À semelhança do que aconteceu em outros momentos centrais para o futuro do país, a ACEGE – Associação Cristã de Empresário e Gestores -, decidiu tornar pública uma reflexão sobre a crise que assola Portugal e o futuro que deve ser construído. Num documento hoje divulgado, defende que o facto de o Estado português ter chegado a uma situação de quase insolvência significa que o seu modelo não é sustentável, defendendo a inevitabilidade de se recriar o modelo económico e social actual. Um modelo que devera ser construído com base nos valores do humanismo cristão, corporizados na doutrina social católica e nos seus princípios nucleares: dignidade da pessoa humana, bem comum, subsidiariedade e solidariedade. 1 – O facto do Estado português ter chegado a uma situação de quase insolvência significa que o seu modelo não é sustentável. Se Portugal não tiver ajuda externa, ou vier a perdê-la, o Estado social faliu. Se Portugal tiver ajuda externa, terá de recriar o Estado social para o poder manter. A defesa do Bem Comum, da coesão social e dos mais desprotegidos implica enfrentar esta questão. 2 – Igualmente, a economia portuguesa não cresce há uma década. Sem crescimento económico, a degradação do Estado social e o agravamento do desemprego e da pobreza serão uma inevitabilidade e a capacidade para pagar eventual empréstimo externo uma perigosa incerteza. A prioridade do crescimento económico não decorre de uma visão materialista ou economicista, pelo contrário, é condição necessária de defesa do Bem Comum. 3 – Sendo inevitável recriar o modelo económico e social, esta redefinição deve ser inspirada nos valores do humanismo cristão, corporizado na doutrina social católica e nos seus princípios nucleares: dignidade da pessoa humana, bem comum, subsidiariedade e solidariedade. Impõe-se um novo pensamento transformador sobre a realidade, um pensamento neo-social, seja por contraposição ao pensamento estatista que nos bloqueou e assistiu à insolvência do Estado social, seja por contraposição ao designado pensamento neo-liberal, que poderá permitir soluções de eficiência económica mas não valoriza na justa medida a centralidade da pessoa humana e do sofrimento social na acção política. O pensamento neo-social radica na redefinição do contrato social e do próprio Estado social, em ordem à sustentabilidade de um modelo de sociedade fraterno e justo. Exige uma abertura de espírito para a mudança dos actuais paradigmas, seja ao nível da organização, funções e financiamento do Estado, seja no plano da responsabilidade individual e da sociedade civil. As políticas sociais insustentáveis e insolventes são gravemente enganadoras dos povos e constituem uma falta de respeito sobretudo pelos mais vulneráveis e que mais confiaram na protecção que lhes foi prometida. Por outro lado, como se tem comprovado, tais políticas são altamente lesivas das gerações mais novas, para as quais se estão a transferir custos injustos e uma enorme insegurança quanto a níveis futuros de protecção social. 4 – A actual crise portuguesa coloca uma emergência individual, uma emergência económica, uma emergência social e uma emergência política. A emergência individual é a principal emergência. Em primeiro lugar, todos os portugueses são chamados a uma única atitude: depende de mim. Com esta atitude deixaremos a crise. Em segundo lugar, a fé cristã reclama de cada um de nós que saibamos ser felizes nas dificuldades, agradecendo tudo quanto temos e tomando os outros como a nossa prioridade. Para um cristão íntegro, todos os momentos são momentos de esperança e de serviço. Em terceiro lugar, é imperativo o compromisso pessoal com os valores da ética cristã. Na sua encíclica social, Caridade na Verdade, o Papa Bento XVI resume este compromisso: Finalmente, os líderes empresariais, com os talentos que Deus lhes deu, são um dos principais factores de esperança para milhões de pessoas e para o futuro colectivo. Nunca tantos esperaram tanto dos líderes empresariais. Alguns de nós ficarão pelo caminho, batidos pelas circunstâncias, mas no conjunto não vamos vacilar. Pedem-nos mais competência, mais energia, mais exigência, mais generosidade, mais confiança. É isso que nos é pedido, é isso que daremos. 5 – A emergência económica exige escolhas públicas e escolhas privadas de grande alcance. Para voltarmos ao crescimento económico que nos permita reduzir o desemprego, sustentar políticas sociais e pagar as dívidas que, como povo, temos, é essencial reduzir o custo do Estado, libertar recursos para as famílias e para as empresas e reorientar as prioridades das politicas públicas. Em primeiro lugar, uma reforma profunda, com verdadeira liberdade de reestruturação dos serviços e dos organismos públicos, bem como do sector empresarial do Estado, sem condicionamentos político-partidários ou corporativos ilegítimos, visando ganhos de eficiência e reduções de custos prefixados, tal como se aplicaria a qualquer organização em situação de insolvência como aquela em que o Estado português se encontra. Em segundo lugar, esta reforma deve ser feita com respeito pelos funcionários públicos, consagrando políticas que visem quer a dignificação do exercício de funções públicas, quer sistemas de incentivos que interessem os funcionários públicos na redução da despesa pública, quer a protecção possível do emprego e medidas compensatórias e de reintegração especialmente favoráveis em caso de perda do emprego por efeito de reestruturação. A reforma social do Estado tem fundamento em princípios de justiça social:
direito fundamental
(ii) – segundo, é justo e solidário haver um equilíbrio de direitos, de obrigações e de riscos entre os portugueses que trabalham no sector público e os portugueses que trabalham no sector privado; (iii) – terceiro, não é justo nem solidário exigir aos trabalhadores portugueses do sector privado, sujeitos aos riscos do desemprego e principais pagadores do custo do Estado, que suportem, com mais impostos, custos públicos que não sejam necessários; (iv) – quarto, é justo e solidário dar uma resposta socialmente inclusiva e generosa aos efeitos de uma reforma com esta dimensão; (v) – quinto, na linha de insustentabilidade em que o Estado português se encontra, a alternativa à reforma social do Estado é a redução sucessiva dos salários da Função Pública e das prestações sociais e/ou o agravamento dos impostos. 6 – Ainda no plano das políticas públicas, uma Educação para a economia. As limitações da nossa competitividade resultam, em boa medida, dos baixos níveis médios de educação da nossa população. Portugal tem de fazer escolhas num quadro exíguo de meios e o esforço para recuperar o atraso estrutural em termos de educação, muito especialmente ao nível do ensino secundário, deve merecer prioridade. 7 – No plano das escolhas privadas, a emergência económica reclama, sobretudo, a responsabilidade pessoal e social dos líderes empresariais. A ACEGE coloca à consciência dos líderes empresariais alguns critérios orientadores:
(ii) – pagar o salário mínimo mais elevado possível, de modo a retirar da pobreza aqueles que integram cada comunidade empresarial; (iii) – diagnóstico social interno, para conhecimento das situações familiares dos colaboradores mais carenciados, construindo sistemas internos de solidariedade, abertos a todos os colaboradores, de preferência confidenciais; (iv) – pagamento pontual aos fornecedores, entendido como o mínimo ético empresarial, de modo a evitar constrangimentos de liquidez nas outras empresas, em especial nas mais pequenas; (v) – pagamento dos impostos, os quais, sendo desproporcionados, são, todavia, essenciais para superarmos, como povo, esta crise; (vi) – não tirar partido, em circunstância alguma e sob nenhuma forma, da insegurança dos trabalhadores, respeitando os seus direitos legais e contratuais; (vii) – estudar e apostar em novas estratégias de acção e novos mercados, bem como alargar âmbitos de cooperação e entreajuda empresarial, regional ou sectorial. 8 – Uma matéria essencial deve merecer particular compromisso: o pagamento dos impostos. O não pagamento de impostos constitui uma conduta ilegal e de profundo egoísmo, fazendo recair noutros a parte que a cada um cabe no encargo social da crise. Confirmando-se que a economia paralela representa 25% da riqueza produzida em Portugal, uma resposta honesta a esta questão é angular para uma partilha social justa dos sacrifícios que se mostram necessários. 9 – Igualmente, constitui orientação clara para todos os líderes empresariais, também de pequenas e médias empresas, equipar as suas organizações com políticas estruturadas de responsabilidade social. As políticas de responsabilidade social são um bem comunitário extraordinário e não são uma obrigação apenas das grandes empresas, mas de todas as empresas. Na perspectiva da relação da empresa com a comunidade, é um dever moral dos produtores de riqueza cruzarem as suas organizações com o sofrimento social, assim dando respostas a quem mais precisa e dando oportunidade a todos os seus colaboradores de darem e de se darem. Na perspectiva da relação da empresa com os seus “stakeholders” – colaboradores, clientes, fornecedores, accionistas e comunidade – os líderes empresariais cristãos não devem temer introduzir no ideário empresarial o princípio do amor ao próximo. Significa tratar os outros como gostaríamos de ser tratados se estivéssemos no lugar deles. É o melhor guia para uma boa gestão. 10 – Neste âmbito, a relação com os trabalhadores deve merecer um empenhamento motivado pela dimensão humana e humanizante do trabalho: 11 – A emergência social reclama cuidado absoluto, devendo-nos concentrar em políticas que assegurem a coesão do nosso frágil tecido social. Neste âmbito, a ACEGE repudia políticas de ajustamento dos nossos desequilíbrios macroeconómicos e de satisfação das exigências dos nossos credores internacionais que impliquem redução das prestações dos portugueses que já vivem abaixo do limiar da dignidade humana. Os líderes empresariais cristãos devem empenhar-se firmemente no espaço cívico de modo a contribuir com alternativas que evitem medidas daquela natureza, desde logo, se necessário, acolhendo como privação temporária impostos excepcionais sobre os que mais têm, pessoas ou empresas, de modo a proteger quem já passa fome. 12 – A presente crise social, que será grave e prolongada, exige igualmente uma nova estratégia do Estado em articulação com a Igreja Católica. A Igreja Católica é a maior história de amor de Portugal e, na linguagem moderna, é o maior empreendedor social português. Igualmente, todos os esforços que os líderes empresariais possam fazer em benefício e em articulação com a Igreja Católica e as suas múltiplas organizações, devem fazê-lo com carácter de prioridade. Por fim, a protecção da Família deve estar no centro das preocupações dos líderes empresariais cristãos. Numa crise grave, cada trabalhador é ele e a sua circunstância familiar. Num tempo de vulnerabilidade social, contribuir especialmente para o equilíbrio de vida dos colaboradores e para a sua disponibilidade para as suas famílias é contribuir para o Bem Comum. 13 – Portugal tem uma emergência política. À luz da ética cristã, a situação dramática em que o povo português se encontra também tem raízes na grave violação de deveres ético-políticos. O centro vital da ética cristã é o Amor. Se há Amor, a seriedade, a competência, o sentido de Estado, a prudência serão consequências. O Amor não ilude, não manipula, não falta à verdade. O Amor é prudente e responsável. O Amor é corajoso. O Amor serve, não se serve. O Amor não coloca os interesses pessoais de carreira política ou de preservação do poder acima da protecção do interesse de todos. Os meios mediáticos hoje disponíveis e o avanço das técnicas de manipulação de massas tornam a violação dos deveres ético-políticos ainda mais grave e mais perigosa para o Bem Comum. A crise da Política radica, antes de tudo, numa falha de fundo, nunca falada: a lógica do Poder impede a lógica do Amor e há uma conformação generalizada dos povos de que é essa a natureza das coisas. 14 – A ACEGE acompanha o clamor civil por um entendimento político alargado e estratégico que proteja Portugal dos riscos tremendos que está a correr e que nos proteja, como povo, das nossas próprias incapacidades e fraquezas. Todavia, a ACEGE não acompanha ilusões inúteis. Não basta um governo maioritário para resolver os problemas nacionais. O desafio dos próximos anos exige um governo não só maioritário, mas sobretudo coeso. Sem coesão programática, um verdadeiro compromisso histórico, e sem coesão entre governantes, com genuíno espírito de diálogo e de serviço, um futuro governo, mesmo maioritário, será um logro passageiro. 15 – Acrescidamente, para que este caminho difícil seja percorrido com sucesso, é preciso, como algo que jorra da consciência pessoal, um exemplo avassalador por parte do Estado, dos governantes e de todos os líderes sociais, que legitime e inspire os sacrifícios que serão pedidos ao povo português. Uma vez mais, Bento XVI é lapidar: 16 – A emergência política impõe uma última interpelação. Portugal sofre de uma longa doença prolongada: a dependência do Estado. Esta doença alimenta o medo português, bloqueia o nosso dinamismo e é o caldo cultural onde nascem as más políticas públicas. Os líderes empresariais têm aqui uma particular responsabilidade política na defesa do Bem Comum: é essencial uma elite empresarial sem dependência do Estado, construindo na sociedade civil uma voz de liberdade, de exemplo ético e de resultados sociais capaz de defender a sociedade portuguesa desta sua fragilidade. 17 – Por fim, continuemos a prestar serviço à verdade, confiando e entregando esta circunstância a Deus. Portugal é Terra de Santa Maria, todos os nossos grandes momentos foram atravessados e dedicados a Nossa Senhora. Pedindo nos será dado. Por menos científico que este factor possa parecer, ele é verificável de modo marcante nas nossas vidas. |
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