A pergunta dá o mote à mais recente obra do psicólogo organizacional Tomas Chamorro-Premuzic a qual, segundo o próprio, não versa sobre Inteligência Artificial, mas sim sobre os comportamentos humanos nesta nova era. Convidando a uma “auto-actualização”, o autor apela também a que os humanos se concentrem em aperfeiçoar o que os torna tão especiais – como a nossa curiosidade, adaptabilidade e inteligência emocional – ao mesmo tempo que devemos voltar a confiar nas virtudes  perdidas, como é o caso da empatia, da humildade e do autocontrolo
POR HELENA OLIVEIRA

“Não somos máquinas de pensar, somos máquinas de sentir que pensam”
António Damásio

Se o leitor é utilizador das redes sociais, provavelmente já terá visto um meme que brinca com um dos temas quentes da actualidade e que diz qualquer coisa como: “por que motivo está toda a gente a investir na inteligência artificial havendo tanta falta de inteligência natural?”. A “anedota” não tem assim tanta graça se pensarmos que, e na verdade, os humanos parecem estar a tornar-se menos inteligentes à medida que as novas tecnologias e, em particular a Inteligência Artificial (IA), ganham terreno. Um bom exemplo é o tão falado CChatGPT que, em brevíssimos instantes, nos oferece respostas para quaisquer que sejam as nossas interrogações, poupando-nos o trabalho de pensar e raciocinar, e que está a gerar uma enorme polémica em várias áreas, particularmente no sector da educação. 

O meme acima enunciado constitui igualmente um bom mote para o mais recente livro (o 12º) de Tomas Chamorro-Premuzic, psicólogo organizacional e responsável pela área de inovação do Manpower Group.

O livro, acabadinho de sair do prelo e intitulado I, Human: AI, Automation, and the Quest to Reclaim What Makes Us Unique, tem como tema central o impacto da IA e as consequências comportamentais que dela advêm para os humanos, alertando para que sejamos nós, enquanto espécie, a nos actualizarmos. Afirmando que cada vez mais vivemos num mundo em que muitas das decisões a tomar são fruto de algoritmos, o autor apela a que os humanos se concentrem em aperfeiçoar o que nos torna tão especiais – como a nossa curiosidade, adaptabilidade e inteligência emocional – ao mesmo tempo que confiamos nas virtudes em muitos casos perdidas, como a empatia, a humildade e o autocontrolo. 

A seu ver e embora a IA tenha um enorme potencial para mudar as nossas vidas para melhor, tem também um lado negro, tornando-nos mais distraídos, egoístas, tendenciosos, narcisistas, previsíveis e impacientes. Adicionalmente, o autor acredita que, e tendo em conta o progresso da IA em variadíssimos domínios, esta nos está a tornar mais burros e que é necessário gastar menos tempo a verificar os nossos dispositivos em busca de novas notificações, actualizações e “todas as carraças antropologicamente engendradas com o objectivo de tornar as aplicações e plataformas que temos ao dispor tão pegajosas quanto possível”.

A tese de Chamorro-Premuzic não é propriamente uma novidade. Há já vários anos que muitos especialistas e observadores dos efeitos da tecnologia na sociedade defendem que só aperfeiçoando as características que nos tornam singularmente humanos será possível não sermos substituídos por máquinas num conjunto cada vez mais vasto de profissões e que são exactamente as competências humanas que estão relacionadas com a criatividade, o pensamento crítico e analítico, a atenção ao detalhe, a resiliência e a capacidade de resolver problemas que poderão minimizar os efeitos da automação e da IA no mercado laboral. 

Por outro lado, e recordando um inquérito feito pela Pew Research sobre o que podemos esperar da tecnologia até 2025, uma das respostas que reuniu consenso generalizado reside no facto de a automação, a inteligência artificial, a robótica e a globalização poderem intensificar as ameaças ao trabalho tal como o conhecemos. Para sobreviver, as empresas estão já a reconfigurar sistemas e processos para automatizar o maior número possível de funções. Enquanto a inteligência artificial (IA) e a robótica irão melhorar algumas vidas, também prejudicarão outras, uma vez que uma crescente quantidade de trabalho será assumida pelas máquinas. Por seu turno, os empregadores poderão subcontratar mão-de-obra com a oferta mais baixa a nível mundial e aos empregados poderá ser exigido que façam o seu trabalho por muito menos. Adicionalmente, poderão mesmo ser obrigados a abandonar o seu regime contratual de trabalho, trabalhando em modo “gig” [em regime de freelance], fornecendo o seu próprio equipamento, ao mesmo tempo que poderão ser vigiados em casa pelos empregadores. 

Mas a mais-valia deste livro e tendo em conta que o autor defende que todos nós fazemos parte de uma grande experiência de recolha de dados não estruturada na qual somos os ratos de laboratório e a IA é a beneficiária, é a articulação das grandes questões e desafios impostos pela IA, estando o autor absolutamente convicto de que o divórcio dos nossos dispositivos é absolutamente necessário se quisermos reter e recuperar alguma da nossa inteligência intrínseca antes que tudo se torne artificial.

O autor oferece uma análise bem fundamentada e estimulante das promessas e dos potenciais perigos da IA, da automação e da robótica, explorando a história e evolução destas tecnologias, o seu estado actual e as suas implicações futuras para a sociedade, trabalho, ética, e identidade humana. Um outro ponto forte do livro assenta no facto de o autor ter utilizado uma abordagem interdisciplinar que junta o conhecimento da ciência, tecnologia, economia, psicologia, sociologia, filosofia e ética para o escrever.

 “Este não é um livro sobre IA, mas sim sobre os humanos na era da IA”

Numa entrevista dada à McKinsey, e apesar de concordar que, no livro que escreveu, o lado negro dos comportamentos despoletado pela IA é amplamente sublinhado, o autor afirma também que esta abre caminho para algumas excelentes oportunidades com efeitos positivos para a humanidade, tanto a nível individual, como colectivo. Mas, e ao longo da sua escrita, a questão de partida está sempre presente: o que acontece quando automatizamos a nossa capacidade cognitiva mais importante e superior – pensar – e não pensamos por nós próprios? Ou, como a própria McKinsey sumariza no título da entrevista, o que significa sermos inteligentes na era da inteligência artificial?

Chamorro-Premuzic acredita que a automatização a que estamos crescentemente sujeitos tem efeitos substancialmente nefastos e que acabamos por agir de uma forma pouco inteligente, sem esquecer que os algoritmos são “treinados” por comportamentos que pouco têm a ver com a inteligência. Como declara na entrevista em causa, “a maioria das coisas que passamos a fazer habitualmente é bastante previsível e monótona e tem muito pouco a ver com a nossa imaginação, criatividade, ou capacidade de aprendizagem – que é como nos referimos à curiosidade”. E, tal como sublinha no livro, numa era em que o acesso ao conhecimento e à informação foi democratizado, a capacidade de o utilizar de uma forma inteligente tornou-se a essência da perícia e da competência intelectual. Mas e para isso, há que saber fazer as perguntas certas e ter um apetite voraz de conhecimento para que se possa realmente aproveitar e dar bom uso a todo o manancial de informação e conhecimento a que temos acesso 24 horas por dia e 7 dias por semana. 

Se tal não for feito, acredita, a humanidade só será desvalorizada à medida que a IA for aperfeiçoada. A verdade, acrescenta, é que passamos muito tempo a pensar nos limites da inteligência artificial e em quanto as máquinas se podem actualizar, especialmente dado que uma das características críticas da IA é a sua capacidade de melhorar e aprender de uma forma autónoma. Não se trata de quão precisos ou inteligentes são os programas de aprendizagem de máquinas, mas sim o quão bons podem vir a ser se lhes fornecermos os dados certos e se tiverem a capacidade de se autocorrigirem e desenvolverem. Todavia, quando o fazemos, falhamos o ponto fundamental que é saber o que nos acontece a nós, humanos, enquanto as máquinas são aperfeiçoadas continuamente. Ou, e como questiona, “o que estamos a fazer connosco próprios enquanto as máquinas estão a compreender-nos de uma forma continuamente melhor, conseguindo já, em variados casos, imitar ou replicar uma boa parte dos comportamentos humanos?”. Ou, em suma, o que devemos fazer agora que criámos tecnologias, máquinas, e computadores que podem fazer de forma mais eficiente o que antes era nosso apanágio?”

Não estamos a pensar melhor, mas sim mais depressa ou quando a paciência se torna uma virtude

Uma outra característica dominante para a qual Chamorro-Premuzic chama particular atenção reside no facto de que, na era da IA, a vida em si mesma se transformou numa grande distracção e que apenas nos concentramos naquilo em que os algoritmos e a inteligência artificial nos querem fazer concentrar. 

Para o autor, não estamos, de todo, a pensar melhor, mas sim mais rapidamente, o que nos faz incorrer em erros e em decisões desacertadas. Se a era da IA exige que o nosso cérebro esteja sempre alerta para pequenas mudanças e para que se reaja rapidamente, beneficiando a velocidade em detrimento da precisão e funcionamento – ou aquilo que os economistas comportamentais rotularam como modo Sistema 1 (impulsivo, intuitivo, automático e inconsciente na tomada de decisões) – então não é uma surpresa o facto de nos estarmos a transformar numa versão menos paciente de nós próprios.

Num excerto do seu livro, o autor escreve que, por vezes, é útil reagir rapidamente ou confiar nos nossos instintos. O verdadeiro problema surge quando a falta de racionalidade se transforma no principal modo de tomada de decisão. Tal leva-nos a cometer erros e prejudica a nossa capacidade de detectar incorrecções e, na maior parte das vezes, as decisões rápidas são tomadas por ignorância. Como defende, a nossa impulsividade digital e impaciência geral prejudicam a nossa capacidade de crescer intelectualmente, de desenvolver expertise e de adquirir conhecimentos sólidos.

Embora as plataformas de Internet baseadas na IA sejam um tipo de tecnologia relativamente recente, o seu impacto no comportamento humano é consistente com provas anteriores sobre o impacto de outras formas de meios de comunicação de massas, tais como televisão ou os jogos de vídeo, que mostram uma tendência para alimentar sintomas semelhantes aos do TDAH, como a impulsividade, os défices de atenção e a hiperactividade. À medida que o mundo aumenta em complexidade e o acesso ao conhecimento se alarga, evitamos abrandar para parar, pensar, e reflectir, comportando-nos antes como autómatos sem sentido. A investigação indica que a recolha mais rápida de informação online, por exemplo, através do googling instantâneo de respostas a interrogações urgentes, prejudica a aquisição de conhecimento a longo prazo, bem como a capacidade de recordarmos de onde vieram os nossos factos e informação.

Chamorro-Premuzic  escreve também que existem vantagens limitadas para aumentar a nossa paciência quando o mundo se move cada vez mais depressa. O nível certo de paciência é sempre aquele que se alinha com as exigências do ambiente em que nos movemos e que melhor se adequa aos problemas que precisamos de resolver. Há também muitos momentos em que a paciência, e o seu mais profundo facilitador psicológico de autocontrolo, pode ser uma adaptação indispensável. Se a era da IA parece desinteressada na nossa capacidade de esperar e retardar a gratificação, e a paciência se tornar de certa forma uma virtude perdida, corremos o risco de nos tornarmos uma versão mais pobre e mais superficial de nós próprios.

Por outro lado, se pensarmos na humanidade como o modelo que os algoritmos e a inteligência artificial tentam imitar, acabamos por nos diluir nesse mesmo modelo que é demasiado simples, acrescenta também. Se a inteligência artificial já consegue fazer a maior parte das coisas que fazemos, temos de nos concentrar na criação, na curiosidade e na aprendizagem de coisas que estão para além das capacidades deste tipo de tecnologia, sob pena de desistirmos e termos pouca fé nas nossas capacidades só porque criámos algo que consegue imitar o que fazemos a maior parte do tempo. Assim e na visão do autor, há que recuperar a nossa humanidade e encontrar formas que superem os feitos da IA e a maneira como os algoritmos podem prever e influenciar muitos comportamentos da nossa vida quotidiana. E como? Esta é a pergunta final com que acaba o livro.

Para pensarmos. Sem ajuda do ChatGPT e dos seus congéneres.

Editora Executiva