POR HELENA OLIVEIRA
Um dos mais famosos – e controversos – estudos sobre a obediência foi realizado pelo psicólogo e professor na Universidade de Yale, Stanley Milgram, em 1963. As experiências levadas a cabo por Milgram tinham como principal objectivo o enfoque no conflito existente entre a obediência à autoridade e a consciência pessoal. Tendo como pano de fundo os nazis condenados, no Tribunal de Nuremberga, pelos seus actos de genocídio durante a segunda guerra mundial – e como ponto de partida a defesa dos mesmos que se baseava na ideia que se tinham limitado a obedecer a ordens – o psicólogo de Yale protagonizaria uma experiência que ainda hoje é tida como obrigatória para quem estuda a psicologia da obediência.Muito resumidamente, a experiência, com a duração de dois anos, foi feita com centenas de pessoas que, voluntariamente, se ofereceram para fazer de “professores” de um “aluno”- da equipa do psicólogo – este último sentado numa outra sala e amarrado a uma cadeira de choques eléctricos. Os “professores” recitavam um conjunto de palavras e o “aluno” deveria repeti-las sem se enganar. Cada vez que surgia um erro, o “professor” tinha permissão para lhe ministrar choques, de intensidade crescente, começando com 15 volts (choque ligeiro) e aumentando-os até 450 volts (choque severo). Alguns dos voluntários (que eram pagos para fazer parte da experiência), horrorizados com o que lhes era pedido, abandonaram a experiência precocemente, desafiando a insistência do supervisor para continuarem; mas outros continuaram e chegaram a intensificar os choques até aos 450 volts, mesmo depois do “aluno” gritar por clemência. Na variação mais conhecida desta experiência, 65% dos “professores” voluntários cumpriram-na até ao fim.
Na verdade, nem os choques eram verdadeiros, nem o “aluno” gritava de dor, mas os voluntários não tinham conhecimento destes factos. Nem sabiam também que tinham sido usados para provar o argumento que tornaria Milgram famoso: o de que pessoas comuns, comandadas por uma figura de autoridade, obedeceriam a qualquer ordem que lhes fosse dada, até mesmo à tortura.
Mais de cinquenta anos passados e este fenómeno continua a ser usado para explicar atrocidades não só como o Holocausto, mas também as que foram feitas durante a guerra no Vietname ou os abusos perpetrados aos prisioneiros de Abu Grahib. E é sobre (e contra) esta obediência cega – que está presente em todas as instituições da sociedade contemporânea – que versa o novo livro de Ira Chaleff, consultor, coach e especialista em ética empresarial, intitulado “Intelligent Disobedience: Doing Right When What You´re Told To Do Is Wrong”, o qual tem vindo a ser aclamado por pessoas de diferentes quadrantes.
Com base na denominada “desobediência inteligente”, um conceito normalmente utilizado no treino de cães-guia, os que acompanham pessoas com deficiência, e que são suficientemente espertos para obedecer, mas também inteligentes o suficiente para desobedecer quando pressentem algum perigo e não seguem, por questões de protecção, as ordens que lhe são dadas, o autor convida a uma viagem – a qual visita níveis diferentes das nossas vidas – e à compreensão da obediência apropriada e da desobediência inteligente em cada um destes estágios – pessoais, profissionais, educativos, etc., – para reforçar a nossa capacidade de criar o equilíbrio certo entre ambos. Porque são muitas as situações em que não devemos cumprir ordens que nos são dadas, em particular quando as mesmas colidem com os nossos fundamentos morais e éticos.
A natureza da obediência na sociedade
O argumento inicial de Ira Chaleff – que é também fundador e presidente da Executive Coaching & Consulting Associates, sedeada em Washington – centra-se no papel da socialização na sociedade contemporânea, o qual se acentua, na maioria das vezes, no pré-escolar e que, ao longo de pelo menos 14 anos, assenta num sistema que não existe apenas para nos educar, mas exige, em simultâneo, que saibamos reconhecer, e obedecer, à autoridade e regras do mesmo. O livro representa, assim, em termos muitos gerais, uma exploração fascinante da psicologia da obediência na sociedade, presente em todas as suas instituições – e, em particular, nas empresas – em conjunto com as implicações decorrentes das nossas escolhas diárias, principalmente nos nossos locais de trabalho.
Mas e antes que se presuma que este exercício de escrita consiste em um incitamento “gratuito” à rebelião, convêm explicar o que realmente significa o conceito de “desobediência inteligente”. Numa entrevista à Fox Business, o autor responde da seguinte forma.
“Para percebermos a desobediência inteligente é necessário que compreendamos, primeiro, a natureza da obediência na nossa sociedade”, afirma. E, de acordo com Chaleff, a verdade é que o nosso sistema está mais concebido para incutir comportamentos de obediência – mesmo que estes incluam ordens de violação moral, ética ou legal – do que um sentido de responsabilização.
Desde o primeiro momento em que nos sentamos numa sala de aula, somos imediatamente ensinados pelos professores que temos de obedecer e que resistir a uma autoridade conduz a consequências negativas. Chaleff descreve esta realidade como uma “metaprogramação não intencional”, a qual tem origem no facto de, historicamente, as instituições educativas colocarem demasiado enfase no cumprimento das regras, as quais acabamos por interiorizar e aceitar subconscientemente à medida que vamos crescendo.
O problema é que esta espécie de obediência reflexiva – não questionada – pode resultar em consequências graves, em particular nas empresas. Se pensarmos no escândalo que rebentou esta semana com a Volkswagen, acusada de manipular os seus testes de emissões de poluentes, não é difícil imaginar quantos terão sido aqueles que, obedecendo a ordens superiores, não se insurgiram contra ordens vindas do topo e pactuaram com a fraude que está já avaliada em 6,5 mil milhões de euros (só em coimas e cujo valor poderá vir a duplicar). E, infelizmente, este é só mais um caso a juntar a outros tantos.
A importância de saber dizer “não”
Alertando para o facto de esta desobediência inteligente não ser uma questão de mera teimosia, ou de “rebelião por rebelião” – daí o termo “inteligente” –, o autor sublinha a capacidade que devemos ter para avaliar o potencial de perigo ou prejuízo para nós mesmos, e para os outros, antes de decidirmos não cumprir com uma directiva proveniente de uma figura com autoridade. E a atitude que defende é optarmos por uma acção que produzirá o bem e/ou o menor dos males mesmo que as probabilidades de entrarmos em colisão com as ordens que recebemos dos nossos superiores hierárquicos sejam elevadas ou certas. E é também por isso que escolheu, para subtítulo do seu livro a ideia “fazer o que é certo quando nos mandam fazer algo errado”.
As histórias, reais, que Chaleff elegeu para conferir uma componente prática à sua exploração da psicologia da obediência ilustram bem os perigos do não questionamento de ordens, para além de serem essenciais em termos de salvaguarda organizacional: sejam elas sobre enfermeiras que protegem os seus pacientes e os seus empregadores questionando as ordens dos médicos por não se coadunarem com a sua própria formação, sejam sobre técnicos de contas que podem evitar fraudes gigantescas ao se recusarem a acatar ordens de “reengenharia financeira” que violam os seus padrões e normas profissionais, entre outros exemplos variados.
E uma destas histórias remonta a um período particularmente fértil em escândalos empresariais, o qual começou em 2001, com a Enron e, logo um ano a seguir, com a WorldCom (entre outros). Sobre esta última, o autor conta a história de Betty Vinson, uma das executivas de topo da empresa responsável pelas contas da WorldCom, quando a primeira vez que lhe foi pedido para “maquilhar” os resultados da empresa, demonstrou a sua não conformidade com as práticas contabilísticas. O “é só este mês” respondido por superiores hierárquicos do outrora gigante das telecomunicações apenas serviu para recordar a Betty Vinson o quão bom era o seu emprego e o quanto a empresa contava com ela para o continuar a merecer. Apesar de ter chegado a escrever uma carta de demissão – depois de ter decidido que era melhor manter a sua integridade, a sua carteira profissional e a sua dignidade – Vinson acabaria por rasgar a dita carta e pactuar com a gigantesca fraude contabilística, ao longo de cerca de 18 meses, a qual ascenderia ao valor de 11 mil milhões de dólares. Apesar de ter assumido a culpa e de ter colaborado na investigação que se seguiu ao escândalo, com a velha e má desculpa de “estar somente a seguir ordens”, Vinson viria a ser condenada a uma pena efectiva de prisão.
A verdade é que, normalmente, quando somos apanhados no meio de um conflito grave, poucas são as vezes em que temos mais do que duas opções: ou obedecer irrevogavelmente ou rebelarmo-nos e correr o risco de perder tudo.
Como sublinha o autor, nenhum segmento da cultura em que vivemos é imune a comportamentos desta natureza: da política ao desporto, das instituições religiosas a todo o sistema educativo, da saúde aos transportes, dos serviços militares aos serviços financeiros, sem esquecer a produção alimentar, as telecomunicações, o sector da energia, entre outros tantos.
E se nos questionamos amiúde sobre como foi possível a empresa X ou a organização Y ter tido coragem de cometer determinados actos ou tomar determinadas decisões, raramente temos a coragem de questionar, ao invés, o que é possível mudar para que o mesmo problema não se repita.
E este é um dos motivos que levou Chaleff a escrever este livro. Para o autor, e como escreve no prefácio do livro, depois de já ter trabalhado como consultor e coach em organizações tão distintas como agências governamentais e forças armadas, grandes empresas, associações sem fins lucrativos e universidades, conhece exactamente as pressões que existem, nos diferentes níveis hierárquicos, bem como as escolhas difíceis que têm de ser feitas. E sabe que também poderia ter escrito um livro sobre comportamento organizacional e decisões operacionais e éticas. Mas, se assim fosse, estaria apenas a analisar os sintomas ou, no melhor dos casos, a doença, sem explorar as causas e os possíveis remédios para as mesmas. Apesar de apresentar uma fórmula (v. Caixa) sobre como é possível alterar as estruturas sociais que apoiam – e encorajam – a obediência cega e inapropriada, o autor coloca no leitor a responsabilidade de as colocar em prática na vida real. Só assim, diz, é possível educarmos os nossos filhos, ou alunos, ou gestores, e ajudá-los a discernir sobre quando a desobediência é uma necessidade e não uma traição ou uma prova de deslealdade.
Saber lidar com o paradoxo da lealdade
Da perspectiva de um gestor, Chaleff explica que é urgente “reconhecer e reforçar as instâncias da ‘obediência dissidente’”. Ou, por outras palavras, serem os gestores capazes de ultrapassar o seu reflexo de reacção negativa a qualquer que seja a dissidência e aprender a parar e a questionar se existe realmente um perigo que está a ser percepcionado por um colaborador e que, por algum motivo, não o estejam a ver.
Como sublinha, se a ideia é confrontar ou avisar um líder – ou outro superior hierárquico – de alguma situação que nos está a gerar desconforto – a melhor via é a da diplomacia. Na maioria das vezes, os líderes tornam-se imediatamente defensivos quando são questionados acerca de algum procedimento ou comportamento que, a seus olhos, é “normal”. Mas são também os líderes mais inteligentes aqueles que arranjam tempo para distinguir entre “estarei eu a ser demasiado obstrucionista, esta pessoa está apenas a agir contra a minha autoridade ou está a tentar-me dizer que eu preciso de tomar particular atenção a determinada realidade?”.
O problema não se coloca só ao líder, evidentemente, mas também ao que está abaixo dele na escala hierárquica, e que muitas vezes tem de enfrentar o paradigma da lealdade. Se, por exemplo, existe um gestor intermédio que está a fazer algo errado e a colocar em causa a reputação da empresa, a coragem de reportar o facto a um executivo de topo ou ao líder da organização, nem sempre existe. E o que Chaleff defende é que, independentemente do nível de hierarquia a que se pertence, é necessário sentirmo-nos seguros o suficiente para dizermos o que pensamos e recusarmos obedecer a uma ordem que viole os nossos padrões éticos, seja directamente a quem nos dá essa ordem, seja a uma figura com ainda maior autoridade na organização em causa.
E esta coragem – ou sentimento de segurança – deve ser incutido desde tenra idade, principalmente pelos progenitores e/ou educadores – defende mais uma vez o autor.
Desobedecer de forma inteligente nada mais é do que a coragem para se assumir a responsabilidade. Ou seja, é recusar ficarmos sentados à espera que nos dêem ordens para serem cumpridas. Desde que compreendamos qual a missão da empresa, devemos agir e assumir a responsabilidade pelas nossas acções, sublinha. E, mais importante que tudo, desobedecer de forma inteligente significa ter a coragem para assumirmos uma posição com base moral. Se realmente alguém nos está a obrigar a cruzar uma linha vermelha, é da nossa responsabilidade assegurarmos que não estamos a ser cúmplices, porque nos limitamos a obedecer a uma ordem que não é ética ou que é ilegal. Mesmo que desafiar a figura de autoridade em causa possa dar origem a repercussões negativas na nossa vida pessoal ou profissional. De qualquer das formas, saberemos sempre que podemos deitar a cabeça na almofada e dormirmos sem qualquer peso na consciência.
Uma obra muito interessante, intelectualmente desafiadora e extremamente útil para os tempos que correm. E, que pelos vistos, não se afiguram virem a ser diferentes.
A fórmula de bem ignorar uma ordem não ética
É sempre importante ter em mente que, se nos sentirmos confusos ou desconfortáveis sobre determinada directiva, é da nossa responsabilidade chamar a atenção para a mesma, mesmo que tal signifique ignorá-la e/ou não a cumprir. A ideia é estar alinhado com o resultado e não com a acção. Ira Chaleff oferece uma fórmula simples (obviamente mais bem desenvolvida no livro) que é possível seguir em caso de desconforto ou reserva ética face a uma ordem:
Pausar: Antes de mais, é necessário combater o impulso de, reflexivamente, obedecer quando somos confrontados com uma situação que nos causa dúvidas éticas ou desconforto moral. Esperar, pensar, digerir e só depois agir é o recomendado.
Avaliar: Pergunte a si mesmo por que motivo se sente desconfortável. Qual o potencial prejuízo para si, para a sua equipa, para o seu chefe e para outros caso decida cumprir o que lhe foi ordenado. No livro, Chaleff sublinha a necessidade de: “com base na informação que possuímos e o contexto no interior do qual a ordem é dada, se obedecer significar produzir mais mal do que bem, desobedecer é a atitude certa, pelo menos até termos clarificado melhor a situação e a ordem em causa”.
Questionar: Antes de desobedecer a uma directiva do seu chefe, é benéfico pedir-lhe que clarifique o melhor possível o que lhe foi exigido. Todavia, Chaleff aconselha também a estarmos preparados e consciencializados para a resposta que possamos receber. Se a mesma for uma não-resposta, um desvio de conversa ou um embaraço, teremos de estar preparados para questionar outra vez, mas de uma forma mais assertiva.
“Retirada”: Se não receber uma resposta convincente, tem de estar convencido a desobedecer de forma inteligente. No treino dos cães-guia, esta fase chama-se “retirada” e é aquela em que o cão é ensinado a “puxar” o seu humano para uma direcção mais segura quando lhe é dado um comando que os poderá colocar, a ambos, em perigo.
É que, em última análise, a desobediência inteligente não diz respeito apenas a proteger-se a si mesmo, mas a proteger toda a equipa.
Editora Executiva