não terem dinheiro suficiente para pagar as suas contas, o que significa também que este não é um problema que afecte apenas segmentos restritos da sociedade. Durante a pandemia de Covid-19, os europeus mais jovens – talvez devido a padrões de trabalho menos estruturados e a poupanças limitadas – tinham muito mais probabilidades de não pagar atempadamente do que os seus pares mais velhos. Mas na actualidade e com o aumento das taxas de juro a afectar os mutuários de longo prazo, ou seja, os consumidores de meia-idade – que têm mais probabilidades do que os consumidores mais jovens de ter uma hipoteca e menos probabilidades do que os consumidores mais velhos de serem proprietários da sua própria casa – estão igualmente a sofrer dificuldades.

O estudo revela assim que 38% dos consumidores da geração X não cumpriram pelo menos um pagamento nos últimos 12 meses, sendo que, para um grande número de inquiridos, as faltas de pagamento tornaram-se um acontecimento regular em vez de uma dificuldade pontual, com 42% a afirmarem que os atrasos começam a ser “uma norma”.

Uma outra novidade consequente do actual contexto assenta no facto de, com os atrasos e as faltas de pagamento a tornarem-se endémicos, as atitudes da sociedade parecerem estar a mudar. Os consumidores costumavam sentir-se embaraçados ou mesmo envergonhados por terem pagamentos em atraso mas, actualmente, é mais provável que sintam que falhar um pagamento é aceitável.

Tal como revela o estudo da Intrum, 31% dos consumidores afirmam que se sentiriam menos culpados hoje em dia por uma factura não paga comparativamente a alguns anos a esta parte. Esta alteração de sentimento e comportamento é, naturalmente, uma tendência extremamente preocupante para os credores e as empresas. Mas a verdade é que hoje em dia, os consumidores não só têm dificuldades em pagar as contas, como existe um número crescente de cidadãos que nem sequer consideram que o pagamento das suas contas seja um imperativo ético, Como alerta o ECR, tal poderá aumentar a possibilidade de os seus hábitos de pagamento não se alterarem mesmo que a sua situação financeira melhore. O que é mais uma dor de cabeça para as empresas.

E será que o pior ainda está para vir? A questão imediata é a de que há poucas perspectivas para que a sorte dos consumidores mude para melhor a curto prazo. Quase metade (44%) receia ter de saltar pelo menos uma factura de baixa prioridade nos próximos 12 meses, ou seja e por exemplo, um pagamento não relacionado com os custos da habitação ou da energia.

Empresas pouco éticas sofrerão mais com incumprimento dos consumidores

Os consumidores reconhecem que as empresas a quem compram também estão a passar por dificuldades na economia actual, mas estão particularmente atentos às que possam estar a tentar explorar a situação, sentindo vontade de as punir. Mais de dois terços dos consumidores (68%) afirmam que deixariam de gastar dinheiro com uma empresa que considerassem estar a praticar a “greedflation”[greed – ganância].

E os dados compilados pela Intrum no que respeita a este factor deviam ser obrigatoriamente conhecidos pelas próprias empresas. A verdade é que aquelas que se comportarem – ou se for considerado que se comportam – de forma pouco escrupulosa, não só perderão as despesas futuras dos consumidores descontentes, como também poderão ver-se privadas de dinheiro e de prioridade por parte dos consumidores quando estes efectuam os pagamentos das suas facturas. Como alerta o relatório, um consumidor que não consegue pagar todas as suas contas, mais facilmente entrará em incumprimento com uma empresa que considere pouco ética e/ou que esteja a aproveitar-se do clima económico para aumentar os seus preços. De realçar também que entre os consumidores que se sentem menos culpados por faltarem ao pagamento das facturas, a preocupação com esta “inflação gananciosa” é ainda mais acentuada.

Desta forma, as empresas que se posicionam como aliadas dos consumidores podem e devem beneficiar desta posição, tendo em conta o apoio que prestam: cerca de metade (47%) dos consumidores afirma preferir comprar em empresas que oferecem condições de pagamento flexíveis e 66% dizem que é socialmente responsável que as empresas ofereçam esta flexibilidade durante períodos de abrandamento económico.

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