POR GABRIELA COSTA CULTURA É IDENTIDADE #
Provocadores sem nunca deixar de respeitar, descontraídos mas sempre profissionais, com humor mas para falar de assuntos sérios. Assim são os mais originais ‘geradores’ da cultura portuguesa. Tiago Sigorelho, Miguel Bica e Pedro Saavedra são os autores da plataforma de acção e comunicação que há quase dois anos procura descodificar a identidade do País, através de um exercício multiplicador da singularidade de todas as suas culturas pessoais.
A propósito do evento Trampolim Gerador #3, que vai celebrar, já no próximo Sábado, a multiculturalidade do bairro da Mouraria pela mão de 100 autores em 30 espaços improváveis, o VER conversou com Pedro Saavedra, para quem o significado da existência se liga intrinsecamente à criação de uma identidade colectiva. Presumindo que “ninguém sabe como vai ser o futuro, mas será de certeza diferente do que estamos a imaginar” (que é, afinal, o que dá sentido à vida) o artista e editor do Gerador diz simplesmente: “vamos como-morar o que aí vem”.
‘Quando a electricidade falha, liga-se o gerador’
O projecto Gerador desdobra-se em iniciativas tão distintas como uma revista trimestral que reconhece cada autor como “uma parte fundamental do todo”, na construção da cultura nacional e da auto-estima do seu povo; a Ignição Gerador, performances de teatro, dança, música ou histórias poéticas que acontecem mensalmente em “espaços exclusivos e irrepetíveis” (como casas de pessoas, tascas centenárias ou jardins em flor); tertúlias que discutem, na última 5ª feira de cada mês e através de conversas originais, “temas que importam, com a naturalidade de quem se senta a uma mesa de jantar”; ou uma colecção de guias desenhados por um ilustrador convidado, em português e em inglês, sobre os pormenores escondidos da nossa cultura, o The Sketchbook Guide.
Todos estes projectos têm em comum a criatividade original com que a equipa do Gerador transpira, com trabalho à séria, para inspirar muitos criadores das mais diversas áreas – arte urbana, artes visuais, BD, cenografia, cerâmica, cinema de animação, ciência, colagens, comunicação, dança, design, escrita, fotografia, gastronomia, ilustração, multimédia, música, produção cultural, realização, teatro – a contribuírem, “em corrente contínua”, para levar à sociedade cinco ideias que perseguem: lembrar que “a cultura é identidade” e, por isso, inclui arte, literatura, cinema ou teatro, mas também gastronomia, ofícios ou costumes populares; sublinhar que a cultura “está em todas as ruas e em todas as casas, sem diferença entre o Norte e o Sul, o interior ou o litoral, as metrópoles ou as aldeias”; destacar quem a produz e divulga, “seja artista plástico, artesão, músico, chef, graffiter, futebolista, cientista, encenador ou CEO”; criar e produzir iniciativas culturais “a que todos possam aceder e nas quais todos possam participar, afastando a ideia elitista da cultura difícil, complexa e longínqua”; e inspirar as pessoas a serem mais participativas, mais disruptivas e a pensarem diferente no seu dia-a-dia profissional, afectivo e de ócio.
Mas há mais. Os ‘geradores’ querem (con)viver “alheados das convenções do dia-a-dia”, e por isso, às histórias diárias de quem tem opinião com alma (sobre a mescla de boa música nacional que podemos e devemos ouvir, as estórias que se contam ao balcão da taberna antiga, as conversas rápidas mas intimistas com quem encontramos na esquina, as espreitadelas (fotográficas) aos sítios onde os autores produzem riqueza, em 6 faces da mesma moeda, as crónicas condimentadas do bem comer, ou a selecção de 100 perfis de autores que celebram a cultura portuguesa a seguir no Instagram) dizem – de 2ª Feira a Sábado – ‘Sou Todo Ouvidos’.
Os ‘geradores’ querem ter um projecto revelador de tendências criativas e originais e, por isso, criaram os Juízos Gerador, que atribui trimestralmente, na Revista Gerador, um vencedor e três menções honrosas, em seis categorias criadas a partir das personalidades, projectos, locais, eventos e entidades que se destacam na cultura portuguesa: Herói Gerador, Ideia luminosa, Local ideal, Na tua Rua, Os olhos também comem e Se eu fosse a vocês ia ver isto.
E querem também estar próximos das pessoas, por isso invadem o espaço público durante um dia, a cada três meses, com o Trampolim Gerador, de pulo em pulo entre concertos, performances, teatro, dança, fotografia, arte urbana, instalações, visitas guiadas, oficinas, debates e gastronomia. Para pôr a cultura portuguesa a dar o salto em espaços improváveis, de edifícios abandonados a claustros de igrejas.
Depois do Largo de São Paulo, onde arrancou a edição zero (em Fevereiro de 2015), da Praça das Flores (em Junho) e da Praça do Príncipe Real (em Outubro), a Mouraria, em Lisboa, é a emblemática zona escolhida para a 3ª edição desta que é uma das iniciativas mais concorridas do Gerador, e onde terão lugar, já a 14 de Maio, 68 iniciativas culturais totalmente gratuitas, que reúnem a participação de mais de 100 autores em 30 espaços “imprevisíveis, surpreendentes e, alguns, bem secretos”, dos vários largos do bairro aos claustros do Convento do Coleginho e à Igreja de Nossa Senhora do Socorro, passando pelas típicas tascas e restaurantes locais, comércio e turismo de alojamento, colectividades instaladas em palácios em ruínas, casas de fado, associações comunitárias como a Renovar a Mouraria (que se associa a este Trampolim no âmbito do projecto BIP/ZIP “Retalhos do Comércio de um Bairro”), várias instalações do Inatel, o parque infantil, uma estátua ou um banco de jardim…
Descodificar a cultura portuguesa
Quase dois anos antes do lançamento do projecto Gerador já o autodenominado ‘mestre de obras’ no Gerador, Tiago Sigorelho, trocava a gestão e a direcção de Estratégia de Marca pelo desafio aos dois amigos com quem havia de cruzar interesses no projecto cultural do Metro da Baixa-Chiado PT BlueStation, onde Miguel Bica era gestor de eventos e Pedro Saavedra programador cultural.
A partir de uma ideia “muito simples, descodificar a cultura portuguesa”, a criação nasceu do propósito de encontrar formas qualitativas para a apoiar e divulgar através de um projecto original e acessível a todos, como explica ao VER Pedro Saavedra: “para nós o problema não é a quantidade de cultura que está disponível, mas a forma como ela é definida, comunicada e usufruída”.
A equipa trabalhou desde logo na estruturação de uma rede de parceiros, ou “cúmplices no caminho de chegar a este objectivo”, e o ideal de uma cultura que extravasa domínios (da arte aos costumes populares) e geografias (da metrópole à aldeia) ganhou forma com a desconstrução da ideia de cultura difícil e a concepção de momentos culturais e artísticos alargados a todos os públicos. O que, em princípio, deverá contribuir para uma maior participação, com massa crítica, num processo de intervenção cívica que sempre escasseou em Portugal, e que se torna emergente no actual contexto socioeconómico do país (como prevê a missão – também – disruptiva do projecto). Afinal, “se não for pela criação de uma identidade colectiva, para que é que vivemos? Para que é que queremos dinheiro? Para que é que queremos ter filhos?”, questiona Pedro Saavedra.
Apesar do mote do Gerador – a cultura portuguesa precisa de amor –, o seu editor não concorda que os portugueses sejam um povo que cuida pouco do que é seu, da sua identidade e do seu património. Na sua opinião, temos até “uma das populações mais cultas do mundo”. A afirmação deve ser considerada numa perspectiva alargada, que em muito extravasa a “alta cultura, aquela que acontece nos grandes auditórios e grandes museus”, explica: “para nós quem cozinha pataniscas está a participar num evento cultural, e nisso nós somos dos países mais cultos. Em qualquer parte do mundo há um português, e seja a falar do Benfica ou das saudades de um bom bacalhau, somos um povo muito consciente da sua cultura, ao contrário de muitos outros países em que definir uma identidade nacional é quase impossível”. Tudo isto sem “nunca esquecer as muitas influências” que a cultura nacional recebe, há quase 900 anos… a tal ponto que até os restaurantes chineses fazem já parte dela, conclui.
Sobre os dois anos de trabalho desenvolvido pelo Gerador, nas suas inúmeras iniciativas, explica que tudo o que este projecto artístico-cultural descontraído e provocador alcançou foi graças “a uma pequena equipa híper barata mas híper motivada”. Sustentada por “híper colaboradores, parceiros e marcas que nos apoiam nas iniciativas”.
Na era do digital, a perseverança em publicar uma revista trimestral em edição impressa de tendência artística, socialmente interventiva e original, justifica-se pela “velha questão da magia” versus realidade: “a informação generalista é uma coisa, as publicações especializadas são outra. Experimentem comparar a sensação de receber um postal de Natal à de abrir um e-mail de Natal”, exemplifica.
Num país sem grandes apoios estatais para a cultura, Pedro Saavedra volta a questionar: “a que cultura nos referimos? Subsidiar a criatividade de um oleiro não é possível, aquecer a voz de uma fadista não é possível. Muitos museus e companhias de teatro já perceberam que o futuro da cultura não é de cima para baixo, mas de baixo para cima. Lá está, a cultura portuguesa precisa é de amor”.
Para o celebrar, nada melhor do que comparecer ao próximo Trampolim (nomeado para os Prémios Marketeer, na categoria ‘Arte e Cultura’), onde o cruzamento de gentes e cultura no típico bairro da Mouraria com a profusão de eventos culturais de todos, para todos, preservando a coexistência e proximidade entre as comunidades locais e o respeito pela diversidade e multiculturalidade, coloca a inevitável questão ‘Como morar nos novos mundos?’. A resposta é, para Pedro Saavedra “um trocadilho entre uma festa e uma interrogação. Ninguém sabe como vai ser o futuro, mas será de certeza diferente do que estamos todos a imaginar e isso é o sentido da vida (também da cultural). Vamos como-morar o que aí vem, porque virá certamente e recebê-lo com medo é uma parvoíce”.
Recordando que Lisboa sempre foi um porto de chegada e partida e, curiosamente, a Mouraria (que é nome de bairro em praticamente todas as cidades criadas pelos portugueses) sempre foi zona “para onde iam os outros, os que eram menos”, o editor do Gerador acredita que a ideia de “trabalhar como um mouro é mais culturalmente identificativa do que falar de cores de pele”. Neste contexto, e historicamente, “somos todos mouros”, conclui.
Defendamos então o princípio fundamental para a preservação e construção futura da identidade de Portugal de sermos simultaneamente moradores e visitantes de novas culturas e ideias. Invadindo e habitando o bairro da Mouraria, no próximo Sábado, entre as 15h e as 24h, para juntos usufruir da música de JP Simões ou do João Berhan, do afro-baile de Celeste/Mariposa, de workshops de danças portuguesas, africanas ou Bollywoodescas. De um teatro da varanda, de poemas declamados do alto de um sofá, de um ciclo de curtas de cinema, de arte urbana e de uma banda desenhada ao vivo. De mais um workshop, mas de sardinhada, da exposição ilustrada sobre o que se come na Mouraria e das centenas de produtos que os comerciantes vão misturar, numa feira no largo.
Participando numa história “de novos mundos como novos mundos em novas casas, em novas ruas e em novas ideias” espalhada por quatro pontos cardeais. Mesmo duvidando que o Norte, o Sul, o Este e o Oeste ainda estejam nos mesmos sítios.
Os sete motores que o Gerador liga em corrente contínua
LÍNGUA PORTUGUESA
Daquilo que é dito e escrito em português (sotaques, expressões, canções, literatura, artes narrativas)
PATRIMÓNIO MATERIAL
Os monumentos materiais (territórios, história, geografia humana, arquitecturas)
PATRIMÓNIO IMATERIAL
Os monumentos imateriais (tradições, festas populares, comida, vinho)
FUTUROS POSSÍVEIS
Ideias que tentam adivinhar o que aí vem (tendências, experiências, modas, artes urbanas)
CURIOSIDADE ETERNA
Perguntas que existirão sempre (ciência, natureza, tradições religiosas e desportivas)
PORTUGAL NO MUNDO
Onde a cultura portuguesa persiste (ex-colónias, novos territórios, derrotas culturais)
PORTUGAL VISTO DE FORA
Como nos vêem lá de fora (emigrantes, imigrantes, visões externas)
Fonte: Gerador
Jornalista