A crise financeira “e a marcha de autodestruição da Zona Euro” aumentaram não só as desigualdades sociais como “a possibilidade de uma hecatombe no sistema internacional”. É preciso, pois, chamar seriamente a atenção para a “anarquia madura” que caracteriza hoje o sistema mundial: os órgãos que tomam as decisões fundamentais, como o G20, não têm cobertura política ou jurídica. Soromenho-Marques e Adriano Moreira deram que pensar, no seminário do PE dedicado à cidadania europeia e empregabilidade O Gabinete do Parlamento Europeu em Portugal realizou a 4 de Outubro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, o seminário “A Cidadania Europeia e os Desafios da Empregabilidade”. O encontro reuniu Adriano Moreira e Viriato Soromenho Marques com o embaixador português para o Ano Europeu dos Cidadãos, Eduardo Paz Ferreira, numa reflexão sobre as questões da cidadania e dos direitos sociais, no contexto da mobilidade profissional na União Europeia (EU) e dos desafios que se colocam hoje em matéria de emprego. António José Teixeira, director da SIC Notícias e subdirector de informação da SIC moderou o seminário, que incluiu ainda um debate entre os Eurodeputados Marisa Matias, Maria da Graça Carvalho, Correia de Campos e João Ferreira, dedicado ao tema em análise no evento promovido no âmbito deste Ano Europeu (ver caixa). A marcha de autodestruição da Zona Euro As vagas de direitos civis, políticos e sociais que atravessaram, respectivamente, os séculos XVIII, XIX e XX, incidiram sobre uma “realidade histórica plural e diversificada” que não pode ser restrita a “uma visão linear”, mas permitiram lançar as raízes para o Estado Social. Citando Thomas Hobbes, numa das “mais originais e profundas teorias do Estado”, em que este “surge para impedir o ‘estado natural do homem’, caracterizado pela ‘guerra de todos contra todos’, pelo sofrimento e miséria”, o professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa recordou os ideais de assistência pública e de condições sociais para o trabalho saídos da Revolução Francesa, e as primeiras políticas públicas de emprego activas, que surgem em 1793. Ou, nas palavras de Hobbes, a definição dos deveres sociais do Estado, garantindo que os cidadãos que necessitem não sejam “deixados à caridade de pessoas privadas”, mas antes, sejam “sustentados (…) pelas leis da comunidade”.
Depois dos avanços sobre os direitos sociais, patentes em marcos como o direito à instrução e à assistência pública, que já Kant analisara na sua “Metafísica dos Costumes” (1797) e a criação de um sistema de segurança social justo, com seguros sobre a saúde, acidentes de trabalho e por velhice ou invalidez, de que é exemplo “a política social de Bismark nos finais do século XIX, no Sonderweg alemão”, a explosão da protecção social dá-se nos idos anos trinta, logo após a Grande Depressão de 29, “justamente quando os Estados menos tinham”. Nos EUA com a constituição, em 1935, do Social Security Act. Em Portugal, com a definição, em 33, do Estatuto do Trabalho Nacional. Este incremento da coesão e justiça socais é expressivo na Grã-Bretanha, “que toma o comando”, diz Soromenho-Marques, cunhando “o conceito de ‘welfare State’ contra o Estado da ‘totaler krieg’ da Alemanha nazi“. Se com a política económica de Estado intervencionista de John Keynes era necessário controlar as crises cíclicas do mercado e aumentar o papel regulador do Estado e a sua acção como agente económico, na Era Dourada dos anos 70 – com “o fim do padrão ouro-dólar” e a vaga ideológica ultraliberal que fez com que Friedrich von Hayek e Milton Friedman fossem Nobel da Economia, em 1974 e 1976 (a propósito, o professor sugere que “se sigam sempre os Nobel para se saberem as ideias que vão perdurar) – dá-se “a pressão para a mudança de políticas favoráveis ao crescimento, via desregulamentação”. A receita ultraliberal inclui “a privatização do sector público (com redução das despesas públicas e gastos sociais e o alívio da carga fiscal), a desregulamentação do trabalho, dos condicionamentos ao investimento dos fluxos financeiros e do comércio internacional, e a diminuição das medidas de protecção ambiental”. E é assim que a ideologia de protecção social “praticada na maioria esmagadora dos países desenvolvidos após a Grande Depressão”, sendo “um factor decisivo na radical diminuição da pobreza”, choca com o novo ciclo ideológico ultraliberal, com as mudanças globais ao nível de recursos naturais e capacidade de carga dos ecossistemas, e com “a concorrência das economias emergentes ‘libertadas’ pela nova globalização”, conclui Soromenho-Marques. “O que rege hoje a Europa é o Pacto Orçamental”
O que fazer para “ultrapassar estes tempos sombrios”? Na perspectiva do professor, o que está novamente em causa “é uma luta para salvar a economia de mercado”. Sobre a desigualdade que disparou na União Europeia – dois exemplos: “a banca sombra movimentou 67 mil milhões de dólares americanos em 2011 (111% do PIB mundial)”; e os artigos de luxo “têm crescido a dois dígitos” desde 2008 –, é de lamentar “a retirada absolutamente desorganizada” dos direitos sociais. E é de observar a sociedade que estamos a construir, onde cabem cada vez mais lutas sociais. Em Portugal, “sem Estado social a pobreza disparará de 19 para 43%”, calcula Soromenho-Marques. Os principais alvos dos cortes aplicados peloGovernosob o argumento da troika – “salários, despesas de capital, saúde, educação” – são errados, acusa. As questões centrais, como a redução brutal das receitas correntes ou os juros, “têm sido ignoradas”, conclui. Como pode a Europa “sair deste plano inclinado”? “Não é o Estado social que impede a criação de emprego na EU, mas sim o processo de autofagia causado por uma resposta à crise da Zona Euro que ignora a verdadeira raiz dos problemas e falha a terapia”, defende: sem uma mudança de política na EU, “corremos o risco de assistir a uma fragmentação da Zona Euro, com consequências globais”, acrescenta. A boa notícia é que apesar da crise, o apoio ao Euro persiste. Segundo um estudo de Maio de 2013 do Pew Research Center, entre 69% (na Grécia) a 63% (na França) dos cidadãos dos países da EU auscultados querem manter a moeda, contra 37 a 25% favoráveis a saída da Zona Euro. Outro consenso esmagador tem a ver com a “ineficácia da austeridade”: só na Alemanha, metade da população pensa assim, segundo um estudo do Financial Times também referido por Soromenho-Marques. O professor de Filosofia Social e Política e de História das Ideias na Europa Contemporânea traça um “diagnóstico sistémico” segundo o qual “a União Económica e Monetária sofre de um defeito genético de design”. É que “uma união que arranca aos seus Estados-membros o poder soberano sobre a emissão de moeda e sobre o seu valor (poder cambial), sem criar uma soberania partilhada nos domínios fiscal, orçamental e de governação económica, é uma quimera monstruosa”.
Considerando que a “lei que rege hoje a Europa é o Pacto Orçamental”, Soromenho-Marques acredita, assim, que a crise europeia “não é uma crise económica e financeira, mas das políticas económicas e financeiras”. No seu entender, a Europa precisa de um design que funcione, com um Orçamento Federal, incluindo a dívida europeia, para financiar políticas contra-cíclicas (energias renováveis, smart-grids, I&D à escala europeia, emprego jovem, PME, etc.); uma União Bancária plena que separe os bancos dos Estados; um Banco Central Europeu centrado no duplo objectivo da inflação e do desenvolvimento/emprego; e um mercado europeu de Emprego com direitos. Os Eurobonds, se aplicados ao financiamento deste orçamento Federal, justificam-se, diz ainda. “O Homem apenas toma grandes decisões quando a crise lhe bate à porta”, disse Jean Monnet. Para Soromenho-Marques, “o momento de Monnet é agora”, quando “não temos todos de ser políticos mas, perante a situação, temos todos de fazer politica em defesa própria”. “É um erro centrar o exame da crise na Europa” O professor começou por recordar que a evolução dos direitos sociais para dar resposta às dificuldades (verificada também em Portugal) tem um historial que “implica uma luta tremenda contra as desigualdades, “presidida pelo princípio fundamental da dignidade do homem”.
Mas em Portugal, por exemplo, a definição dos princípios de Estado social “é uma principiologia da Constituição”, porquanto o ensino ou a saúde devem ser gratuitas, mas apenas na medida do possível”, comentou Adriano Moreira. No fundo, “o princípio da solidariedade aplica-se à comunicação de afectos que está na base das pessoas”, o que permite efectivamente colmatar as lacunas da exclusão social. Considerando que a estatística é “uma comunicação sem fios”, que faz com que estejamos “a ser guiados pelo que conseguimos medir”, o também estadista, político, advogado e sociólogo, com vasta bibliografia nas áreas das relações internacionais, ciência política e estratégia, deixa o alerta: “é um erro centrar a atenção ao exame da crise na Europa. O globalismo está sempre presente”. Lembrando que a superioridade da Europa e do Ocidente remonta ao regime colonial do domínio das matérias-primas, energias e do preço do trabalho, Adriano Moreira aponta outro “pressuposto totalmente errado”, de então: “pensar que a superioridade científica e técnica era suficiente para manter a supremacia”. Não era. Afinal, “esquecemo-nos do saber e do saber fazer”, conclui. E, com o novo-riquismo sequente à adopção da ideologia pós queda do muro de Berlim, os países e o governos começaram a gastar muito mais do que tinham, numa visão totalmente contrária ao Estado Social, que provocou a actual situação em que nos encontramos”. Na opinião do reconhecido pensador, “faz falta à Europa cidadania e identidade política”, principalmente porque, como se lê num título da autoria de Nixon, “a 3ª Guerra Mundial já começou”, com a “luta pela hegemonia” que ocorre hoje no mundo. É preciso, pois, chamar seriamente a atenção para a “anarquia madura em que estamos”, sublinha Adriano Moreira. Os órgãos que tomam as decisões nas matérias fundamentais que nos dominam não têm cobertura política, diz, esclarecendo: não há Tratado que cubra o G20, mas é ele que toma as decisões. E a verdade é que este sistema mundial anárquico até “faz esquecer que existe na ONU um Conselho Económico e Social, nunca convocado”. Ora, “se a crise é global”, se a bolha rebentou na Europa mas também nos EUA, no Brasil, etc., porque não toma o CES conta da situação?” Provavelmente porque é hoje “um templo de orações ao Deus desconhecido que pede que se evitem os problemas, em abstracto”, conclui. Mas estes não são nada abstractos, se pensarmos que “mais de metade dos países do mundo não tem capacidade para enfrentar as catástrofes naturais e as epidemias”, entre outras enfermidades.
“Centros de poder não têm cobertura jurídica” E é assim que, num continente cada vez mais dividido entre a Europa dos ricos e a Europa dos pobres, como mostram os números, “as manifestações populares não enquadradas revelam a falta de confiança no poder instituído nas leis”. Ora, convém não esquecer que grandes revoluções, incluindo a Francesa, “começaram assim”, alerta o professor. Apesar de graves, as actuais questões europeias são apenas uma parcela do “grande problema global” que enfrentamos, esclarece, e se “a voz da Europa faz falta ao mundo e é fundamental para reorganizar a paz”, a União Europeia tem de ser efectiva (e não conter “uma hierarquia de quem manda desconhecida”). O recado não é de todo descabido, pois a verdade é que “vivemos um momento de ruptura” e, como sugere o professor, se não conseguirmos salvaguardar “a voz mas também a autoridade da Europa”, é melhor contarmos com o inesperado, “que está sempre à espreita”. Também Eduardo Pais Ferreira acredita que a Europa precisa de um regresso aos valores essenciais: “os humanos e não os financeiros”. Recordando que a União Europeia nasceu, “em grande parte, para resolver os problemas das pessoas em dificuldades, no pós-guerra”, o Embaixador do Ano Europeu dos Cidadãos diz que “é necessário retomar essa ligação”. Na sua opinião, o período salazarista em Portugal, durante o qual o país “viveu com o mito das finanças sãs”, pagando para tanto o preço de ser, durante muitos anos, “um país sem educação, segurança social ou cultura”, demonstra que “dar prioridade aos problemas financeiros não resolve as questões estruturais”. Estes problemas têm efectivamente de ser resolvidos, “mas não pela via da austeridade”, defende.
Em declarações ao VER, o advogado e jurisconsulto considerou ainda fundamental “que os países com mais prosperidade aceitem reequilibrar o relacionamento com o Sul, pondo em prática políticas de expansão que permitam criar melhores mercados para exportação e turismo, por exemplo”. Certo é que se todos estes países vivessem actualmente sob políticas de austeridade, “os resultados seriam desastrosos”, alerta. Para o Embaixador do Ano Europeu no âmbito do qual o Gabinete do PE em Portugal promoveu esta conferência, depois da “decadência mundial do sistema económico, que nos levou a esta tragédia em que o ídolo é o dinheiro”, a Europa tem hoje “um plano em marcha: pôr o emprego à frente”. E, porque “onde falta o trabalho, falta dignidade”, como proferiu recentemente e com eco mundial o Papa Francisco, “o desemprego é entendido no PE como uma prioridade”, garante.
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Jornalista