Mesmo antes de a pandemia nos ter forçado a fechar as portas ao que se passava lá fora, a aplicarmos, com normalidade, termos como confinamento e distanciamento social, e a passarmos meses a viver no interior dos nossos dispositivos electrónicos, já a solidão era considerada como um fenómeno avassalador do século XXI. O livro da economista Noreena Hertz explora não só as diferentes dimensões do denominado “Século da Solidão” – que incluem a nossa crescente dependência da tecnologia, as mudanças radicais no local de trabalho e décadas de políticas que colocaram o interesse próprio acima do bem colectivo – como afirma que a única forma de travarmos esta sombra crescente que está a prejudicar as nossas comunidades e a tornarmo-nos mais isolados do que nunca é “associar o capitalismo à busca do bem comum e colocar o cuidado, a compaixão e a cooperação no seu centro”
POR HELENA OLIVEIRA

A solidão prospera num ecossistema em que os seus motores são estruturais, políticos e económicos, estando igualmente relacionada com as escolhas que fazemos enquanto indivíduos. Por tudo isto, as soluções para a atenuar precisam de ser abrangentes. É possível podermos resolver a actual crise de solidão, mas apenas se nós, enquanto governo, nós, enquanto líderes empresariais, e nós, enquanto indivíduos, tomarmos a decisão de o fazer”. Noreena Hertz

 

De acordo com as autoridades japonesas, o furto em lojas representa mais de 80% dos crimes cometidos por mulheres a partir dos 70 anos. E porquê?

Com mais de quatro milhões de mulheres seniores – o dobro dos homens na mesma faixa etária – a viverem sozinhas no Japão, a par do aumento de esperança de vida no feminino e do número crescente de mulheres divorciadas, viúvas ou simplesmente as que não têm ninguém, muitas vezes sem quaisquer condições ou apoios, a percentagem de senhoras idosas que procuram alojamento, cuidados médicos e, sobretudo, companhia, nas prisões, está a escalar cada vez mais. E a forma mais fácil de obterem uma solução para a solidão que sentem “lá fora” é cometendo pequenos crimes que lhes garantem pelo menos uma estadia de cerca de 18 meses “lá dentro”, numa cela, sim, mas acompanhadas por pessoas com quem podem falar e diminuir o peso gigantesco da solidão.

Todavia, e como sabemos, este fenómeno não ataca apenas senhoras velhinhas japonesas, mas vários segmentos da população, tendo sido agudizado – ou ficado apenas mais visível e mais exposto – durante a pandemia. Como afirma a aclamada economista Noreena Hertz, autora do livro The Lonely Century: How to Restore Human Connection in a World That’s Pulling Apart, três em cada cinco pessoas entre os 18 e os 34 anos sentem-se sós frequentemente ou sempre, sendo que um em cada cinco millennials não tem um único amigo. Ou e em suma, a solidão nas faixas etárias mais jovens está, também, a transformar-se numa preocupante epidemia de solidão.

Noreena Hertz entende a solidão como o sentimento de nos sentirmos “desligados” num estado profundamente existencial, o que inclui o facto de se sentir que não nos prestam atenção, que não existem apoios adequados para esta condição, seja pelos que nos são mais próximos (quando existem), seja nos próprios locais de trabalho e sem esquecer também o próprio Estado.

Ao contrário da panóplia de livros e estudos relacionados com esta temática, a obra de Hertz – e tendo em conta que a sua área de especialidade é a economia – não versa apenas sobre a dor emocional a que chamamos solidão mas, em particular, sobre a fragmentação da comunidade, juntando o pessoal ao político: é claro que a entendemos objectivamente como o sentimento de que nos faltam laços e ligações valorizadas, mas também é verdade que engloba o fenómeno maior de nos sentirmos marginalizados e negligenciados pelos interesses dominantes da sociedade – “não tanto deixados para trás, mas deixados de fora”, como escreve – e sublinhando que o primeiro caso é perturbadoramente mau para a nossa sociedade, sendo que o segundo é muito perigoso para a nossa política.

Noreena Hertz apresenta argumentos sólidos que explicam de que forma, nos tempos actuais, a vida se encontra profundamente atomizada – faltando muitas das ligações humanas tanto casuais como mais profundas que costumavam ser comuns e relembra igualmente que o ser humano não foi concebido para o isolamento. Tal como o VER já escreveu que a solidão pode matar, é preciso ter em linha de conta que a mesma é extremamente prejudicial à nossa saúde, tanto mental como física, na medida em que este sentimento desencadeia uma resposta prolongada e cumulativa ao stress no corpo, dificultando o sistema imunitário, estando igualmente associada a uma esperança de vida menor – tornando-nos quase 30% mais propensos a morrer prematuramentesimilar à de quem fuma 15 cigarros por dia e ainda mais acentuada quando comparada com aqueles que sofrem de diabetes”. Adicionalmente, este sentimento está igualmente associado a um maior risco de doenças cardiovasculares, demência, depressão e ansiedade. No trabalho, a solidão reduz a performance nas tarefas, limita a criatividade e afecta outros aspectos das funções executivas como o raciocínio e a tomada de decisão”,existindo ainda estudos que a associam a uma maior propensão para o cancro e a respostas mais pobres aos tratamentos, bem como a um declínio cognitivo muito mais acentuado à medida que se vai envelhecendo, funcionando como um sinal pré-clínico da doença de Alzheimer.

Juntos, mas sozinhos

Todavia, no seu livro são explorados os múltiplos determinantes que nos “permitiram” chegar até aqui – e mesmo antes de a pandemia nos ter obrigado a confinamentos e a regras de distanciação social – argumentando que existem três vertentes por excelência neste diagnóstico de solidão epidémica.

A primeira e partindo do carácter manifestamente politico, tem origem, a seu ver, no domínio da ideologia liberal dos anos de 1980, que não só aumentou significativamente a desigualdade e a exclusão social, como encorajou igualmente o individualismo – “ a sociedade não existe” -, onde o “eu” se tornou cada vez mais importante do que o “nós”, a par do facto de existirem cada vez mais pessoas que se deixaram de sentir cidadãs, transformando-se antes em consumidoras.

Como explica numa entrevista, “desde então, o declínio das ocupações tradicionais e das comunidades que promoviam o apoio mútuo, a alienação no trabalho, a perda do estatuto social e uma sensação crescente de isolamento, reforçaram esta experiência da desconexão”. E, a seu ver, é isto que oferece terreno fértil ao populismo que deu ao mundo tanto o Brexit como Trump, sendo a característica comum em ambos os casos uma liderança que “finge estar a ouvir os que ficam para trás e oferece um ‘outro’ (imigrantes, elites, etc.) como o foco das culpas” [a autora deu esta entrevista no dia seguinte a Trump ter encorajado os seus apoiantes a atacar o edifício do Capitólio, dizendo-lhes depois que os amava].

A segunda dimensão proposta pela reconhecida economista está intimamente ligada com as condições da vida quotidiana, tanto no trabalho como fora dele e que crescentemente têm levado as pessoas a isolarem-se cada vez mais. Antes da pandemia, eram já muitos os relatos de trabalhadores que se sentiam sozinhos nos seus locais de trabalho, em particular nos “open spaces”, pois habituaram-se a comunicar com os colegas através de ferramentas electrónicas (e todos somos testemunhas da extensão deste fenómeno em tempos de Covid-19). E uma curiosidade no que parece ser uma contradição: de facto, quando os escritórios em “open space” foram introduzidos pela primeira vez nos anos de 1960, foram anunciados como um conceito de design progressivo, quase utópico, que iria – ou assim se esperava – criar um ambiente de trabalho mais sociável e colaborativo, onde pessoas e ideias poderiam misturar-se de forma mais natural. Os defensores deste tipo de espaços abertos mantêm ainda os mesmos argumentos, mas é cada vez mais objecto de estudo o impacto significativo na forma como nos sentimos ligados ou desligados nos locais de trabalho. E o que acontece nestes “open spaces” – que continuam a ser comuns hoje em dia, compreendendo metade dos escritórios na Europa e dois terços dos escritórios nos EUA – é particularmente alienante.

Como também escreve Hertz, existe um enorme “sentimento de vergonha quando nos apercebemos que ninguém quer ser nosso amigo”, sendo que “um dos aspectos positivos que resultou da nossa experiência partilhada da COVID é que se está a falar muito mais de solidão do que no passado, com ricos, pobres, jovens, velhos, homens, mulheres a serem vítimas deste estado ”.

Por outro lado, a ascensão da “gig economy”, bem como da vigilância digital, contribui igualmente para o desânimo dos trabalhadores, a par do facto de que a maioria de nós pratica um vida cada vez mais anónima, à medida que nos apressamos a cumprir os nossos compromissos, não conhecendo os nossos vizinhos e encontrando menores oportunidades para nos encontrarmos informalmente com outros, tendo em conta o fecho ou a diminuição de vários espaços públicos (parques, bibliotecas, lojas locais) – situação já acelerada pelo período de austeridade que muito países viveram antes da pandemia e que se agudizou com a sua chegada.

Por último, chegamos inevitavelmente às redes sociais que, nas palavras de Noreena Hertz (e não só) são, de facto, activamente anti-sociais. A economista e autora realça o facto de serem vários os relatos de crianças pequenas que aprendem agora a dizer “Alexa” ou “Siri” antes de dizerem “mamã”, sendo que, em média, as estimativas apontam para o facto de as pessoas verificarem os seus smartphones mais de 200 vezes por dia. Para a autora e economista, e ao contrário dos defensores da tecnologia que argumentam que esta serve para nos ligar a todos, “nunca se está completamente junto de alguém que tem um smartphone na mão”. Por outro lado, sublinha, tanto o Facebook como as redes sociais similares estão a encorajar-nos a apresentar versões não autênticas de nós próprios em troca da uma forma mais fraca de validação social – os famosos ‘gostos’ – o que contribui para ir minando a nossa capacidade de envolvimento genuíno com outras pessoas.

Sempre ligados, cada vez mais solitários

Tendo em conta estas três dimensões, o livro de Noreena Hertz desdobra-se em exemplos que todos nós – solitários ou não – testemunhamos todos os dias.

Por exemplo, para os que vivem nas cidades e a seu ver, esta propicia crescentemente os estados de solidão. De acordo com a autora, são vários os estudos que demonstram que os níveis de civismo são mais baixos nas cidades, na medida em que o anonimato gera hostilidade e descuido e os espaços urbanos, repletos de milhões de estranhos, se tornam cada vez mais anónimos. Todavia e como sabemos e apesar de existirem inúmeros casos de solidão nas cidades, também é verdade que, para muitos, a “vida a solo” é, sem dúvida, uma escolha activa e uma marca de independência e de auto-suficiência económica.

Sejam quais forem as razões, nem todos os que vivem sozinhos são solitários. No entanto, os dados são inequívocos: as pessoas que vivem sozinhas correm um risco significativamente maior de sentirem as dores da solidão comparativamente aos que vivem com companhia – uma diferença de quase dez pontos percentuais – de acordo com o Relatório da Comissão Europeia sobre a Solidão publicado em 2018. E, não sendo surpreendente, estas mesmas dores tornam-se mais fortes em tempos de maiores dificuldades e vulnerabilidade.

Um outro aspecto sublinhado por Noreena Hertz é o facto de “vivermos juntos, mas sozinhos”. Como escreve, não é apenas a agitação e o ritmo da vida urbana que nos impede de sorrir para um estranho num transporte público ou quando passeamos na rua ou ainda de parecer que nos esquecemos das normas sociais que sempre nos acompanharam. Neste caso, a culpa recai directamente nos smartphones. Para a autora, em cada momento que ao telefone, fazendo scroll, vendo vídeos, lendo e respondendo a tweets, comentando imagens ou posts dos nossos “amigos digitais”, não estamos de todo presentes com aqueles que estão ao nosso lado, o que acaba por nos privar de múltiplas interacções sociais diárias que contribuem para sentirmos que fazemos parte de uma sociedade mais ampla. Como sublinha, “o facto de termos um smartphone connosco muda o nosso comportamento e a forma como interagimos com o mundo que nos rodeia”, acrescentando ainda que, num estudo recente, os investigadores descobriram que os estranhos sorriem significativamente menos uns para os outros quando têm os seus smartphones com eles”.

Por outro lado e como já referido anteriormente, as redes sociais também nos encorajam a apresentar versões cada vez menos autênticas de nós próprios. Ninguém partilha que passou o fim-de-semana de pijama e a comer snacks pouco saudáveis, mas todos assistimos a um conjunto de destaques aspiracionais e de momentos felizes, com festas e celebrações, praias de areia branca e especialidades gastronómicas. O problema é que tais versões filtradas de nós próprios são demasiadas vezes fundamentalmente desligadas do nosso próprio ser autêntico.

A autora cita também o exemplo de que é cada vez mais comuns os jovens procurarem um cirurgião plástico que consiga recriar as versões de si mesmos feitas com Photoshop. Ou seja, e como sublinha, os media sociais não só nos estão a transformar em vendedores – com o produto a sermos nós mesmos, ‘comoditizados’ e reembalados – como está a incutir a crença de que todos os nossos “amigos são mais populares que nós”, o que resulta em que muitas pessoas se sintam não só menos importantes do que aqueles que os rodeiam, como têm uma maior propensão para considerar que os seus verdadeiros “eus” são muito menos apreciados do que as versões falsas e “melhoradas” digitalmente. O que também é profundamente alienante.

Por outro lado, a tecnologia também tomou de assalto os locais de trabalho, onde as conversas entre colegas ou chefias foram substituídas pelo constante bater de teclas, mesmo quando, e na verdade, seria mais fácil e mais rápido comunicar pessoalmente. De acordo com Noreena Hertz, este factor contribui significativamente para a solidão no local de trabalho, tal como demonstra um estudo citado no seu livro, que conclui que cerca de 40% dos trabalhadores confessam que a comunicação “digital” com os colegas os torna”muito frequentemente” ou “sempre” solitários.

Na verdade, todas as formas possíveis de comunicação online passaram do conversacional ao transaccional, do afável ao eficiente ou do caloroso ao estéril.  Como escreve a autora, o “por favor” e o “obrigado” foram as primeiras vítimas das nossas vidas de trabalho sobrecarregadas de informação, sendo que tudo o que agora se escreve, seja por email ou Whatsapp, por exemplo, se tornou cada vez mais “curto” e impessoal.

Para a autora, a tecnologia digital derrubou por completo as fronteiras entre a vida profissional e pessoal, com muitos trabalhadores a sentirem que têm de alinhar com estas novas regras de compromisso ou arriscar a desilusão ou desaprovação dos seus patrões. No entanto, chama também a atenção para a cumplicidade de muitos de nós no que respeita a esta cultura do “sempre on”. Ou seja, é o nosso chefe exigente que nos “faz abrir” o correio electrónico à mesa de jantar ou será o nosso vício digital e desejo de dopamina que o determina? Em muitos casos, o que acontece é que acabamos por medir o nosso valor como estando fundamentalmente interligado com a nossa produtividade e salário, o que nos insta a colocar as exigências laborais à frente de tudo o resto.

E depois da pandemia?

Questionada sobre o que vai acontecer a esta flagelo de solidão depois da pandemia, Noreena Hertz afirma que o que estamos a observar são duas tendências contraditórias a emergir ao mesmo tempo, sendo que é difícil saber, definitivamente, qual irá prevalecer.

A primeira diz respeito à necessidade inata de estarmos juntos, do facto de estarmos “biologicamente formatados” para querer estar com outras pessoas, de sermos criaturas que precisam de viver em união com os outros. Depois é também verdade – e depois da crise pandémica que nos obrigou a isolarmo-nos – que desejamos, mais do que nunca, estarmos juntos, seja em bares ou restaurantes, no cinema ou no teatro, nos festivais de música ou nas discotecas. Como seria de esperar, diz, “após um período de privação social, da mesma forma que após um período de jejum, ficámos mais esfomeados para convivermos socialmente”.

Mas e ao mesmo tempo, o que estamos a assistir é esta aceleração massiva em direcção ao que Noreena denomina como uma “forma de vida sem contacto”. Ou seja, e obviamente que já antes da pandemia muitos de nós estávamos habituados a fazer compras online, a acompanhar vídeos de ginástica pelo YouTube ou a encomendar comida via Ubereats. Mas também sabemos que o “viver online”, nem que tenha sido por não haver outra alternativa, foi extraordinariamente acelerado e adoptado intensamente durante a pandemia.

Assim, a grande questão é: será que as pessoas irão trocar – e não necessariamente de forma consciente – a conveniência de não sair do seu sofá e ter tudo “à mão” pelos laços que caracterizam a vida em comunidade? Será que o apelo e o fascínio daquilo a que a comunidade tecnológica apelidou de “vida sem fricções” será mais importante do que nos voltarmos a misturar com pessoas, o que e caso aconteça, resultará na perda de sentido de ligação com os outros e, inevitavelmente, tornar-nos-á ainda mais solitários? Iremos perder as competências que, de várias formas, sustentam a democracia inclusiva e de que são exemplo o civismo, a reciprocidade, o pensar nos outros e não só em nós mesmos, ou seja, coisas que praticamos nas nossas interacções diárias quando estamos com outras pessoas?

Desta forma, o que preocupa Noreena Hertz é o facto de poder existir muita gente que opte pela “vida sem contacto” arriscando a sentirem-se cada vez mais sós, não só enquanto “indivíduos”, mas com consequências na sociedade, pois acabarão por perder as competências de socialização, principalmente com aqueles que, por algum motivo, são “diferentes” de si próprios.

A autora deixa bem claro no seu livro que a solidão e o aumento do populismo de direita estão significativamente interligados, afectando também a nossa economia, não tendo apenas uma correlação forte com a perda de produtividade da força de trabalho, mas custando igualmente aos Estados milhares de milhões de euros em custos de saúde. Por tudo isto, escreve Hertz, o truque é “associar o capitalismo à busca do bem comum e colocar o cuidado, a compaixão e a cooperação no seu próprio centro”.

E quando tomarmos consciência do que está realmente em jogo, a esperança é a de que optemos, activamente, pelo contacto.

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