Em particular para os nativos digitais, que cresceram em pleno boom das plataformas sociais, tudo o que de bom e de mau experimentaram e que foi, voluntária ou involuntariamente documentado na Internet, ali permanecerá para sempre. Ou seja, quando um jovem entra a idade adulta, mesmo que tenha deixado para trás erros ou actos embaraçosos mais “próprios” da adolescência, crescerá com o fantasma que esses desvarios o possam vir a assombrar a qualquer momento. O direito de esquecer e de ser esquecido deveria ser universal, defende Kate Eichorn, especialista em media e estudos culturais e há que reflectir sobre o que significa toda esta exposição a que estamos crescentemente sujeitos
POR HELENA OLIVEIRA
Tudo tinha corrido bem. O processo de selecção estava quase no fim e a última entrevista pressagiava a contratação. Até que, no último minuto, tudo se desmoronou. O que aconteceu é que o potencial futuro empregador de X resolveu dar uma olhada na sua conta de Facebook, descobriu algumas fotos inapropriadas tiradas durante os anos de faculdade e decidiu que, afinal, X não era o indicado para o lugar.
Este cenário, mais comum do que imaginamos nos dias que correm, serve de pano de fundo para a tese que sustenta o trabalho realizado por Kate Eichorn, professora de estudos culturais e de media e autora do livro “The End of Forgetting: Growing Up With Social Media”. No mundo digital em que vivemos, argumenta, tudo é minuciosamente documentado, etiquetado, partilhado e qualquer coisa, a qualquer momento, pode emergir no nosso presente, mesmo que, e supostamente, devesse ter ficado no nosso passado.
De que forma é que esta realidade está a alterar as nossas vidas? O que é viver sob uma ameaça constante que um desvario ou erro da adolescência possa assombrar o nosso presente e o nosso futuro? Quais são as ramificações possíveis quando uma geração inteira não tem – ou tem, mas com consequências – a hipótese de ter experiências próprias da adolescência? E de “refazer” a sua vida quanto entra na idade adulta?
Pela primeira vez, escreve num excerto do livro publicado pela revista Wired, “os jovens têm a tecnologia e a capacidade para construir e representar as suas vidas”. Mas com custos.
E é com enfoque em particular na geração dos nativos digitais que Eichorn abre caminho para uma interessante reflexão sobre o impacto dos media sociais na nossa identidade, na nossa vida pública, na negação da nossa privacidade e, tal como o título do livro indica, no direito a esquecer e a ser esquecido, ao qual confere uma espécie de estatuto humano universal, contrário aos caprichos e interesses das empresas que usufruem dos dados que vão recolhendo desde que se nasce. Para a autora, e como escreve no livro, a internet interrompeu a privacidade de um período ao longo do qual a experimentação é para ser feita livremente, tendendo a ampliar erros até que estes atinjam dimensões monumentais e a transformá-los em registos permanentes que podem ser acedidos a qualquer momento sem qualquer controlo ou permissão dos visados.
Avançando para a forma como se documenta a infância e a adolescência na era dos media sociais, Eichorn oferece algumas estatísticas que não nos podem deixar indiferentes: no mundo inteiro, 80 mil milhões de fotografias foram tiradas no ano 2000, com o número a superar os três biliões em 2015 e com 75% destas a serem produzidas através de smartphones. A proliferação de imagens digitais representa um conjunto de formas mediante as quais jovens e crianças estão a criar as suas identidades públicas, mas também significa que uma pessoa pode ser involuntariamente associada a um grupo ou a um acontecimento com o qual não se identifica, mesmo que o tenha feito no passado. Por outro lado, o simples facto de se estar a passar na rua e num local onde está a decorrer uma qualquer manifestação abre caminho fácil para se ser “apanhado” e “tagado” numa imagem desse mesmo evento, mesmo que se seja um mero transeunte e nada se tenha a ver com a reivindicação ou descontentamento em causa.
Ou seja, e para aqueles que cresceram com os media sociais – um grupo que inclui quase toda a gente com menos de 25 anos – a infância, e a adolescência, períodos que se mantinham privados ou apenas retratados em álbuns de fotografias ou em velhas gravações de vídeo caseiras – estão agora completamente acessíveis. E, para Eichorn, esta realidade tem, com toda a certeza, algum tipo de efeito profundo no desenvolvimento da identidade, apesar de não termos ainda muita informação sobre que tipo de consequências daí poderá advir.
É verdade que são os próprios jovens, e até crianças que, sem qualquer esforço, criam imagens “perpétuas” e colocam-nas em circulação sem qualquer interferência dos adultos. E se por um lado esta prática poderá ter benefícios vários, pois as novas tecnologias – e em particular os smartphones – nos permitem produzir uma narrativa das nossas vidas e escolher o que merece a pena permanecer nas nossas memórias, por outro nega-nos a possibilidade de deixar no passado algo que poderá interferir com o nosso presente e futuro. São também e infelizmente muitos os casos de adolescentes e jovens adultos – e adultos, em particular figuras públicas – que são vítimas de bullying online, de chantagens perigosas e de ameaças que podem levar até ao suicídio.
Como explica Eichorn numa entrevista à VOX, “algumas pessoas argumentam que existe tanta informação disponível neste momento, que nos estamos a esquecer ‘mais do que nunca’, com outras a defender que devido ao facto de estar tudo online, também não precisamos de nos lembrar de nada”. O que pode ser verdade, diz, mas acrescentando que, em simultâneo, estamos a perder algo de muito precioso: a nossa capacidade para controlar a bagagem que levamos connosco para o futuro.
Esquecer tem a ver com a liberdade
A especialista em media e estudos culturais recorda também que na “cultura das fotografias impressas”, toda a gente poderia escolher guardar ou não todas as fotografias embaraçosas tiradas no período do secundário ou dos tempos da universidade e, mais importante, se a opção fosse guardar essas recordações, era possível escolher com quem se partilhava as mesmas. Com o advento da fotografia digital, e com o florescimento dos media sociais como o Facebook ou o actualmente favorito Instagram, a quantidade de fotos de que dispomos é gigantesca, sendo a sua circulação rápida, imediata e sem qualquer tipo de controlo. O que também não significa que as fotografias “antigas” não possam ser digitalizadas e “encontradas” e partilhadas pelos piores motivos. Um dos vários casos exemplificativos que Eichorn retrata no seu livro é o da congressista Alexandria Ocasio-Cortez que, na altura que foi eleita para a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, viu ser publicado e partilhado um vídeo seu, dos seus tempos universitários, no qual aparecia descontraidamente a dançar com umas amigas e que os seus opositores políticos tentaram usar para assombrar a sua imagem. O vídeo era completamente inócuo, mas é apenas um exemplo de como o passado pode sempre bater à porta nesta casa digital onde vivemos e um sinal do que, crescentemente, se poderá enfrentar, pois a capacidade de se usar fotos, comentários, tweets ou vídeos, em particular fora do contexto, é extraordinária.
O que realmente mudou é a possibilidade do passado interromper o presente, de uma forma desmesuradamente ampliada e em particular ao longo da última década. E, de acordo com a autora, estamos apenas numa fase inicial para enfrentarmos as suas consequências.
É óbvio que este perigo paira mais sobre as cabeças de figuras públicas, mas os cidadãos privados estão igualmente a sofrer o impacto desta mudança. Em particular nos Estados Unidos e no Reino Unido, e por parte das mais prestigiadas universidades, é muito comum os recrutadores consultarem os perfis online dos candidatos, muitos deles escavando mesmo fundo à procura de informação potencialmente incriminatória. E o mesmo está a acontecer com o recrutamento por parte das empresas. Eichorn chama ainda a atenção para uma “indústria em ascensão” e que só pode ser do usufruto de quem tem dinheiro: a contratação de especialistas por pais endinheirados, com a missão de apagarem a pegada digital dos seus filhos para que não hajam más surpresas. De acordo com a autora, um número crescente de empresas que prestam consultoria às universidades, por exemplo, está a oferecer “serviços de higienização da pegada electrónica”. “No futuro, esta indústria irá muito provavelmente crescer”, assegura a especialista em media e cultura: “as pessoas que tiverem os meios económicos para gerir a pegada digital dos seus filhos terão uma vantagem distintiva, o que significa que o ‘esquecimento online’, como tudo o resto, será também monetizado”.
O livro de Kate Eichorn levanta outras questões pertinentes às quais a sociedade deverá saber responder: quão justo é julgar alguém por algum erro ou desvio que tenha sido feito no passado? O que é que deve ser perdoado? Qual a linha que separa um acto grave de um outro inconsequente? Não é verdade que toda a gente merece uma segunda oportunidade?
Um dos exemplos que constam no livro é o de Kyle Kashuv, um dos jovens que sobreviveu aos tiroteios de Parkland. Alguns anos antes do incidente, Kashuv estava a fazer um trabalho de grupo com os colegas utilizando um Google Doc partilhado e no qual fez alguns comentários racistas. Depois do tiroteio que tirou a vida a 17 estudantes, Kashuv ganhou alguma proeminência enquanto defensor da posse de armas como forma de defesa e as considerações racistas que houvera proferido vieram ao de cima. Para tentar conter os danos – e porque percebeu que o que dissera anos antes poderia jogar contra si – o jovem voltou ao documento e apagou esses mesmos comentários. Ora, e na medida em que os seus pares sabiam exactamente que estes tinham ficado gravados e porque é possível, neste tipo de documento voltar a uma versão anterior, na altura em que Kashuv foi aceite como estudante em Harvard, os colegas partilharam o Google Doc em causa e quando a prestigiada universidade teve conhecimento do sucedido, acabou por não o aceitar. Ou seja, apesar de o seu discurso ser repreensível, a verdade é que acabou por ter consequências negativamente pesadas para Kashuv. E, como afirma Eichorn, o jovem não teve oportunidade para crescer, nem para aprender, nem para se arrepender. Como escreve, “por um lado, olho para a situação e penso que Harvard fez bem em recusar a sua permanência na universidade. Mas, e por outro, o que estamos a dizer aos mais novos é que eles não têm, na verdade, espaço algum para crescer e eu considero isso perigoso”.
Assim sendo, vê dois caminhos alternativos para os jovens: ou as pessoas mais novas deixarão de correr algum tipo de risco – o que é contrário à “natureza” da própria adolescência -, começando desde cedo a cultivar um processo de auto-censura que também não é saudável ou, se não o fizerem, poderão pagar um preço elevado por erros ou momentos embaraçosos, os quais, noutros tempos, seriam facilmente esquecidos e considerados como insignificantes.
A incapacidade de reinvenção
O que Eichorn critica é exactamente o facto de a capacidade de estes jovens se reinventarem à medida que vão crescendo e entrando na idade adulta lhe estar a ser negada pelo seu passado digital. Por outro lado, afirma também que, ao contrário dos “velhos tempos”, a gestão da reputação é agora uma realidade na vida de muitos jovens. “Se falar com jovens adultos ou adolescentes, a grande maioria sabe que deveria estar a pensar na diferença existente entre o perfil que partilham com os seus pares e aquele que os recrutadores futuros, seja por parte das universidades ou das empresas, irão pesquisar”, afirma.
Crítica acérrima dos gigantes empresariais tecnológicos, a professora de media e cultura cita uma razão particular que explica o motivo dos jovens terem finalmente acesso a ferramentas necessárias para representarem as suas vidas e fazerem circular imagens dessa mesma existência: a de que as empresas privadas querem e podem retirar lucros astronómicos dos dados que partilham e que o problema, neste caso, reside no capitalismo. “E qualquer dano reputacional que possa advir e perturbar um indivíduo no seu futuro não será uma preocupação para os gigantes digitais”, assegura, acrescentando ainda que, a pensar-se em soluções, nunca serão estas empresas a contribuir para o alcance das mesmas.
“Os media digitais”, escreve, “são tanto imperdoáveis como ‘inesquecíveis’”. E o que aparentemente faz parte da vida privada de cada um, faz simultaneamente parte de um registo público acessível a todos e para todo o sempre.
“E ninguém no mundo digital das tecnologias de informação tem algum incentivo para apagar centenas de terabytes de histórias pessoais, certamente sem ganhar algo em troca”, assegura Eichorn. Apesar de apontar algumas possibilidades e compromissos possíveis, como as empresas privadas passarem a assegurar que o acesso aos dados privados possa ser negado por um período previamente estabelecido ou que os conteúdos dos jovens gerados pelos media sociais poderiam ser postos fora de circulação em troca de uma recolha mais intensiva quando estes fossem mais velhos, a verdade é que se sabe que nada disto irá acontecer.
O trabalho de Kate Eichorn terá de ser, mais cedo ou mais tarde, incluído no discurso público sobre de que forma retiramos significado do “eu” e dos outros nos espaços digitais. Estamos ainda a tentar compreender o impacto dos media sociais na forma como “gravamos” as nossas vidas e, ao fazê-lo, de que maneira, e inevitavelmente, carregamos com a nossa história no caminho para o futuro. E o livro de Kate Eichorn recorda-nos também que as várias experiências a que temos direito, como as diversas personalidades que fazem parte do nosso crescimento, mesmo que por vezes ligadas ao erro, constituem parte integrante da condição humana. E, como escreve a autora, o grau mediante o qual devemos perdoar os outros, ou responsabilizá-los, permanece como uma preocupação ética premente, mais ainda inescrutável.
Editora Executiva